O que se passa neste quadro de Paula Rego? "A fada azul conta um segredo ao pinóquio" e eis que está tudo dito, a trama está exposta por inteiro e nada resta da história que havia por contar. Ainda assim: o que se passa neste quadro?
A fada e Pinóquio estão isolados: a escuridão que os rodeia parece deixá-los fora do mundo. Além deles, só a cadeira, o tapete, a roupa e a varinha. O espaço do segredo, de resto, é esse mesmo: um que deixa o mundo lá fora, a realidade fica em suspenso enquanto duas pessoas se recolhem para partilharem algo que só pode existir num universo à parte. Quando contamos um segredo, deixamos o mundo por um instante, e há alguém que por um instante o abandona connosco. É, de certo modo, um truque de magia: trata-se de esconder algo tão bem que esse algo não chega a ocupar espaço, não chega a existir. O segredo funciona como o coelho na cartola do prestidigitador: não existe até ser puxado para fora, mas é certo que mais cedo ou mais tarde vai aparecer.
Pinóquio, demais, tem já um segredo muito bem guardado: a própria fada. É só para ele que a fada existe – é verdade que Gepeto lhe reza, mas para este, ela é somente uma estrela distante que nunca desce para se aproximar. Não assim com Pinóquio: a fada conhece-o, como conhece todos, mas, mais importante, ele conhece a fada. Pode falar com ela, como Gepeto, mas só ao boneco ela responde. Vemos aqui a fada contar-lhe um segredo e julgamos ter surpreendido um momento improvável, inoportuno, mas, em rigor, é sempre assim que ela lhe fala: só ele a ouve e, por isso, tudo o que ela lhe diz é-lhe dito em segredo. Porque não é a fada vista por mais ninguém? Porque é aqui, fora do mundo, que ela vem ao encontro de Pinóquio, nesse lugar mágico do segredo onde mais ninguém mora. Porque ninguém mais a ouve? Porque ela só lhe fala em voz baixa e ao ouvido.
É a própria fada, todavia, o maior dos segredos de Pinóquio. No fim de contas, é só para ele que ela é real: não para os outros que a ignoram e nem mesmo para Gepeto, que lhe reza de longe. E por morar onde moram os segredos – lá longe onde o mundo já acabou –, ela só vive, afinal, porque Pinóquio a escuta. O segredo apenas existe enquanto é guardado por alguém, e assim, o rapaz de madeira é o maior dos truques de magia da fada: ao dar-lhe vida, ela torna-se o seu segredo e pode viver. Tal como Pinóquio, por sua vez, só vive por ser o segredo de Gepeto.
Porque não podemos escutar o que diz a fada ao ouvido do menino? Porque em bom rigor, não há palavras concretas para ouvir, não há nenhuma mensagem a não ser a de que ela está viva – e se o diz ao ouvido de Pinóquio é porque vive unicamente quando ele a ouve. A história do boneco que vai tornar-se um menino de verdade revela-se afinal o drama de uma fada que quer ser verdadeira. O que faz Pinóquio quando pratica más acções? Esquece a fada e o que ela diz, não a ouve, e, destarte, a fada corre o risco de desaparecer. Por isso, quando, no quadro, a vemos segredar a Pinóquio que ele já é um menino de verdade, se nos chegarmos mais perto e escutarmos com atenção poderemos perceber que a verdadeira notícia tem que ver com ela mesma: graças ao menino que a escutou, ela é já uma fada verdadeira.