E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 30 de julho de 2017

O segredo da fada


A fada azul conta um segredo ao pinóquio (Paula Rego)

  O que se passa neste quadro de Paula Rego? "A fada azul conta um segredo ao pinóquio" e eis que está tudo dito, a trama está exposta por inteiro e nada resta da história que havia por contar. Ainda assim: o que se passa neste quadro?
  A fada e Pinóquio estão isolados: a escuridão que os rodeia parece deixá-los fora do mundo. Além deles, só a cadeira, o tapete, a roupa e a varinha. O espaço do segredo, de resto, é esse mesmo: um que deixa o mundo lá fora, a realidade fica em suspenso enquanto duas pessoas se recolhem para partilharem algo que só pode existir num universo à parte. Quando contamos um segredo, deixamos o mundo por um instante, e há alguém que por um instante o abandona connosco. É, de certo modo, um truque de magia: trata-se de esconder algo tão bem que esse algo não chega a ocupar espaço, não chega a existir. O segredo funciona como o coelho na cartola do prestidigitador: não existe até ser puxado para fora, mas é certo que mais cedo ou mais tarde vai aparecer.
  Pinóquio, demais, tem já um segredo muito bem guardado: a própria fada. É só para ele que a fada existe – é verdade que Gepeto lhe reza, mas para este, ela é somente uma estrela distante que nunca desce para se aproximar. Não assim com Pinóquio: a fada conhece-o, como conhece todos, mas, mais importante, ele conhece a fada. Pode falar com ela, como Gepeto, mas só ao boneco ela responde. Vemos aqui a fada contar-lhe um segredo e julgamos ter surpreendido um momento improvável, inoportuno, mas, em rigor, é sempre assim que ela lhe fala: só ele a ouve e, por isso, tudo o que ela lhe diz é-lhe dito em segredo. Porque não é a fada vista por mais ninguém? Porque é aqui, fora do mundo, que ela vem ao encontro de Pinóquio, nesse lugar mágico do segredo onde mais ninguém mora. Porque ninguém mais a ouve? Porque ela só lhe fala em voz baixa e ao ouvido.
  É a própria fada, todavia, o maior dos segredos de Pinóquio. No fim de contas, é só para ele que ela é real: não para os outros que a ignoram e nem mesmo para Gepeto, que lhe reza de longe. E por morar onde moram os segredos – lá longe onde o mundo já acabou –, ela só vive, afinal, porque Pinóquio a escuta. O segredo apenas existe enquanto é guardado por alguém, e assim, o rapaz de madeira é o maior dos truques de magia da fada: ao dar-lhe vida, ela torna-se o seu segredo e pode viver. Tal como Pinóquio, por sua vez, só vive por ser o segredo de Gepeto.
  Porque não podemos escutar o que diz a fada ao ouvido do menino? Porque em bom rigor, não há palavras concretas para ouvir, não há nenhuma mensagem a não ser a de que ela está viva – e se o diz ao ouvido de Pinóquio é porque vive unicamente quando ele a ouve. A história do boneco que vai tornar-se um menino de verdade revela-se afinal o drama de uma fada que quer ser verdadeira. O que faz Pinóquio quando pratica más acções? Esquece a fada e o que ela diz, não a ouve, e, destarte, a fada corre o risco de desaparecer. Por isso, quando, no quadro, a vemos segredar a Pinóquio que ele já é um menino de verdade, se nos chegarmos mais perto e escutarmos com atenção poderemos perceber que a verdadeira notícia tem que ver com ela mesma: graças ao menino que a escutou, ela é já uma fada verdadeira.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Um coração onde cabem borboletas


W. W. Denslow

  No livro The Patchwork Girl of Oz (L. Frank Baum), Margolotte e o tio de Ojo foram transformados em pedra. Para os salvarem, Ojo e os amigos precisam de levar ao Dr. Pipt, entre outras coisas, uma asa de borboleta amarela, pois esse é um dos ingredientes de que ele precisa para fabricar o pó que permitirá trazer de volta os acidentados. No entanto, o lenhador de lata, imperador do país onde o animal poderia ser encontrado, recusa-se a deixá-los arrancar qualquer asa a uma borboleta, pois, devido ao coração gentil que o feiticeiro de Oz lhe ofereceu, ele não suporta que se faça sofrer uma criatura viva. Ao contrário, Scraps, a rapariga feita de retalhos, não compreende que importância tem uma borboleta, pois não lhe foi dado um coração.

  É muito curiosa esta bondade do lenhador de lata. Não suporta que façam mal a uma borboleta, mesmo que seja esse o único meio de salvar duas pessoas. Para ele, ao que parece, os fins nunca justificam os meios. Não há resultado tão importante ou valioso que valha o sacrifício de uma borboleta. É uma ideia tão perigosa quanto bonita: aparentemente, no seu coração cabem borboletas, mas não pessoas.
  Muitas pessoas capturam e matam borboletas apenas para as coleccionarem – sem razão, portanto. O lenhador é assim o inverso do caçador – não apenas no sentido imediato de que ele não captura borboletas, como também no mais radical de que enquanto o caçador mata borboletas sem porquê, o lenhador recusa-se a fazer-lhes mal mesmo tendo um porquê enorme para isso.
  "Who cares for a butterfly?", pergunta a rapariga de retalhos. Uma borboleta é para ela algo insignificante, não hesita em sacrificá-la por qualquer coisa que entenda ser mais importante. É o destino de muitas coisas pequenas: têm o tamanho da sua importância. No conto "Baratas", de Afonso Cruz, Hamza é um ex-condenado à morte que descobre um dia que a verdadeira razão de o sultão ter gritado e impedido a sua execução no último instante foi ter visto uma barata que o assustou, tendo depois, por vergonha, fingido que o grito fora proferido apenas para parar o carrasco. Instantes depois, Hamza tem a oportunidade de salvar uma barata prestes a ser esmagada, mas não o faz. Dá a seguinte explicação: "Uma barata é um ser suficientemente insignificante para salvar a minha vida, mas eu não sou suficientemente insignificante para salvar a vida de uma barata". A intransigência do lenhador revela-se a esta luz a modéstia esclarecida de alguém que sabe ser suficientemente insignificante para salvar uma borboleta. O precioso coração do lenhador mostra-se gigante na sua humildade: é suficientemente pequeno para que as borboletas possam lá entrar.
  Para o lenhador, não importa o tamanho ou a inutilidade da borboleta, mas apenas a possibilidade de ela sofrer. A fragilidade existe para ser protegida, porque, em rigor, ela começa por não existir: só nasce perante a ameaça. É a facilidade com que a rapariga de retalhos admite sacrificar a borboleta que faz nascer nesta a fragilidade. E é precisamente o enigma da fragilidade que o coleccionador de borboletas nunca poderá compreender: ele quer capturar a beleza da borboleta, guardar o que ela tem de mais caro. Mas é por ser tão frágil que a borboleta é valiosa. São as cores que a tornam bonita, mas é a delicadeza que a faz preciosa. Por resistir sendo tão débil, a borboleta é mais forte que as criaturas mais ferozes. Por sobreviver sendo tão mortal, a borboleta é mais improvável que o acaso. É esta vulnerabilidade que explica o seu tesouro e por isso o coleccionador que a captura só consegue a colorida carcaça da sua fragilidade.
  A cegueira do coleccionador, porém, não desculpa a sua maldade. De certo modo, esta é a mais pura das maldades: a que encontra prazer primeiro em destruir aquilo que, de tão improvável, era tão valioso, e depois em guardar e exibir o cadáver daquilo que já foi belo em tempos, mas ele não deixou que fosse mais. E por isso o lenhador mostra realmente a maior das bondades possíveis: ele não aceita sacrificar o delicado, já que sabe que toda a fragilidade é rara, porque improvável. Por ser bondoso, ele pode ver o que o sádico coleccionador ou a inconsciente rapariga de retalhos não conseguem: ele é o único que conhece o valor da borboleta, e assim a sua bondade faz dele o único recompensado pelo tesouro que ela traz.  

terça-feira, 4 de julho de 2017

Uma felicidade de brinquedo


  No livro Tess of the d’Ubervilles (Thomas Hardy), no cap. XXXVII, Angel, o marido de Tess, desiludido por descobrir que esta não é virgem (porque foi violada e até engravidou), vai, num ataque de sonambulismo durante a noite, ao encontro de Tess, pega-a ao colo e carrega-a até a deixar num caixão.

  O simbolismo é óbvio: a Tess pura que Angel idealizou está morta e ele vai sepultá-la. Não obstante, este é um momento feliz para Tess. Depois da distância a que foi votada pelo marido devido à revelação que lhe fez, e da perspectiva de que ele a qualquer momento poderá abandoná-la, Tess está feliz por estar de novo com ele. A ponto de, mesmo não sabendo o que vai ele fazer com ela, se contentar com a ideia de continuar a pertencer-lhe, ainda que como mera coisa sua, para ele dispor como bem entender: So easefully had she delivered her whole being up to him that it pleased her to think he was regarding her as his absolute possession, to dispose of as he should choose. It was consoling, under the hovering terror of tomorrow’s separation, to feel that he really recognized her now as his wife Tess, and did not cast her off, even if in that recognition he went so far as to arrogate to himself the right of harming her.
  Tess aceita mesmo a ideia de que ele pretenda magoá-la. Antes isso que ser abandonada. Que temor é este que a deixa contente por ser objecto, feliz mesmo podendo ser magoada, satisfeita por ser de novo coisa de alguém?


  O medo de Tess lembra o dos personagens de Toy Story 3 (Lee Unkrich). Também aí os brinquedos temem ser abandonados por Andy, esquecidos, mortos para as brincadeiras. Querem por tudo continuar a ser coisas de Andy, seus objectos, os seus brinquedos.
  Por definição, um brinquedo é algo com que posso fazer o que bem entender. Um objecto que me pertence ao ponto de a sua existência só fazer sentido na medida em que eu o utilize, de só viver enquanto a minha posse sobre ele continuar. É esse sentido que os brinquedos temem perder quando se lhes coloca a perspectiva de poderem ser abandonados, de nenhuma brincadeira ser já possível para eles.
  É precisamente por se encontrar de novo numa brincadeira que a criança Tess tem a oportunidade de ser feliz como um brinquedo redescoberto pelas mãos de uma criança. Porque numa brincadeira, podemos e devemos imaginar feliz, não apenas a criança, mas também o brinquedo. E é essa felicidade de Tess que dá o tom mais trágico à ironia de ela aceitar com alegria todo o sofrimento que as mãos de Angel lhe possam trazer. A felicidade de Tess permite-nos dizer que para ela até o sofrimento pode ser uma brincadeira.
  Tess ama Angel como um brinquedo ama o dono. Encontrando-se de novo nos braços dele, está feliz como um brinquedo nas mãos de uma nova brincadeira. E de facto, à primeira vista, a sua satisfação parece demonstrar que ela não toma verdadeiramente consciência da seriedade da situação. Passa-se, todavia, o oposto: é precisamente por conhecer a seriedade do que é significativo, mas efémero, numa brincadeira, que Tess pode sentir-se feliz neste momento e até desejar a única consumação possível para essa felicidade: sabendo que a brincadeira, por definição, é efémera, e que Angel em breve vai provavelmente abandoná-la, ela deseja, não eternizá-la, mas morrer nela: “If they could only fall together, and both be dashed to pieces, how fit, how desirable.” Que outra morte, com efeito, pode desejar um brinquedo, a não ser a morte que foi sempre a sua vida: a de uma brincadeira?