E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 4 de julho de 2017

Uma felicidade de brinquedo


  No livro Tess of the d’Ubervilles (Thomas Hardy), no cap. XXXVII, Angel, o marido de Tess, desiludido por descobrir que esta não é virgem (porque foi violada e até engravidou), vai, num ataque de sonambulismo durante a noite, ao encontro de Tess, pega-a ao colo e carrega-a até a deixar num caixão.

  O simbolismo é óbvio: a Tess pura que Angel idealizou está morta e ele vai sepultá-la. Não obstante, este é um momento feliz para Tess. Depois da distância a que foi votada pelo marido devido à revelação que lhe fez, e da perspectiva de que ele a qualquer momento poderá abandoná-la, Tess está feliz por estar de novo com ele. A ponto de, mesmo não sabendo o que vai ele fazer com ela, se contentar com a ideia de continuar a pertencer-lhe, ainda que como mera coisa sua, para ele dispor como bem entender: So easefully had she delivered her whole being up to him that it pleased her to think he was regarding her as his absolute possession, to dispose of as he should choose. It was consoling, under the hovering terror of tomorrow’s separation, to feel that he really recognized her now as his wife Tess, and did not cast her off, even if in that recognition he went so far as to arrogate to himself the right of harming her.
  Tess aceita mesmo a ideia de que ele pretenda magoá-la. Antes isso que ser abandonada. Que temor é este que a deixa contente por ser objecto, feliz mesmo podendo ser magoada, satisfeita por ser de novo coisa de alguém?


  O medo de Tess lembra o dos personagens de Toy Story 3 (Lee Unkrich). Também aí os brinquedos temem ser abandonados por Andy, esquecidos, mortos para as brincadeiras. Querem por tudo continuar a ser coisas de Andy, seus objectos, os seus brinquedos.
  Por definição, um brinquedo é algo com que posso fazer o que bem entender. Um objecto que me pertence ao ponto de a sua existência só fazer sentido na medida em que eu o utilize, de só viver enquanto a minha posse sobre ele continuar. É esse sentido que os brinquedos temem perder quando se lhes coloca a perspectiva de poderem ser abandonados, de nenhuma brincadeira ser já possível para eles.
  É precisamente por se encontrar de novo numa brincadeira que a criança Tess tem a oportunidade de ser feliz como um brinquedo redescoberto pelas mãos de uma criança. Porque numa brincadeira, podemos e devemos imaginar feliz, não apenas a criança, mas também o brinquedo. E é essa felicidade de Tess que dá o tom mais trágico à ironia de ela aceitar com alegria todo o sofrimento que as mãos de Angel lhe possam trazer. A felicidade de Tess permite-nos dizer que para ela até o sofrimento pode ser uma brincadeira.
  Tess ama Angel como um brinquedo ama o dono. Encontrando-se de novo nos braços dele, está feliz como um brinquedo nas mãos de uma nova brincadeira. E de facto, à primeira vista, a sua satisfação parece demonstrar que ela não toma verdadeiramente consciência da seriedade da situação. Passa-se, todavia, o oposto: é precisamente por conhecer a seriedade do que é significativo, mas efémero, numa brincadeira, que Tess pode sentir-se feliz neste momento e até desejar a única consumação possível para essa felicidade: sabendo que a brincadeira, por definição, é efémera, e que Angel em breve vai provavelmente abandoná-la, ela deseja, não eternizá-la, mas morrer nela: “If they could only fall together, and both be dashed to pieces, how fit, how desirable.” Que outra morte, com efeito, pode desejar um brinquedo, a não ser a morte que foi sempre a sua vida: a de uma brincadeira?

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