E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Um coração onde cabem borboletas


W. W. Denslow

  No livro The Patchwork Girl of Oz (L. Frank Baum), Margolotte e o tio de Ojo foram transformados em pedra. Para os salvarem, Ojo e os amigos precisam de levar ao Dr. Pipt, entre outras coisas, uma asa de borboleta amarela, pois esse é um dos ingredientes de que ele precisa para fabricar o pó que permitirá trazer de volta os acidentados. No entanto, o lenhador de lata, imperador do país onde o animal poderia ser encontrado, recusa-se a deixá-los arrancar qualquer asa a uma borboleta, pois, devido ao coração gentil que o feiticeiro de Oz lhe ofereceu, ele não suporta que se faça sofrer uma criatura viva. Ao contrário, Scraps, a rapariga feita de retalhos, não compreende que importância tem uma borboleta, pois não lhe foi dado um coração.

  É muito curiosa esta bondade do lenhador de lata. Não suporta que façam mal a uma borboleta, mesmo que seja esse o único meio de salvar duas pessoas. Para ele, ao que parece, os fins nunca justificam os meios. Não há resultado tão importante ou valioso que valha o sacrifício de uma borboleta. É uma ideia tão perigosa quanto bonita: aparentemente, no seu coração cabem borboletas, mas não pessoas.
  Muitas pessoas capturam e matam borboletas apenas para as coleccionarem – sem razão, portanto. O lenhador é assim o inverso do caçador – não apenas no sentido imediato de que ele não captura borboletas, como também no mais radical de que enquanto o caçador mata borboletas sem porquê, o lenhador recusa-se a fazer-lhes mal mesmo tendo um porquê enorme para isso.
  "Who cares for a butterfly?", pergunta a rapariga de retalhos. Uma borboleta é para ela algo insignificante, não hesita em sacrificá-la por qualquer coisa que entenda ser mais importante. É o destino de muitas coisas pequenas: têm o tamanho da sua importância. No conto "Baratas", de Afonso Cruz, Hamza é um ex-condenado à morte que descobre um dia que a verdadeira razão de o sultão ter gritado e impedido a sua execução no último instante foi ter visto uma barata que o assustou, tendo depois, por vergonha, fingido que o grito fora proferido apenas para parar o carrasco. Instantes depois, Hamza tem a oportunidade de salvar uma barata prestes a ser esmagada, mas não o faz. Dá a seguinte explicação: "Uma barata é um ser suficientemente insignificante para salvar a minha vida, mas eu não sou suficientemente insignificante para salvar a vida de uma barata". A intransigência do lenhador revela-se a esta luz a modéstia esclarecida de alguém que sabe ser suficientemente insignificante para salvar uma borboleta. O precioso coração do lenhador mostra-se gigante na sua humildade: é suficientemente pequeno para que as borboletas possam lá entrar.
  Para o lenhador, não importa o tamanho ou a inutilidade da borboleta, mas apenas a possibilidade de ela sofrer. A fragilidade existe para ser protegida, porque, em rigor, ela começa por não existir: só nasce perante a ameaça. É a facilidade com que a rapariga de retalhos admite sacrificar a borboleta que faz nascer nesta a fragilidade. E é precisamente o enigma da fragilidade que o coleccionador de borboletas nunca poderá compreender: ele quer capturar a beleza da borboleta, guardar o que ela tem de mais caro. Mas é por ser tão frágil que a borboleta é valiosa. São as cores que a tornam bonita, mas é a delicadeza que a faz preciosa. Por resistir sendo tão débil, a borboleta é mais forte que as criaturas mais ferozes. Por sobreviver sendo tão mortal, a borboleta é mais improvável que o acaso. É esta vulnerabilidade que explica o seu tesouro e por isso o coleccionador que a captura só consegue a colorida carcaça da sua fragilidade.
  A cegueira do coleccionador, porém, não desculpa a sua maldade. De certo modo, esta é a mais pura das maldades: a que encontra prazer primeiro em destruir aquilo que, de tão improvável, era tão valioso, e depois em guardar e exibir o cadáver daquilo que já foi belo em tempos, mas ele não deixou que fosse mais. E por isso o lenhador mostra realmente a maior das bondades possíveis: ele não aceita sacrificar o delicado, já que sabe que toda a fragilidade é rara, porque improvável. Por ser bondoso, ele pode ver o que o sádico coleccionador ou a inconsciente rapariga de retalhos não conseguem: ele é o único que conhece o valor da borboleta, e assim a sua bondade faz dele o único recompensado pelo tesouro que ela traz.  

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