No livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, conta-se a história de um bando de rapazes abandonados que vivem num trapiche e sobrevivem praticando roubos. Um deles é chamado "Sem Pernas" por ser coxo; usa a deficiência para ganhar a comiseração de famílias ricas que o acolhem nas suas casas, aproveitando para as estudar e mais tarde facilitar o acesso dos amigos ladrões.
Apesar da traição com que paga a piedade das famílias, o Sem Pernas não sente qualquer remorso; bem pelo contrário. Movido pelo ódio que o empurra contra o mundo em geral, ele vive fazendo piadas maldosas sobre os companheiros e não parece capaz de sentimentos de ternura ou fraternidade. A raiva que o habita nasceu num noite em que um grupo de polícias o apanhou, espancou e humilhou, obrigando-o a coxear de um lado para o outro enquanto se riam dele.
O seu ressentimento não poupa as famílias que o recebem. Ele sabe que é por caridade que o ajudam e percebe a saturação que rapidamente toma conta delas, o fardo que para elas ele representa. A situação é diferente, porém, na casa de uma senhora a quem um filho morrera. A senhora acredita ter encontrado no Sem Pernas um novo filho, uma criança que ela pode amar: quer tratar dele, dar-lhe o carinho que ele nunca recebeu e que ficou por entregar ao menino que morrera. O Sem Pernas chega mesmo a gostar dela e a beijá-la, reconhecendo-lhe a bondade. Mas, depois procrastinar a decisão por algum tempo, acaba por fazer o seu trabalho e dá aos Capitães da Areia a informação necessária para eles assaltarem a casa. Nesta ocasião, contudo, o Sem Pernas não quer o dinheiro nem a roupa que de lá trouxe. E chora.
O mal-estar do Sem Pernas começa logo na própria casa onde se sente bem. Quando percebe que a bondade daquela gente não é postiça como outras, não aparece por ser esperada ou suposta, mas por ser a única coisa que aquelas pessoas conhecem, ele assusta-se, sente "um grande medo de que sejam bons para ele". O seu ódio fá-lo forte contra todos os polícias, a sua raiva permite-lhe crescer entre os Capitães, o seu ressentimento dá-lhe ânimo para desdenhar todas as famílias que não o querem verdadeiramente. Consegue mesmo ser alegre, ao sentir a "alegria da vingança" contra toda essa gente que o humilha ou o ajuda por obrigação ou remorso. Na violência contra as meninas que o atraem, desforra-se da repulsa que elas sentem por ele, coxo, feio e antipático. Contra a bondade e o amor, porém, ele está desarmado.
O ódio é tudo o que o Sem Pernas conheceu desde pequeno. Por isso, convence-se de que "se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver". Estando preenchido inteiramente por este sentimento, a perspectiva de ele perder o seu objecto e o seu sentido, e, desse modo, desaparecer, é aterradora. É o ódio que o move e, sem ele, deixará de coxear para cair de vez. A alternativa de no lugar desse elemento aparecer algo novo não é evidente e surge demasiado arriscada. Face a ele, o amor é uma hipótese longínqua, talvez ilusória: o amor não passa, neste panorama e no melhor dos cenários, do risco de acabar vazio; no pior deles, é o risco de ser magoado de novo.
O ódio do Sem Pernas salvou-o. Fê-lo sentir que não voltaria a ser fraco depois dos polícias, que só coxearia por vontade própria e para os olhos de quem ele pudesse magoar ou trair. A raiva que o consumiu e o alimentou deu-lhe a segurança de pensar que não tornaria a encontrar-se vulnerável. E assim o coxo Sem Pernas ousou acreditar que, definitivamente, já não era frágil.
Sucedendo em proteger-se contra todos os perigos de que tinha ideia, o Sem Pernas não contou com aquele que nunca conhecera: o da bondade. O amor nunca foi uma hipótese de vida para ele. Só o ódio pôde salvá-lo dos polícias cruéis, das mulatas frias e das famílias hipócritas. Perante a maldade, o amor deixá-lo-ia vulnerável: um pouco de meiguice ou inocência e ele estaria perdido. Morte certa para o aleijado, feio e diferente. Por isso o Sem Pernas muniu-se de ódio contra o ódio para ser forte – se bem que também para fazer fortes os seus inimigos, já que com a sua irascibilidade e animosidade acabou por fomentar nos outros maus sentimentos contra si.
O amor é um ataque novo contra o Sem Pernas, um que ele não conhece e com o qual não contava. Perante a bondade verdadeira – a gratuita, a que não passa por fazer favores a si ou a outros na esperança de conseguir qualquer coisa que não mais bondade ou mais amor –, perante essa bondade que o deixa fraco e vulnerável, a sua única arma é aquele ódio que sempre o fez forte, mas que agora se mostra inadequado. A raiva que o tornou tão seguro contra inimigos deixa-o desajeitado novamente: perante esta bondade, ele não tem armadura, não sabe sequer como combater. A estadia na casa da senhora bondosa é obviamente o inverso da experiência com os polícias: ela gosta dele, quer dar-lhe carinho, aceitá-lo e fazê-lo um dos seus. Mas nesta inversão, a vulnerabilidade em que ele é situado é a mesma: ele não tem armas perante aquela pessoa grande que o trata de um modo que ele não entende e não sabe sequer aceitar. Habituado a odiar toda a vida, o Sem Pernas não sabe fazer outra coisa porque não tem outras armas, muito menos aquelas com que se combate em tempos de tréguas. Assim, a bondade da senhora é para ele tão perigosa como a maldade dos polícias, porque ele se descobre igualmente vulnerável perante ambas. Se ao longo da vida aprendeu a combater com o seu ressentimento a animosidade dos outros, o carinho da senhora deixa-o desamparado e sem saber o que fazer. O Sem Pernas abandona a senhora e trai-a, fiel aos Capitães à superfície, mas no seu íntimo fiel ao seu ódio, à sua raiva. Essa armadura não o faz forte agora, porém, e ele chora de amargura. É frágil de novo.
O Sem Pernas termina a sua vida fugindo da polícia. Encurralado entre os seus inimigos fardados e o precipício, ele escolhe lançar-se para o suicídio, para não deixar que o apanhem e o torturem de novo. É uma fuga ilusória. O episódio da casa da senhora bondosa mostra-nos que ele nunca escapou verdadeiramente àqueles que o maltrataram. Prisioneiro do seu ressentimento contra eles, o Sem Pernas foi incapaz de se libertar desse mundo de vingança e retribuição para habitar uma casa nova. Ainda assim, na amargura com que sofreu a traição que ele próprio praticou contra essa senhora que quis gostar dele, podemos descobrir que, no fim de contas, ele já se deixara apanhar, por um pouco que fosse, pelos bons sentimentos que nunca conheceu nem compreendeu. O drama do Sem Pernas, em suma, é o de ter sido sempre um prisioneiro: durante a maior parte da sua vida, prisioneiro dos seus inimigos e do seu próprio ódio. Mas num breve momento, prisioneiro também do amor e de quem apenas quis gostar dele.