E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O prisioneiro

  No livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, conta-se a história de um bando de rapazes abandonados que vivem num trapiche e sobrevivem praticando roubos. Um deles é chamado "Sem Pernas" por ser coxo; usa a deficiência para ganhar a comiseração de famílias ricas que o acolhem nas suas casas, aproveitando para as estudar e mais tarde facilitar o acesso dos amigos ladrões.

  Apesar da traição com que paga a piedade das famílias, o Sem Pernas não sente qualquer remorso; bem pelo contrário. Movido pelo ódio que o empurra contra o mundo em geral, ele vive fazendo piadas maldosas sobre os companheiros e não parece capaz de sentimentos de ternura ou fraternidade. A raiva que o habita nasceu num noite em que um grupo de polícias o apanhou, espancou e humilhou, obrigando-o a coxear de um lado para o outro enquanto se riam dele.
  O seu ressentimento não poupa as famílias que o recebem. Ele sabe que é por caridade que o ajudam e percebe a saturação que rapidamente toma conta delas, o fardo que para elas ele representa. A situação é diferente, porém, na casa de uma senhora a quem um filho morrera. A senhora acredita ter encontrado no Sem Pernas um novo filho, uma criança que ela pode amar: quer tratar dele, dar-lhe o carinho que ele nunca recebeu e que ficou por entregar ao menino que morrera. O Sem Pernas chega mesmo a gostar dela e a beijá-la, reconhecendo-lhe a bondade. Mas, depois procrastinar a decisão por algum tempo, acaba por fazer o seu trabalho e dá aos Capitães da Areia a informação necessária para eles assaltarem a casa. Nesta ocasião, contudo, o Sem Pernas não quer o dinheiro nem a roupa que de lá trouxe. E chora.
  O mal-estar do Sem Pernas começa logo na própria casa onde se sente bem. Quando percebe que a bondade daquela gente não é postiça como outras, não aparece por ser esperada ou suposta, mas por ser a única coisa que aquelas pessoas conhecem, ele assusta-se, sente "um grande medo de que sejam bons para ele". O seu ódio fá-lo forte contra todos os polícias, a sua raiva permite-lhe crescer entre os Capitães, o seu ressentimento dá-lhe ânimo para desdenhar todas as famílias que não o querem verdadeiramente. Consegue mesmo ser alegre, ao sentir a "alegria da vingança" contra toda essa gente que o humilha ou o ajuda por obrigação ou remorso. Na violência contra as meninas que o atraem, desforra-se da repulsa que elas sentem por ele, coxo, feio e antipático. Contra a bondade e o amor, porém, ele está desarmado.
  O ódio é tudo o que o Sem Pernas conheceu desde pequeno. Por isso, convence-se de que "se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver". Estando preenchido inteiramente por este sentimento, a perspectiva de ele perder o seu objecto e o seu sentido, e, desse modo, desaparecer, é aterradora. É o ódio que o move e, sem ele, deixará de coxear para cair de vez. A alternativa de no lugar desse elemento aparecer algo novo não é evidente e surge demasiado arriscada. Face a ele, o amor é uma hipótese longínqua, talvez ilusória: o amor não passa, neste panorama e no melhor dos cenários, do risco de acabar vazio; no pior deles, é o risco de ser magoado de novo.
  O ódio do Sem Pernas salvou-o. Fê-lo sentir que não voltaria a ser fraco depois dos polícias, que só coxearia por vontade própria e para os olhos de quem ele pudesse magoar ou trair. A raiva que o consumiu e o alimentou deu-lhe a segurança de pensar que não tornaria a encontrar-se vulnerável. E assim o coxo Sem Pernas ousou acreditar que, definitivamente, já não era frágil.
  Sucedendo em proteger-se contra todos os perigos de que tinha ideia, o Sem Pernas não contou com aquele que nunca conhecera: o da bondade. O amor nunca foi uma hipótese de vida para ele. Só o ódio pôde salvá-lo dos polícias cruéis, das mulatas frias e das famílias hipócritas. Perante a maldade, o amor deixá-lo-ia vulnerável: um pouco de meiguice ou inocência e ele estaria perdido. Morte certa para o aleijado, feio e diferente. Por isso o Sem Pernas muniu-se de ódio contra o ódio para ser forte – se bem que também para fazer fortes os seus inimigos, já que com a sua irascibilidade e animosidade acabou por fomentar nos outros maus sentimentos contra si.
  O amor é um ataque novo contra o Sem Pernas, um que ele não conhece e com o qual não contava. Perante a bondade verdadeira – a gratuita, a que não passa por fazer favores a si ou a outros na esperança de conseguir qualquer coisa que não mais bondade ou mais amor –, perante essa bondade que o deixa fraco e vulnerável, a sua única arma é aquele ódio que sempre o fez forte, mas que agora se mostra inadequado. A raiva que o tornou tão seguro contra inimigos deixa-o desajeitado novamente: perante esta bondade, ele não tem armadura, não sabe sequer como combater. A estadia na casa da senhora bondosa é obviamente o inverso da experiência com os polícias: ela gosta dele, quer dar-lhe carinho, aceitá-lo e fazê-lo um dos seus. Mas nesta inversão, a vulnerabilidade em que ele é situado é a mesma: ele não tem armas perante aquela pessoa grande que o trata de um modo que ele não entende e não sabe sequer aceitar. Habituado a odiar toda a vida, o Sem Pernas não sabe fazer outra coisa porque não tem outras armas, muito menos aquelas com que se combate em tempos de tréguas. Assim, a bondade da senhora é para ele tão perigosa como a maldade dos polícias, porque ele se descobre igualmente vulnerável perante ambas. Se ao longo da vida aprendeu a combater com o seu ressentimento a animosidade dos outros, o carinho da senhora deixa-o desamparado e sem saber o que fazer. O Sem Pernas abandona a senhora e trai-a, fiel aos Capitães à superfície, mas no seu íntimo fiel ao seu ódio, à sua raiva. Essa armadura não o faz forte agora, porém, e ele chora de amargura. É frágil de novo.
  O Sem Pernas termina a sua vida fugindo da polícia. Encurralado entre os seus inimigos fardados e o precipício, ele escolhe lançar-se para o suicídio, para não deixar que o apanhem e o torturem de novo. É uma fuga ilusória. O episódio da casa da senhora bondosa mostra-nos que ele nunca escapou verdadeiramente àqueles que o maltrataram. Prisioneiro do seu ressentimento contra eles, o Sem Pernas foi incapaz de se libertar desse mundo de vingança e retribuição para habitar uma casa nova. Ainda assim, na amargura com que sofreu a traição que ele próprio praticou contra essa senhora que quis gostar dele, podemos descobrir que, no fim de contas, ele já se deixara apanhar, por um pouco que fosse, pelos bons sentimentos que nunca conheceu nem compreendeu. O drama do Sem Pernas, em suma, é o de ter sido sempre um prisioneiro: durante a maior parte da sua vida, prisioneiro dos seus inimigos e do seu próprio ódio. Mas num breve momento, prisioneiro também do amor e de quem apenas quis gostar dele.

domingo, 22 de outubro de 2017

Humano, demasiado humano

  No livro Frankenstein, or The Modern Prometheus, de Mary Shelly, Victor Frankenstein é um cientista que consegue dar vida a um humanóide que ele próprio fabrica. De proporções enormes, com olhos amarelos e pele que mal esconde os músculos e veias, a criatura tem uma aparência monstruosa e é rejeitada com horror por todos os que a encontram (excepto pelo cego De Lacey, com quem fala por pouco tempo).

  O humanóide é um monstro para os olhos humanos, se bem que nunca comece por sê-lo por outra razão que não a sua aparência. Com efeito, ninguém parece disposto a dar uma oportunidade à bondade potencial que ele traz dentro de si. Pronta a oferecer afecto, amizade ou amor em troca do carinho de que precisa, a criatura encontra somente rejeição, medo e ódio. O próprio Frankenstein, seu criador, mesmo depois de alguma comoção ao ouvir o seu trágico relato, recua na intenção de lhe oferecer uma companheira, temendo que ela se revelasse tão maligna como ele.
  É óbvia a ironia aqui presente: as pessoas horrorizam-se porque a composição física do monstro, entre outras coisas, lhes mostra em parte o interior deste, mas afinal limitam-se a julgá-lo pela aparência e nunca pelos sentimentos, pensamentos ou emoções que ele tenta mostrar-lhes. E isto apesar de o monstro revelar uma inegável riqueza intelectual e emocional, e de toda essa vida interior estar completamente à mostra em todas as suas conversas, atitudes e relatos: sem rosto para se mostrar pessoa, o monstro exibe a sua personalidade fazendo exterior o que traz dentro de si. As pessoas que encontra, contudo, limitadas pelas aparências, não vêem nada, porque não o vêem a ele. O único com quem estabelece um breve diálogo com simpatia é precisamente o cego que não lhe vê o rosto e, por isso, pode ver mais que os outros.
  O monstro exibe a pessoa, mas ninguém a vê. A hipótese de descobrirem a pessoa que (não) se esconde na criatura está condenada à partida: a monstruosidade aparente impossibilita o reconhecimento de qualquer traço de humanidade, de tal modo que a criatura é sempre um completo outro, algo não-humano, que não merece sequer um nome: "knowing the name of something has traditionally conferred magical control over it, as well as giving it a place in an ordered universe. Frankenstein’s creation is simply 'the Monster' — aptly communicating its total otherness and man’s impotence before it." (Martin Tropp, "The Monster"). A esta luz, mais curioso se torna notar que o monstro é, no fim de contas, mais humano do que qualquer uma das pessoas que vai encontrando, incluindo o seu criador: "The greatest paradox and most astonishing achievement of Mary Shelley’s novel is that the monster is more human than his creator. This nameless being, as much a Modern Adam as his creator is a Modern Prometheus, is more lovable than his creator and more hateful, more to be pitied and more to be feared" (Harold Bloom, na introdução à obra que edita sobre o livro de Mary Shelley).
  Em Frankenstein, ninguém é mais humano do que o monstro, porque ninguém possui a sua riqueza imaginativa intelectual e emocional, nem a consciência que ele demonstra em toda a sua sensibilidade, além de que ninguém vive a variedade de situações que o encurralam. Capaz de aprender, de julgar e de se indignar, ele tem o mais profundo, ainda que nem sempre apurado, sentido de justiça. Vive ao limite todas as emoções e sentimentos que uma pessoa pode experimentar: revela uma propensão natural para a bondade e o amor, depositando esperança na idealizada família pela qual ansiava ser acolhido. Escorraçado por todos, conhece a solidão e o abandono, bem como o isolamento, quando sabe que nunca fará parte da comunidade. O que não o impede de ser paciente com os impacientes que deseja que o oiçam. É capaz de altruísmo nos gestos gratuitos de ajuda a necessitados que encontra, mas também de egoísmo e pura maldade quando, por exemplo, descarrega as suas frustrações em inocentes. Sente inveja e raiva contra o seu criador pela felicidade que este pretendia prosseguir depois de negar ao monstro a única possibilidade de obter a sua, o que o leva a experimentar a vingança contra Victor. Mas depois dessa vingança descobre o arrependimento e o perdão. E, claro, o tratamento desigual que recebe, sempre moldado pelo seu rosto e não pelas suas acções ou palavras, leva-o a vivenciar o mais desperto dos sentimentos humanos: o da injustiça.
  O monstro não é mais humano apenas na abrangência da sua consciência, mas também na intensidade e profundidade de cada um dos momentos que povoam essa consciência. A sua racionalidade é mais sólida que a de Frankenstein, e a sua argumentação mais sustentada e ponderada. A sua bondade é talvez mais valiosa que a de Justine, porque mais inesperada. A sua inocência é mais credível que a do pequeno William, que também o julga e maltrata pela aparência, mas a quem supera também na infantilidade da sua maldade, que o leva a matar a criança tanto para a calar como para se vingar do seu criador. O seu sentido de responsabilidade é também o mais apurado: por contraposição ao de Frankenstein, que por diversas vezes foge das suas responsabilidades e demora a assumir que os seus actos têm consequências, a criatura mostra sempre consciência e é sempre senhora dos seus actos, indo ao ponto de assumir a final a condenação e castigo que entende merecerem.
  Acima de tudo, o monstro é humano na procura constante dos outros: não apenas no desespero por ser aceite e na necessidade de acolhimento, mas também na empatia extrema de que é capaz. Como refere Harold Bloom, o fim de Frankenstein (imolado num túmulo de gelo) é perfeitamente adequado a alguém que nunca atingiu por completo um sentido da existência dos outros ("a fit end for a being who has never achieved a full sense of another’s existence"). O monstro, ao invés, vive virado para o exterior, o seu percurso é uma busca constante de compreender e ser compreendido, a sua humanização faz-se no confronto com outros seres (ainda com Bloom: "Frankenstein is the mind and emotions turned in upon themselves, and his creature is the mind and emotions turned imaginatively outward, seeking a greater humanization through a confrontation of other selves"). O monstro é, enfim, o único verdadeiramente capaz de uma empatia radical, de se colocar completamente no lugar do outro, de assumir o ponto de vista daqueles que o rejeitam: quando encontra o seu reflexo na água, o monstro descobre-se repulsivo e horroriza-se com a sua própria aparência. Como diz Tropp, olha-se como um humano a olhar uma coisa hedionda ("The Monster (...) looks at the reflection as if it were a man looking at some hideous thing"). A humanidade da sua empatia vai assim ao ponto de lhe permitir situar-se no lugar de um humano que olha outra criatura como uma coisa que, apesar de pensar e de sentir, é só uma coisa. A empatia do monstro, por outras palavras, deixa-o por uns instantes na posição de um humano que é incapaz de empatia e se revela assim menos humano. Se o monstro continua humano apesar disso – ou é-o ainda mais desse modo –, é precisamente porque ele mesmo é a coisa inumana rejeitada.
  Segundo o relato de Nietzsche (Also sprach Zarathustra), quando Zaratustra encontra o "homem mais feio", este explica que matou Deus por não suportar que Ele o olhasse e tivesse pena de si. O homem afirma-se rico na sua fealdade, confortando-se a si mesmo na ausência do seu criador. Também o monstro do livro de Shelley mata o seu criador (ou pelo menos reclama para si a autoria da morte de Frankenstein), mas com os motivos inversos. O drama do monstro é precisamente o de ser tão horrendo que os outros, incluindo o seu criador, não suportam olhar para ele nem se mostram dispostos a compreendê-lo. Se o homem mais feio mata Deus por ir ao seu encontro, o monstro, feio e pobre, mata o seu pai por fugir de si.
  O horror e a aversão que as diversas pessoas sentem pelo monstro indiciam que ele é demasiado feio para ser humano. Mas o drama emocional da sua história, o isolamento radical a que parece condenado e a nobre empatia de que se mostra capaz revelam-nos uma outra verdade, mais profunda e cheia de significado: a de que ele é demasiado humano para ser verdadeiramente feio.

domingo, 8 de outubro de 2017

O mestre da fuga



The Artful Dodger  (Joseph Clayton Clarke - "Kyd")

  No livro  Oliver Twist  (Charles Dickens), Jack Dawkins, ou "Artful Dodger", é um carteirista, líder do bando de crianças criminosas treinadas pelo velho Fagin.

   Dawkins é um personagem feito de contrastes. Começa por sê-lo em comparação com Oliver: enquanto este é naturalmente bom e passa o livro numa sentimentalidade passiva que, em última análise, acaba por salvá-lo, o corrompido dodger age sempre cheio de energia e descaramento. Nas palavras de Hillis Miller ["What the lonley child saw: Charles Dickens's  Oliver Twist"], "...the Artful Dodger, with his irrepressible energy, his resolute (and witty) defiance of all constituted authority, represents the other possibility. (...) He has begun in Oliver's situation, but he has reacted in exactly the opposite way." Mas faz-se também de contrastes em si mesmo: é uma criança vestida de adulto; é o amigo de Oliver, a quem tira da rua, mas trai-o na primeira ocasião para tal; a sua manha e habilidade para enganar obrigam quem quer que o conheça a desconfiar sempre dele, mas é ao mesmo tempo o mais confiável e fiel dos discípulos de Fagin, a quem entrega os ganhos dos seus truques; capaz de grandes golpes sem ser notado, acaba apanhado por um furto de pequena monta.
    É de resto esta habilidade de se escapar que dá a outra nota fundamental à sua personalidade. Ele não é apenas astuto ("artful"): domina também a arte de se escapulir ("to dodge": esquivar-se). E o próprio contraste que marca os traços fundamentais que o desenham ajuda a intuir essa mesma arte: ele parece escapar-se sempre que julgamos apreendê-lo – no momento em que pensamos tê-lo fixado, descobrimo-lo no pólo oposto àquele em que o procurávamos.
    Note-se, todavia, que a sua técnica não é a do comum prestidigitador que desaparece simplesmente de onde estava, obrigando-nos a descobrir para onde foi. Pelo contrário, Dawkins está sempre presente, nunca deixa completamente de estar aí onde o encontrámos. Simplesmente, ele apenas fica para nos informar, com um sorriso zombeteiro, que já fugiu para outro sítio. Ele nunca desaparece na sua cartola: no instante em que esta ameaça engoli-lo, ele dá-lhe um piparote e, com um sorriso nos olhos, diz-nos que já partiu.
    Exemplo disto é o episódio do seu julgamento. As autoridades conseguiram detê-lo e colocá-lo perante o tribunal. Mas nunca conseguirão verdadeiramente prendê-lo. É ele mesmo que o demonstra zombando de quem o julga. Ninguém pode julgar o artful dodger – a não ser ele próprio –, já que ele se ri de qualquer juiz. Se aceitarmos a sentença de Camus (Le Mythe de Sysiphe) segundo a qual todo o destino pode ser superado pelo desprezo, então veremos como Jack Dawkins triunfa completamente sobre a sentença que o condena: perfeitamente consciente da inevitabilidade da sua condenação e da pena que lhe caberá, ele transforma o processo numa farsa da justiça. Quando lhe perguntam se tem algo a declarar, ele responde que não (embora depois fale tanto que o juiz tem de o interromper), porque não é ali que encontrará justiça ("“No,” replied the Dodger, “not here, for this ain’t the shop for justice”"). Mas é ele mesmo que esvazia de sentido a justiça legal – aquela que o condena sem conseguir atingi-lo, já que ele se ri da condenação. O juiz ouve-o e julga que ele apenas troça, fingindo-se indignado por não encontrar ali justiça. Falha assim em perceber que, por debaixo dessa troça, Dawkins lhe transmite uma verdade profunda: é antes a justiça que falha em encontrar o dodger.
    O dodger despreza o tribunal, despreza a justiça e despreza a lei. Quando Oliver lhe pergunta se ele não é um “prig”, ele garante que desdenharia ser qualquer outra coisa  ("“I’d scorn to be anything else.”"). É curioso registar a este propósito a evolução do termo em questão: se inicialmente “prig” designava um ladrão ou bandido, passou, com o tempo, a identificar um snob, alguém que observa as regras de bom comportamento ou de discurso adoptando uma postura de superioridade em virtude disso mesmo. Dawkins é, claro, um bandido, está na sua natureza o hábito do furto. E é um snob perante o tribunal, apresentando-se como um cavalheiro, exigindo, com sobranceria trocista, respeito pelos seus direitos, e questionando a legitimidade do tribunal para o julgar. De resto, ele é já um pouco snob entre os próprios bandidos: sempre zeloso no seu trabalho, aceita com naturalidade a primazia em habilidade que lhe atribuem.
    Snob como poucos, mas pronto a dar a mão aos mais necessitados (lamentando a dada altura que Oliver não possa vir a ser também um “prig”), o dodger desdenha ser qualquer outra coisa que não aquilo que é. Desdenharia, provavelmente, ser um cavalheiro. Descobrimos assim a profundidade da ironia com que ele se afirma um gentleman diante do tribunal. Não se trata apenas de ridicularizar a realidade evidente de não ser o que diz que é. Ele já é, no fim de contas, o cavalheiro que desejaria ser. É um cavalheiro, por assim dizer, invertido; um cavalheiro à sua imagem. Espelhando o gentleman que é uma pessoa de bem, cumpre as normas, é honesto e olha com desdém a plebe abaixo de si, Dawkins, gentleman às avessas, reflexo insubordinado do primeiro, é um cavalheiro bandido e desonesto, que viola as normas e olha com desdém os senhores acima de si. E o triunfo aqui é sem dúvida seu – porque quem olha para baixo estando em cima fracassa, pois falha em descer. Quem, ao invés, olha de cima quando tudo apontava que estivesse em baixo triunfa, porque pela ironia e pelo desprezo pode pisar o que bem entender. O desprezo de Dawkins não nasce da frustração disfarçada de quem se sente pisado, é antes o desprezo de quem gosta de viver abaixo porque sabe que é por aí que consegue ficar por cima.
    Dawkins parece desprezar até o dinheiro que ganha com tanta habilidade e que, na sua inegociável lealdade, entrega a Fagin. É como se para ele o importante não fossem o lenço ou a carteira, mas a arte de os surripiar sem ser apanhado. Nesta medida, ele é um parente afastado do burlão Jeff Peters, personagem da história "Innocents on Broadway" (O. Henry), que, encontrando um simplório que lhe entrega a ele e ao seu amigo Andy Tucker uma quantia de dinheiro para guardarem, vê-se obrigado a explicar ao colega que eles não podem simplesmente apoderar-se daquele dinheiro, assim sem mais. Não tanto porque seria demasiado fácil, mas porque não fizeram nada por isso – leia-se, não prepararam qualquer engodo, não orquestraram nenhuma armadilha – e tal faz com que não mereçam o dinheiro. Tucker riposta deliciosamente que os argumentos de Peters estão para lá de crítica ou de compreensão ("your arguments are past criticism or comprehension"). Também o dodger rejeitaria certamente apoderar-se do dinheiro que algum crédulo inconsciente lhe desse a guardar – faltaria o perigo, o desafio, a arte. É exactamente isso que, depois de condenado, o leva a garantir que não sairia da prisão, mesmo que o juiz e os guardas lho pedissem: mais uma vez, há sinceridade por detrás desta zombaria. Porque ele nunca aceitaria simplesmente sair por lhe abrirem a porta. O artful dodger sai pelos seus próprios meios, isto é, evade-se. Porque também ele, em suma, está para lá de crítica ou compreensão.
    Dawkins é o melhor aluno de Fagin no livro de Dickens, mas, se ousarmos transpor os limites daquele universo, podemos perguntar se ele não é também discípulo de Falstaff (Shakespeare, Henry IV), rei da subversão, mestre da representação, patrono dos zombadores. Como qualquer bom discípulo, também Dawkins transforma as lições do seu mestre. De acordo com Harold Bloom (Shakespeare – The Invention of the Human), o livre Fasltaff instrui-nos na liberdade em relação à sociedade ("Falstaff, who is free, instructs us in freedom – not a freedom in society, but from society"). A liberdade do dodger não é tão radical e, por outro lado, ele não aparenta possuir a vocação de Falstaff para ensinar,  falhando em doutrinar Oliver e tendo mais admiradores (como Charley Bates) do que propriamente seguidores. Mais do que professor, Dawkins parece um aluno genial, dos que já dominam tão bem qualquer lição que se lhes queira ensinar que vai inevitavelmente subvertê-la e expô-la ao ridículo. Se, ainda com Bloom, Falstaff brinca como as crianças porque não é verdadeiramente imoral nem amoral, habitando um outro reino, já Dawkins, criança que age e se veste como um adulto, habita o mundo muito real da moralidade. Ele é um verdadeiro imoral, mas não aquele simples que não consegue ou não quer cumprir as normas, e sim o que as domina e despreza porque para ele só fazem sentido quando viradas do avesso. Superior a quaisquer regras que a boa sociedade pretenda impor-lhe, o dodger precisa, ainda assim, dessas regras, mesmo que apenas para as subverter, já que é da e na subversão que ele vive. Deste modo, ele não está livre da sociedade, mas é livre dentro dela. Mestre da escapadela, o dodger não precisa de fugir da jaula em que o prendem para ser livre: quando garante às autoridades que não aceitaria a liberdade, mesmo que lha oferecessem, há uma outra verdade por detrás desta pretensa honra ofendida: ele já é livre, por mais enjaulado que pareça. Mais: é precisamente nesse momento em que as regras e as algemas parecem tê-lo seguro que ele se mostra mais livre que nunca.
   Apesar da barba branca, da barriga crescente ou da pele seca, Falstaff apresenta-se como um jovem. Nas palavras do próprio, nasceu já com cabelos brancos e barriga redonda ("I was born about three of the clock in the afternoon, with a white head, and something a round belly"). Velho desde o início no corpo e no conhecimento, mas criança eterna na propensão para o jogo e na liberdade, Falstaff desafia o tempo com seu espírito indomável. Já Jack Dawkins tem corpo de criança e as roupas de adulto estão-lhe desajustadas. Mas ele não é criança nenhuma, e é como verdadeiro adulto que acolhe todas as regras para delas troçar como se fosse uma criança. O  desafio ao tempo do artful dodger é feito mais uma vez às avessas: ele não é nenhum Peter Pan que se recusa a crescer apesar da idade ou do corpo; é sim um adulto que abdica de ser criança apesar do tamanho. Assim, se o tribunal não o trata como menor nem o deixa sair em liberdade apesar da idade, tal é apenas a mostra do respeito que ele merece.
   Dawkins também não tem, obviamente, o magistério da língua que demonstra Falstaff (a quem Bloom chama o "monarca da linguagem"), nem parece capaz de contagiar ninguém com a sua inegável espirituosidade (enquanto Falstaff gera espírito nos outros, como o próprio afiança: "I am not only witty in myself, but the cause that wit is in other men"). Ainda assim, tal como Falstaff vencerá sempre na espirituosidade do diálogo, o dodger ganhará sempre na astúcia do jogo. Quando Fagin alerta que é preciso acordar muito cedo para bater Dawkins ("you must get up very early in the morning, to win against the Dodger"), Bates acha que isso é um eufemismo: "Morning! (...) [Y]ou must put your boots on over-night, and have a telescope at each eye, and a opera-glass between your shoulders, if you want to come over him." Não adianta acordar cedo, porque o dodger levanta-se antes de todas as madrugadas. Aluno na habilidade e na representação, Dawkins revela-se perante o tribunal um actor tão capaz de transformar o seu papel como Falstaff a fazer de rei diante do príncipe Hal; tem perante as autoridades o mesmo descaramento que Falstaff revela quando garante ter sido ele a matar Harry Hotspur; e demonstra um toque do génio cómico de Falstaff na distância consciente que assume em relação ao papel de cavalheiro que representa e ridiculariza.
   Acima de tudo, a mestria do dodger nunca deve ser subestimada quando lidamos com ele. Quando Fagin oferece a Bill Sykes os serviços de Dawkins para este lhe trazer o dinheiro que Sykes pede, este rejeita, desconfiado, porque o astuto Dawkins é astuto em demasia (“The Artful’s a deal too artful”) e provavelmente desapareceria com o dinheiro. É assim Dawkins: a sua manha obriga-nos a permanecer alerta, porque nunca poderemos estar seguros de ter apreendido o mestre da fuga. Na famosa rejeição de Falstaff por Henry V, este afirma que não o conhece, apesar de o conhecer melhor que ninguém ("I know thee not, old man"). Mais uma vez, a inversão no caso do dodger serve para nos confirmar a sua natureza: quando o apresenta diante do juiz, o guarda garante que o conhece bem (“I know him well”), quando é óbvio que, apesar de perceber que se trata de um criminoso, ele não lhe apreende minimamente o espírito.
   Nem nós podemos ficar seguros de que já conhecemos por completo Jack Dawkins, ou de que, por conhecê-lo, ele não nos poderá mais apanhar em nenhum truque. Como Sykes avisa, o astuto dodger é demasiado astuto para nos fiarmos nele. Apesar do que sugere Fagin, não há hora a que possamos acordar, por mais cedo que seja, que nos permita apanhá-lo, porque o dodger é um peixe que não dorme. Se Falstaff é demasiado livre para conhecer limites ou barreiras, a liberdade de Dawkins é esguia e por isso, em vez de morrer dentro de grades, vive delas para se exibir.
   O dodger afirma que o tribunal que o julga não é a loja onde ele encontrará justiça. Isto é, a um tempo, mentira e verdade. É mentira porque é afinal este tribunal, povoado de oficiais e cavalheiros incapazes de lhe acompanhar o espírito – muito menos de disputar com ele –, que lhe permite brilhar na mestria da representação, no domínio da ironia. E assim, as autoridades que não querem ou não podem reconhecer-lhe o virtuosismo acabam por permitir-lhe obter justiça da única maneira que ele desejaria: furtando-a sem que eles dêem por isso. Mas é também verdade porque, obviamente, nunca tribunal tão terreno, tão desprovido de espírito, poderá fazer jus ao mestre da fuga. Que tribunal capaz de o fazer seria esse, tal não sabemos.