E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 22 de outubro de 2017

Humano, demasiado humano

  No livro Frankenstein, or The Modern Prometheus, de Mary Shelly, Victor Frankenstein é um cientista que consegue dar vida a um humanóide que ele próprio fabrica. De proporções enormes, com olhos amarelos e pele que mal esconde os músculos e veias, a criatura tem uma aparência monstruosa e é rejeitada com horror por todos os que a encontram (excepto pelo cego De Lacey, com quem fala por pouco tempo).

  O humanóide é um monstro para os olhos humanos, se bem que nunca comece por sê-lo por outra razão que não a sua aparência. Com efeito, ninguém parece disposto a dar uma oportunidade à bondade potencial que ele traz dentro de si. Pronta a oferecer afecto, amizade ou amor em troca do carinho de que precisa, a criatura encontra somente rejeição, medo e ódio. O próprio Frankenstein, seu criador, mesmo depois de alguma comoção ao ouvir o seu trágico relato, recua na intenção de lhe oferecer uma companheira, temendo que ela se revelasse tão maligna como ele.
  É óbvia a ironia aqui presente: as pessoas horrorizam-se porque a composição física do monstro, entre outras coisas, lhes mostra em parte o interior deste, mas afinal limitam-se a julgá-lo pela aparência e nunca pelos sentimentos, pensamentos ou emoções que ele tenta mostrar-lhes. E isto apesar de o monstro revelar uma inegável riqueza intelectual e emocional, e de toda essa vida interior estar completamente à mostra em todas as suas conversas, atitudes e relatos: sem rosto para se mostrar pessoa, o monstro exibe a sua personalidade fazendo exterior o que traz dentro de si. As pessoas que encontra, contudo, limitadas pelas aparências, não vêem nada, porque não o vêem a ele. O único com quem estabelece um breve diálogo com simpatia é precisamente o cego que não lhe vê o rosto e, por isso, pode ver mais que os outros.
  O monstro exibe a pessoa, mas ninguém a vê. A hipótese de descobrirem a pessoa que (não) se esconde na criatura está condenada à partida: a monstruosidade aparente impossibilita o reconhecimento de qualquer traço de humanidade, de tal modo que a criatura é sempre um completo outro, algo não-humano, que não merece sequer um nome: "knowing the name of something has traditionally conferred magical control over it, as well as giving it a place in an ordered universe. Frankenstein’s creation is simply 'the Monster' — aptly communicating its total otherness and man’s impotence before it." (Martin Tropp, "The Monster"). A esta luz, mais curioso se torna notar que o monstro é, no fim de contas, mais humano do que qualquer uma das pessoas que vai encontrando, incluindo o seu criador: "The greatest paradox and most astonishing achievement of Mary Shelley’s novel is that the monster is more human than his creator. This nameless being, as much a Modern Adam as his creator is a Modern Prometheus, is more lovable than his creator and more hateful, more to be pitied and more to be feared" (Harold Bloom, na introdução à obra que edita sobre o livro de Mary Shelley).
  Em Frankenstein, ninguém é mais humano do que o monstro, porque ninguém possui a sua riqueza imaginativa intelectual e emocional, nem a consciência que ele demonstra em toda a sua sensibilidade, além de que ninguém vive a variedade de situações que o encurralam. Capaz de aprender, de julgar e de se indignar, ele tem o mais profundo, ainda que nem sempre apurado, sentido de justiça. Vive ao limite todas as emoções e sentimentos que uma pessoa pode experimentar: revela uma propensão natural para a bondade e o amor, depositando esperança na idealizada família pela qual ansiava ser acolhido. Escorraçado por todos, conhece a solidão e o abandono, bem como o isolamento, quando sabe que nunca fará parte da comunidade. O que não o impede de ser paciente com os impacientes que deseja que o oiçam. É capaz de altruísmo nos gestos gratuitos de ajuda a necessitados que encontra, mas também de egoísmo e pura maldade quando, por exemplo, descarrega as suas frustrações em inocentes. Sente inveja e raiva contra o seu criador pela felicidade que este pretendia prosseguir depois de negar ao monstro a única possibilidade de obter a sua, o que o leva a experimentar a vingança contra Victor. Mas depois dessa vingança descobre o arrependimento e o perdão. E, claro, o tratamento desigual que recebe, sempre moldado pelo seu rosto e não pelas suas acções ou palavras, leva-o a vivenciar o mais desperto dos sentimentos humanos: o da injustiça.
  O monstro não é mais humano apenas na abrangência da sua consciência, mas também na intensidade e profundidade de cada um dos momentos que povoam essa consciência. A sua racionalidade é mais sólida que a de Frankenstein, e a sua argumentação mais sustentada e ponderada. A sua bondade é talvez mais valiosa que a de Justine, porque mais inesperada. A sua inocência é mais credível que a do pequeno William, que também o julga e maltrata pela aparência, mas a quem supera também na infantilidade da sua maldade, que o leva a matar a criança tanto para a calar como para se vingar do seu criador. O seu sentido de responsabilidade é também o mais apurado: por contraposição ao de Frankenstein, que por diversas vezes foge das suas responsabilidades e demora a assumir que os seus actos têm consequências, a criatura mostra sempre consciência e é sempre senhora dos seus actos, indo ao ponto de assumir a final a condenação e castigo que entende merecerem.
  Acima de tudo, o monstro é humano na procura constante dos outros: não apenas no desespero por ser aceite e na necessidade de acolhimento, mas também na empatia extrema de que é capaz. Como refere Harold Bloom, o fim de Frankenstein (imolado num túmulo de gelo) é perfeitamente adequado a alguém que nunca atingiu por completo um sentido da existência dos outros ("a fit end for a being who has never achieved a full sense of another’s existence"). O monstro, ao invés, vive virado para o exterior, o seu percurso é uma busca constante de compreender e ser compreendido, a sua humanização faz-se no confronto com outros seres (ainda com Bloom: "Frankenstein is the mind and emotions turned in upon themselves, and his creature is the mind and emotions turned imaginatively outward, seeking a greater humanization through a confrontation of other selves"). O monstro é, enfim, o único verdadeiramente capaz de uma empatia radical, de se colocar completamente no lugar do outro, de assumir o ponto de vista daqueles que o rejeitam: quando encontra o seu reflexo na água, o monstro descobre-se repulsivo e horroriza-se com a sua própria aparência. Como diz Tropp, olha-se como um humano a olhar uma coisa hedionda ("The Monster (...) looks at the reflection as if it were a man looking at some hideous thing"). A humanidade da sua empatia vai assim ao ponto de lhe permitir situar-se no lugar de um humano que olha outra criatura como uma coisa que, apesar de pensar e de sentir, é só uma coisa. A empatia do monstro, por outras palavras, deixa-o por uns instantes na posição de um humano que é incapaz de empatia e se revela assim menos humano. Se o monstro continua humano apesar disso – ou é-o ainda mais desse modo –, é precisamente porque ele mesmo é a coisa inumana rejeitada.
  Segundo o relato de Nietzsche (Also sprach Zarathustra), quando Zaratustra encontra o "homem mais feio", este explica que matou Deus por não suportar que Ele o olhasse e tivesse pena de si. O homem afirma-se rico na sua fealdade, confortando-se a si mesmo na ausência do seu criador. Também o monstro do livro de Shelley mata o seu criador (ou pelo menos reclama para si a autoria da morte de Frankenstein), mas com os motivos inversos. O drama do monstro é precisamente o de ser tão horrendo que os outros, incluindo o seu criador, não suportam olhar para ele nem se mostram dispostos a compreendê-lo. Se o homem mais feio mata Deus por ir ao seu encontro, o monstro, feio e pobre, mata o seu pai por fugir de si.
  O horror e a aversão que as diversas pessoas sentem pelo monstro indiciam que ele é demasiado feio para ser humano. Mas o drama emocional da sua história, o isolamento radical a que parece condenado e a nobre empatia de que se mostra capaz revelam-nos uma outra verdade, mais profunda e cheia de significado: a de que ele é demasiado humano para ser verdadeiramente feio.

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