No livro Frankenstein, or The Modern Prometheus, de Mary Shelly, Victor Frankenstein é um cientista que consegue dar vida a um humanóide que ele próprio fabrica. De proporções enormes, com olhos amarelos e pele que mal esconde os músculos e veias, a criatura tem uma aparência monstruosa e é rejeitada com horror por todos os que a encontram (excepto pelo cego De Lacey, com quem fala por pouco tempo).
O humanóide é um monstro para os olhos humanos, se bem que nunca comece por sê-lo por outra razão que não a sua aparência. Com efeito, ninguém parece disposto a dar uma oportunidade à bondade potencial que ele traz dentro de si. Pronta a oferecer afecto, amizade ou amor em troca do carinho de que precisa, a criatura encontra somente rejeição, medo e ódio. O próprio Frankenstein, seu criador, mesmo depois de alguma comoção ao ouvir o seu trágico relato, recua na intenção de lhe oferecer uma companheira, temendo que ela se revelasse tão maligna como ele.
É óbvia a ironia aqui presente: as pessoas horrorizam-se porque a composição física do monstro, entre outras coisas, lhes mostra em parte o interior deste, mas afinal limitam-se a julgá-lo pela aparência e nunca pelos sentimentos, pensamentos ou emoções que ele tenta mostrar-lhes. E isto apesar de o monstro revelar uma inegável riqueza intelectual e emocional, e de toda essa vida interior estar completamente à mostra em todas as suas conversas, atitudes e relatos: sem rosto para se mostrar pessoa, o monstro exibe a sua personalidade fazendo exterior o que traz dentro de si. As pessoas que encontra, contudo, limitadas pelas aparências, não vêem nada, porque não o vêem a ele. O único com quem estabelece um breve diálogo com simpatia é precisamente o cego que não lhe vê o rosto e, por isso, pode ver mais que os outros.
O monstro exibe a pessoa, mas ninguém a vê. A hipótese de descobrirem a pessoa que (não) se esconde na criatura está condenada à partida: a monstruosidade aparente impossibilita o reconhecimento de qualquer traço de humanidade, de tal modo que a criatura é sempre um completo outro, algo não-humano, que não merece sequer um nome: "knowing the name of something has traditionally conferred magical control over it, as well as giving it a place in an ordered universe. Frankenstein’s creation is simply 'the Monster' — aptly communicating its total otherness and man’s impotence before it." (Martin Tropp, "The Monster"). A esta luz, mais curioso se torna notar que o monstro é, no fim de contas, mais humano do que qualquer uma das pessoas que vai encontrando, incluindo o seu criador: "The greatest paradox and most astonishing achievement of Mary Shelley’s novel is that the monster is more human than his creator. This nameless being, as much a Modern Adam as his creator is a Modern Prometheus, is more lovable than his creator and more hateful, more to be pitied and more to be feared" (Harold Bloom, na introdução à obra que edita sobre o livro de Mary Shelley).
Em Frankenstein, ninguém é mais humano do que o monstro, porque ninguém possui a sua riqueza imaginativa intelectual e emocional, nem a consciência que ele demonstra em toda a sua sensibilidade, além de que ninguém vive a variedade de situações que o encurralam. Capaz de aprender, de julgar e de se indignar, ele tem o mais profundo, ainda que nem sempre apurado, sentido de justiça. Vive ao limite todas as emoções e sentimentos que uma pessoa pode experimentar: revela uma propensão natural para a bondade e o amor, depositando esperança na idealizada família pela qual ansiava ser acolhido. Escorraçado por todos, conhece a solidão e o abandono, bem como o isolamento, quando sabe que nunca fará parte da comunidade. O que não o impede de ser paciente com os impacientes que deseja que o oiçam. É capaz de altruísmo nos gestos gratuitos de ajuda a necessitados que encontra, mas também de egoísmo e pura maldade quando, por exemplo, descarrega as suas frustrações em inocentes. Sente inveja e raiva contra o seu criador pela felicidade que este pretendia prosseguir depois de negar ao monstro a única possibilidade de obter a sua, o que o leva a experimentar a vingança contra Victor. Mas depois dessa vingança descobre o arrependimento e o perdão. E, claro, o tratamento desigual que recebe, sempre moldado pelo seu rosto e não pelas suas acções ou palavras, leva-o a vivenciar o mais desperto dos sentimentos humanos: o da injustiça.
O monstro não é mais humano apenas na abrangência da sua consciência, mas também na intensidade e profundidade de cada um dos momentos que povoam essa consciência. A sua racionalidade é mais sólida que a de Frankenstein, e a sua argumentação mais sustentada e ponderada. A sua bondade é talvez mais valiosa que a de Justine, porque mais inesperada. A sua inocência é mais credível que a do pequeno William, que também o julga e maltrata pela aparência, mas a quem supera também na infantilidade da sua maldade, que o leva a matar a criança tanto para a calar como para se vingar do seu criador. O seu sentido de responsabilidade é também o mais apurado: por contraposição ao de Frankenstein, que por diversas vezes foge das suas responsabilidades e demora a assumir que os seus actos têm consequências, a criatura mostra sempre consciência e é sempre senhora dos seus actos, indo ao ponto de assumir a final a condenação e castigo que entende merecerem.
Acima de tudo, o monstro é humano na procura constante dos outros: não apenas no desespero por ser aceite e na necessidade de acolhimento, mas também na empatia extrema de que é capaz. Como refere Harold Bloom, o fim de Frankenstein (imolado num túmulo de gelo) é perfeitamente adequado a alguém que nunca atingiu por completo um sentido da existência dos outros ("a fit end for a being who has never achieved a full sense of another’s existence"). O monstro, ao invés, vive virado para o exterior, o seu percurso é uma busca constante de compreender e ser compreendido, a sua humanização faz-se no confronto com outros seres (ainda com Bloom: "Frankenstein is the mind and emotions turned in upon themselves, and his creature is the mind and emotions turned imaginatively outward, seeking a greater humanization through a confrontation of other selves"). O monstro é, enfim, o único verdadeiramente capaz de uma empatia radical, de se colocar completamente no lugar do outro, de assumir o ponto de vista daqueles que o rejeitam: quando encontra o seu reflexo na água, o monstro descobre-se repulsivo e horroriza-se com a sua própria aparência. Como diz Tropp, olha-se como um humano a olhar uma coisa hedionda ("The Monster (...) looks at the reflection as if it were a man looking at some hideous thing"). A humanidade da sua empatia vai assim ao ponto de lhe permitir situar-se no lugar de um humano que olha outra criatura como uma coisa que, apesar de pensar e de sentir, é só uma coisa. A empatia do monstro, por outras palavras, deixa-o por uns instantes na posição de um humano que é incapaz de empatia e se revela assim menos humano. Se o monstro continua humano apesar disso – ou é-o ainda mais desse modo –, é precisamente porque ele mesmo é a coisa inumana rejeitada.
Segundo o relato de Nietzsche (Also sprach Zarathustra), quando Zaratustra encontra o "homem mais feio", este explica que matou Deus por não suportar que Ele o olhasse e tivesse pena de si. O homem afirma-se rico na sua fealdade, confortando-se a si mesmo na ausência do seu criador. Também o monstro do livro de Shelley mata o seu criador (ou pelo menos reclama para si a autoria da morte de Frankenstein), mas com os motivos inversos. O drama do monstro é precisamente o de ser tão horrendo que os outros, incluindo o seu criador, não suportam olhar para ele nem se mostram dispostos a compreendê-lo. Se o homem mais feio mata Deus por ir ao seu encontro, o monstro, feio e pobre, mata o seu pai por fugir de si.
O horror e a aversão que as diversas pessoas sentem pelo monstro indiciam que ele é demasiado feio para ser humano. Mas o drama emocional da sua história, o isolamento radical a que parece condenado e a nobre empatia de que se mostra capaz revelam-nos uma outra verdade, mais profunda e cheia de significado: a de que ele é demasiado humano para ser verdadeiramente feio.
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