The Artful Dodger (Joseph Clayton Clarke - "Kyd")
No livro Oliver Twist (Charles Dickens), Jack Dawkins, ou "Artful Dodger", é um carteirista, líder do bando de crianças criminosas treinadas pelo velho Fagin.
Dawkins é um personagem feito de contrastes. Começa por sê-lo em comparação com Oliver: enquanto este é naturalmente bom e passa o livro numa sentimentalidade passiva que, em última análise, acaba por salvá-lo, o corrompido dodger age sempre cheio de energia e descaramento. Nas palavras de Hillis Miller ["What the lonley child saw: Charles Dickens's Oliver Twist"], "...the Artful Dodger, with his irrepressible energy, his resolute (and witty) defiance of all constituted authority, represents the other possibility. (...) He has begun in Oliver's situation, but he has reacted in exactly the opposite way." Mas faz-se também de contrastes em si mesmo: é uma criança vestida de adulto; é o amigo de Oliver, a quem tira da rua, mas trai-o na primeira ocasião para tal; a sua manha e habilidade para enganar obrigam quem quer que o conheça a desconfiar sempre dele, mas é ao mesmo tempo o mais confiável e fiel dos discípulos de Fagin, a quem entrega os ganhos dos seus truques; capaz de grandes golpes sem ser notado, acaba apanhado por um furto de pequena monta.
É de resto esta habilidade de se escapar que dá a outra nota fundamental à sua personalidade. Ele não é apenas astuto ("artful"): domina também a arte de se escapulir ("to dodge": esquivar-se). E o próprio contraste que marca os traços fundamentais que o desenham ajuda a intuir essa mesma arte: ele parece escapar-se sempre que julgamos apreendê-lo – no momento em que pensamos tê-lo fixado, descobrimo-lo no pólo oposto àquele em que o procurávamos.
Note-se, todavia, que a sua técnica não é a do comum prestidigitador que desaparece simplesmente de onde estava, obrigando-nos a descobrir para onde foi. Pelo contrário, Dawkins está sempre presente, nunca deixa completamente de estar aí onde o encontrámos. Simplesmente, ele apenas fica para nos informar, com um sorriso zombeteiro, que já fugiu para outro sítio. Ele nunca desaparece na sua cartola: no instante em que esta ameaça engoli-lo, ele dá-lhe um piparote e, com um sorriso nos olhos, diz-nos que já partiu.
Exemplo disto é o episódio do seu julgamento. As autoridades conseguiram detê-lo e colocá-lo perante o tribunal. Mas nunca conseguirão verdadeiramente prendê-lo. É ele mesmo que o demonstra zombando de quem o julga. Ninguém pode julgar o artful dodger – a não ser ele próprio –, já que ele se ri de qualquer juiz. Se aceitarmos a sentença de Camus (Le Mythe de Sysiphe) segundo a qual todo o destino pode ser superado pelo desprezo, então veremos como Jack Dawkins triunfa completamente sobre a sentença que o condena: perfeitamente consciente da inevitabilidade da sua condenação e da pena que lhe caberá, ele transforma o processo numa farsa da justiça. Quando lhe perguntam se tem algo a declarar, ele responde que não (embora depois fale tanto que o juiz tem de o interromper), porque não é ali que encontrará justiça ("“No,” replied the Dodger, “not here, for this ain’t the shop for justice”"). Mas é ele mesmo que esvazia de sentido a justiça legal – aquela que o condena sem conseguir atingi-lo, já que ele se ri da condenação. O juiz ouve-o e julga que ele apenas troça, fingindo-se indignado por não encontrar ali justiça. Falha assim em perceber que, por debaixo dessa troça, Dawkins lhe transmite uma verdade profunda: é antes a justiça que falha em encontrar o dodger.
O dodger despreza o tribunal, despreza a justiça e despreza a lei. Quando Oliver lhe pergunta se ele não é um “prig”, ele garante que desdenharia ser qualquer outra coisa ("“I’d scorn to be anything else.”"). É curioso registar a este propósito a evolução do termo em questão: se inicialmente “prig” designava um ladrão ou bandido, passou, com o tempo, a identificar um snob, alguém que observa as regras de bom comportamento ou de discurso adoptando uma postura de superioridade em virtude disso mesmo. Dawkins é, claro, um bandido, está na sua natureza o hábito do furto. E é um snob perante o tribunal, apresentando-se como um cavalheiro, exigindo, com sobranceria trocista, respeito pelos seus direitos, e questionando a legitimidade do tribunal para o julgar. De resto, ele é já um pouco snob entre os próprios bandidos: sempre zeloso no seu trabalho, aceita com naturalidade a primazia em habilidade que lhe atribuem.
Snob como poucos, mas pronto a dar a mão aos mais necessitados (lamentando a dada altura que Oliver não possa vir a ser também um “prig”), o dodger desdenha ser qualquer outra coisa que não aquilo que é. Desdenharia, provavelmente, ser um cavalheiro. Descobrimos assim a profundidade da ironia com que ele se afirma um gentleman diante do tribunal. Não se trata apenas de ridicularizar a realidade evidente de não ser o que diz que é. Ele já é, no fim de contas, o cavalheiro que desejaria ser. É um cavalheiro, por assim dizer, invertido; um cavalheiro à sua imagem. Espelhando o gentleman que é uma pessoa de bem, cumpre as normas, é honesto e olha com desdém a plebe abaixo de si, Dawkins, gentleman às avessas, reflexo insubordinado do primeiro, é um cavalheiro bandido e desonesto, que viola as normas e olha com desdém os senhores acima de si. E o triunfo aqui é sem dúvida seu – porque quem olha para baixo estando em cima fracassa, pois falha em descer. Quem, ao invés, olha de cima quando tudo apontava que estivesse em baixo triunfa, porque pela ironia e pelo desprezo pode pisar o que bem entender. O desprezo de Dawkins não nasce da frustração disfarçada de quem se sente pisado, é antes o desprezo de quem gosta de viver abaixo porque sabe que é por aí que consegue ficar por cima.
Dawkins parece desprezar até o dinheiro que ganha com tanta habilidade e que, na sua inegociável lealdade, entrega a Fagin. É como se para ele o importante não fossem o lenço ou a carteira, mas a arte de os surripiar sem ser apanhado. Nesta medida, ele é um parente afastado do burlão Jeff Peters, personagem da história "Innocents on Broadway" (O. Henry), que, encontrando um simplório que lhe entrega a ele e ao seu amigo Andy Tucker uma quantia de dinheiro para guardarem, vê-se obrigado a explicar ao colega que eles não podem simplesmente apoderar-se daquele dinheiro, assim sem mais. Não tanto porque seria demasiado fácil, mas porque não fizeram nada por isso – leia-se, não prepararam qualquer engodo, não orquestraram nenhuma armadilha – e tal faz com que não mereçam o dinheiro. Tucker riposta deliciosamente que os argumentos de Peters estão para lá de crítica ou de compreensão ("your arguments are past criticism or comprehension"). Também o dodger rejeitaria certamente apoderar-se do dinheiro que algum crédulo inconsciente lhe desse a guardar – faltaria o perigo, o desafio, a arte. É exactamente isso que, depois de condenado, o leva a garantir que não sairia da prisão, mesmo que o juiz e os guardas lho pedissem: mais uma vez, há sinceridade por detrás desta zombaria. Porque ele nunca aceitaria simplesmente sair por lhe abrirem a porta. O artful dodger sai pelos seus próprios meios, isto é, evade-se. Porque também ele, em suma, está para lá de crítica ou compreensão.
Dawkins é o melhor aluno de Fagin no livro de Dickens, mas, se ousarmos transpor os limites daquele universo, podemos perguntar se ele não é também discípulo de Falstaff (Shakespeare, Henry IV), rei da subversão, mestre da representação, patrono dos zombadores. Como qualquer bom discípulo, também Dawkins transforma as lições do seu mestre. De acordo com Harold Bloom (Shakespeare – The Invention of the Human), o livre Fasltaff instrui-nos na liberdade em relação à sociedade ("Falstaff, who is free, instructs us in freedom – not a freedom in society, but from society"). A liberdade do dodger não é tão radical e, por outro lado, ele não aparenta possuir a vocação de Falstaff para ensinar, falhando em doutrinar Oliver e tendo mais admiradores (como Charley Bates) do que propriamente seguidores. Mais do que professor, Dawkins parece um aluno genial, dos que já dominam tão bem qualquer lição que se lhes queira ensinar que vai inevitavelmente subvertê-la e expô-la ao ridículo. Se, ainda com Bloom, Falstaff brinca como as crianças porque não é verdadeiramente imoral nem amoral, habitando um outro reino, já Dawkins, criança que age e se veste como um adulto, habita o mundo muito real da moralidade. Ele é um verdadeiro imoral, mas não aquele simples que não consegue ou não quer cumprir as normas, e sim o que as domina e despreza porque para ele só fazem sentido quando viradas do avesso. Superior a quaisquer regras que a boa sociedade pretenda impor-lhe, o dodger precisa, ainda assim, dessas regras, mesmo que apenas para as subverter, já que é da e na subversão que ele vive. Deste modo, ele não está livre da sociedade, mas é livre dentro dela. Mestre da escapadela, o dodger não precisa de fugir da jaula em que o prendem para ser livre: quando garante às autoridades que não aceitaria a liberdade, mesmo que lha oferecessem, há uma outra verdade por detrás desta pretensa honra ofendida: ele já é livre, por mais enjaulado que pareça. Mais: é precisamente nesse momento em que as regras e as algemas parecem tê-lo seguro que ele se mostra mais livre que nunca.
Apesar da barba branca, da barriga crescente ou da pele seca, Falstaff apresenta-se como um jovem. Nas palavras do próprio, nasceu já com cabelos brancos e barriga redonda ("I was born about three of the clock in the afternoon, with a white head, and something a round belly"). Velho desde o início no corpo e no conhecimento, mas criança eterna na propensão para o jogo e na liberdade, Falstaff desafia o tempo com seu espírito indomável. Já Jack Dawkins tem corpo de criança e as roupas de adulto estão-lhe desajustadas. Mas ele não é criança nenhuma, e é como verdadeiro adulto que acolhe todas as regras para delas troçar como se fosse uma criança. O desafio ao tempo do artful dodger é feito mais uma vez às avessas: ele não é nenhum Peter Pan que se recusa a crescer apesar da idade ou do corpo; é sim um adulto que abdica de ser criança apesar do tamanho. Assim, se o tribunal não o trata como menor nem o deixa sair em liberdade apesar da idade, tal é apenas a mostra do respeito que ele merece.
Dawkins também não tem, obviamente, o magistério da língua que demonstra Falstaff (a quem Bloom chama o "monarca da linguagem"), nem parece capaz de contagiar ninguém com a sua inegável espirituosidade (enquanto Falstaff gera espírito nos outros, como o próprio afiança: "I am not only witty in myself, but the cause that wit is in other men"). Ainda assim, tal como Falstaff vencerá sempre na espirituosidade do diálogo, o dodger ganhará sempre na astúcia do jogo. Quando Fagin alerta que é preciso acordar muito cedo para bater Dawkins ("you must get up very early in the morning, to win against the Dodger"), Bates acha que isso é um eufemismo: "Morning! (...) [Y]ou must put your boots on over-night, and have a telescope at each eye, and a opera-glass between your shoulders, if you want to come over him." Não adianta acordar cedo, porque o dodger levanta-se antes de todas as madrugadas. Aluno na habilidade e na representação, Dawkins revela-se perante o tribunal um actor tão capaz de transformar o seu papel como Falstaff a fazer de rei diante do príncipe Hal; tem perante as autoridades o mesmo descaramento que Falstaff revela quando garante ter sido ele a matar Harry Hotspur; e demonstra um toque do génio cómico de Falstaff na distância consciente que assume em relação ao papel de cavalheiro que representa e ridiculariza.
Acima de tudo, a mestria do dodger nunca deve ser subestimada quando lidamos com ele. Quando Fagin oferece a Bill Sykes os serviços de Dawkins para este lhe trazer o dinheiro que Sykes pede, este rejeita, desconfiado, porque o astuto Dawkins é astuto em demasia (“The Artful’s a deal too artful”) e provavelmente desapareceria com o dinheiro. É assim Dawkins: a sua manha obriga-nos a permanecer alerta, porque nunca poderemos estar seguros de ter apreendido o mestre da fuga. Na famosa rejeição de Falstaff por Henry V, este afirma que não o conhece, apesar de o conhecer melhor que ninguém ("I know thee not, old man"). Mais uma vez, a inversão no caso do dodger serve para nos confirmar a sua natureza: quando o apresenta diante do juiz, o guarda garante que o conhece bem (“I know him well”), quando é óbvio que, apesar de perceber que se trata de um criminoso, ele não lhe apreende minimamente o espírito.
Nem nós podemos ficar seguros de que já conhecemos por completo Jack Dawkins, ou de que, por conhecê-lo, ele não nos poderá mais apanhar em nenhum truque. Como Sykes avisa, o astuto dodger é demasiado astuto para nos fiarmos nele. Apesar do que sugere Fagin, não há hora a que possamos acordar, por mais cedo que seja, que nos permita apanhá-lo, porque o dodger é um peixe que não dorme. Se Falstaff é demasiado livre para conhecer limites ou barreiras, a liberdade de Dawkins é esguia e por isso, em vez de morrer dentro de grades, vive delas para se exibir.
O dodger afirma que o tribunal que o julga não é a loja onde ele encontrará justiça. Isto é, a um tempo, mentira e verdade. É mentira porque é afinal este tribunal, povoado de oficiais e cavalheiros incapazes de lhe acompanhar o espírito – muito menos de disputar com ele –, que lhe permite brilhar na mestria da representação, no domínio da ironia. E assim, as autoridades que não querem ou não podem reconhecer-lhe o virtuosismo acabam por permitir-lhe obter justiça da única maneira que ele desejaria: furtando-a sem que eles dêem por isso. Mas é também verdade porque, obviamente, nunca tribunal tão terreno, tão desprovido de espírito, poderá fazer jus ao mestre da fuga. Que tribunal capaz de o fazer seria esse, tal não sabemos.
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