E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O outro jogo

  No conto "Ein Kampf", de Patrick Süskind, dois xadrezistas defrontam-se no parque perante o olhar atento de um conjunto de pessoas. Um dos jogadores, o mais jovem, é um desconhecido que atrai a curiosidade do público. Sem dizer ou fazer nada a não ser rolar o cigarro nos dedos e jogar, a sua serenidade, elegância e descontracção causam admiração nos espectadores. Algo de indefinível dá-lhe um magnetismo que deixa todos os outros seguros de que é um génio e vai sair vitorioso. O seu adversário – Jean –, pelo contrário, é conhecido dos presentes. Com cerca de setenta anos, provoca neles aversão, tanto pela aparência "medonha" como pelo facto de nunca ter sido derrotado. Todos estão seguros de que é chegada a hora. Mas a partida termina com a vitória de Jean, sem que ninguém tenha explicação clara sobre o que sucedeu. A verdade é que o estranho, que todos julgaram um génio, jogou como teria jogado um jogador muito fraco ou, pelo menos, muito inexperiente. A tal ponto que Jean – não fora a aura do desconhecido também o ter impressionado e o ter deixado ainda mais prudente –, em condições normais, teria acabado o jogo logo na primeira jogada, tal a inépcia do jovem. Mas depois da partida, quando volta sozinho para casa, Jean sente que nunca jogou tão mal e que sofreu uma derrota "terrível e definitiva". Convence-se disto de tal modo que resolve não voltar a jogar.

  Ao longo da partida, os espectadores vão reagindo a cada jogada. Todos os períodos de reflexão de Jean são alvo de impaciência e todos os seus movimentos são recebidos com desdém, fastio e menosprezo. São sempre explicáveis segundo uma lógica que é comum à da assistência, são sempre expectáveis, mesmo quando não esperados, sempre razoáveis, mesmo que nunca lhe dêem razão. De facto, apesar de nunca o terem vencido, não conseguem admirá-lo: não o tomam como jogador brilhante, capaz de rasgos inesperados e empolgantes. Não o vêem como substancialmente diferente, como especial, apesar de ele ganhar sempre. Jean joga como eles, só que melhor. Se vence é porque não comete erros – ou comete menos. Mas o seu jogo – seguro, cauteloso e eficaz – não empolga nem emociona. Assim, o labor sério de Jean há-de dar-lhe sempre a vitória, mas nunca lhe dará o público.
  Tudo ao contrário se passa com o desconhecido. As suas jogadas são imprevisíveis e surpreendentes. Os riscos que corre em cada movimento empolgam a audiência. A indiferença perante o perigo provoca nela admiração. As suas jogadas podem ser as mesmas que teria qualquer inapto, mas a confiança que demonstra em cada gesto, a segurança que exibe em relação a cada lance e a prontidão com que responde a cada cálculo do oponente transformam completamente o significado dessas jogadas: joga como um louco, mas é um génio; decide como um inconsciente, mas nada lhe escapa; sofre perdas como quem é incapaz de antecipar seja o que for, mas nunca é surpreendido. Assim, o jovem nunca ganhará a partida, mas o público pertence-lhe.
  O desconhecido tem tudo para ser um génio – excepto a genialidade. Jean sente que perdeu. Há algo no seu adversário que ele não conseguiu vencer, que nunca poderá derrubar, porque não apreendeu sequer. Também ele, tal como o público, se impressionou com este indivíduo. Julgou que ia perder, foi mais cauteloso que nunca. Acabou por ganhar e, no fim de contas, sente-se derrotado. Esse algo que Jean não quebrou, não foi capaz de deitar abaixo, é indestrutível para ele, porque não consegue apreendê-lo. É algo que não pode captar, não pode agarrar e destruir ou guardar. Porque esse algo não é nada. O jovem não escondia o que quer que fosse: tudo o que tinha estava exibido, e, assim, Jean não pode ganhar este outro jogo, porque não há nada que ele possa verdadeiramente vencer. Jean disputou a partida como se o jovem fosse o génio que parecia. Se o caso fosse tão simples, se o seu oponente fosse um génio do xadrez, tudo teria corrido sem males de maior para Jean. Porque ele próprio, como confessa a si mesmo, já desejava perder, nem que fosse para acalmar a fúria do público invejoso contra si. Mas o que se passava era outra coisa: o jovem não era simplesmente um génio do xadrez capaz de jogadas brilhantes, lances arriscados e vitórias dramáticas. O seu jogo era outro, e nesse outro jogo Jean perdeu.
  Há de facto outro jogo disputado durante esta partida. Um jogo que toma a partida de xadrez por objecto, mas não se confunde com ela. Se pensarmos em jogos como o póquer, por exemplo, começamos por notar que em teoria, quem tem as melhores cartas deveria vencer. Há um jogo, no entanto, paralelo ao das cartas e que decorre em simultâneo: o do bluff. Um jogador com cartas piores pode mesmo vencer graças a um bluff eficaz. Ora, na história de Süskind, somos levados ainda mais longe nesta separação: no póquer, o bluff pode ser essencial para determinar o vencedor, mas a disputa paralela entre Jean e o estranho não está tão ligada ao que se passa no tabuleiro. Com efeito, apesar de copiosamente derrotado nesse plano alternativo, Jean ganha a partida de xadrez. Aquele outro jogo não é, como se vê, este jogo de xadrez, embora seja jogado através dele. A partida de xadrez funciona como pretexto para o verdadeiro jogo ser jogado. Que outro jogo é esse?
  Quando o jovem avança uma das suas peças num movimento arriscado, ninguém o toma por inconsciente ou inapto, mas por arrojado. À medida que vai sujeitando as suas peças a um massacre, ninguém o vê como suicida, mas sim como mestre brilhante. Quando sacrifica peças importantes sem aparentemente ganhar nada com isso, tomam-no, não por imbecil, mas sim genial. Se, no final, as pessoas ficam um pouco surpreendidas ao perceberem que nada de especial aconteceu no que respeita ao xadrez propriamente dito – o desconhecido sofreu uma derrota sem apelo nem agravo –, é porque acabaram por confundir os jogos. Para percebermos a confusão, notemos o modo como o seu adversário vive a situação.
  Normalmente, Jean percebe o que se passa durante o jogo. Compreende, não só o que acontece no tabuleiro, como também os raciocínios do outro xadrezista. Joga pela mesma lógica que guia os outros – tem, simplesmente, melhor domínio da mesma. Assim, se este estranho fosse realmente um xadrezista genial, Jean continuaria a compreender e a dominar os acontecimentos fora do tabuleiro. A racionalidade permaneceria a mesma e Jean teria simplesmente encontrado alguém melhor que ele a usá-la. Mas não é isto o que se passa. A lógica deste jovem é outra. Ele não sabe jogar, ou joga muito mal, mas isso não o preocupa. Ele não joga sequer como se estivesse seguro de vencer, mas sim como quem está seguro de vencer ou perder, sendo indiferente qual dos desenlaces se vem a produzir. Podia ser alguém que não compreende o jogo e acaba engolido por ele, mas, em vez disso, tudo indica que o compreende tão bem que a partida é para ele uma brincadeira – a ponto de não fazer sequer diferença ganhar ou perder. Esta é uma lógica que escapa completamente a Jean. A expectativa gerada em torno do desenlace da disputa só se percebe na óptica de quem julgava que este rapaz tinha algum segredo, alguma carta na manga que lhe permitiria ganhar o jogo ou, pelo menos, inventar uma jogada genial. Mas tal não teria sentido nesta história, porque o jogo do desconhecido é outro. E não se trata de perder uma peça porque secretamente se planeia ganhar outra – como faria um jogador habilidoso – ou porque se fracassou uma qualquer jogada tentada – como aconteceria com um simples mau jogador –, mas sim de perder uma peça com a confiança de quem a avança sem hesitações porque nada tem a perder, porque perder uma peça não é perder nada, porque perder o jogo não faz diferença nenhuma. O desconhecido joga com a descontracção de quem jogaria a vida tão facilmente como joga a sua dama no tabuleiro. Avança o peão em direcção ao perigo, sim. Mas não o faz apenas sem medo: fá-lo sem hesitações e, sobretudo, sem arrependimentos. Cada lance deste jovem é afirmado com a segurança de quem não se deixa afectar por efeitos ou consequências. Todos os seus gestos são seus – não partilha nenhum com o adversário.
  Não é assim com Jean. Ele não consegue captar a lógica do desconhecido que tem à frente e, assim, não pode controlá-lo. Joga com medo durante toda a partida e, por mais peças que conquiste, nunca está verdadeiramente por cima. A racionalidade de Jean é evidente. A lógica que o move está tão ligada às movimentações no tabuleiro – aos seus efeitos e implicações – que ele não consegue ir além disso. Ora, quem joga como quem brinca, com a descontracção de quem não se importaria de morrer, desde que por decisão própria, não pode temer um adversário como Jean. Pelo contrário, é fácil apreendê-lo e manietá-lo: todos os gestos de Jean pertencem ao seu adversário.
  Jean revelou, é bom notar, grande heroísmo em ter procurado manter-se fiel à sua maneira de jogar. Ainda que jogando muito pior que o habitual, não cedeu e aguentou até ganhar a partida. Mas, no fim de contas, no outro jogo – aquele que o público viu, mas não percebeu –, saiu derrotado. O seu voto de não voltar a jogar xadrez é a prova mais evidente disso mesmo. Jean abdica porque embora perceba perfeitamente porque ganhou a partida, não entende porque perdeu. Não pode entender, porque, embora o tenha sentido, não chegou a perceber que jogo foi esse que perdeu. Abdica do xadrez porque não conhece outro jogo. Nem mesmo aquele em que sofreu a derrota da sua vida.

sábado, 25 de novembro de 2017

Brincar com o fogo

  No livro Adventures of Huckleberry Finn, de Mark Twain, Tom Sawyer surge nos últimos capítulos para, supostamente, ajudar o amigo Huckleberry ("Huck") a libertar Jim, um escravo sequestrado numa cabana na quinta dos tios de Tom. Quando conversam sobre o plano de acção a adoptar, Huck Finn sugere que furtem a chave ao tio e a usem para deixar Jim sair e fugir na jangada. Mas Tom, não discutindo o provável sucesso do plano, acha-o demasiado simples e convence-o de que a melhor opção será a de cavarem um túnel de saída, o que, naturalmente, levará muito mais tempo e será claramente mais arriscado.

  Todas as propostas de Huckleberry – práticas e razoáveis –, desde o plano global de acção às questões técnicas mais concretas, são rejeitadas por Tom, que opta sempre por vias mais condizentes com o seu espírito romântico: prefere, por exemplo, usar pequenas navalhas para cavar o túnel de fuga (já de si desnecessário), em vez de pás e picaretas, bem como serrar a perna da cama à qual Jim está acorrentado, em vez de simplesmente levantarem a cama e passarem a corrente por baixo (chegando mesmo a lamentar não serem obrigados a serrar a perna do próprio Jim).
  Huck e Jim não percebem a necessidade dos procedimentos que Tom vai impondo. Querem apenas que a liberdade do escravo chegue do modo mais rápido e seguro possível. Mas para Tom a libertação de Jim não é um objectivo que tenha valor em si, ou não é o mais importante. Ela só vale pela aventura que possibilita. E a aventura será tanto maior e mais apaixonante quanto maior o perigo. Por isso Tom, lamentando o facto de a realidade levantar tão poucas dificuldades ao empreendimento, vê-se obrigado a criar ele próprio obstáculos e perigos (“Blame it, this whole thing is just as easy and awkard as it can be. And so it makes it so rotten difficult to get up a difficult plan. There ain’t no watchman to be drugged — now there ought to be a watchman. There ain’t even a dog to give a sleeping-mixture to. (...) You got to invent all the difficulties.”), tomando mesmo como óbvia a necessidade de deixar pistas para os perseguidores e indo ao ponto de avisar muita gente de quando iria ocorrer a libertação, atraindo assim ao local várias pessoas armadas e prontas a disparar.
  Os métodos de Huck e Jim são demasiado simples para Tom Sawyer: não envolvem risco e são desprovidos de estilo e aventura. Prefere os caminhos mais complicados e, no seu modo de ver, heróicos. Tom ama o drama e todo o empreendimento só tem para si sentido se seguir o modelo dos livros que leu. De que serve a liberdade se não for conseguida do modo com que Casanova ou o homem da máscara de ferro a alcançaram?
  A simplicidade de Jim e Huck parece adequada à racionalidade comum, mas Tom não a partilha: ele não avalia um plano ou um feito pela sua eficácia, nem sequer pelo seu sucesso, mas sim pela heroicidade da ousadia, pelo risco da aventura, pela emoção do perigo. Huck e Jim têm talvez bom senso, mas é em Tom que encontramos a consciência dramática. São Huck e Jim quem sofre, mas é Tom quem compreende a tragédia.
  Atendendo aos riscos desnecessários que cria, a paixão aventureira de Tom parece-nos absurda, prejudicial e dispensável. Mas só é assim porque falhamos o nosso compromisso de leitores: queremos ler sem partilhar o espírito literário. Se não hesitamos em censurá-lo por fazer de algo tão sério uma brincadeira, é porque não compreendemos o que é brincar.
  Como explica Miguel Esteves Cardoso ("Brincar"), "as crianças não são mais inconscientes que nós. Também sabem. Também têm medo". E não prejudica isso a falta de responsabilidades, já que estas só se inventam "para se poder atingir o prazer da irresponsabilidade". Se Tom faz deste assunto uma brincadeira, não é porque lhe retire importância, mas precisamente porque o assunto é muito importante. “Brincar com o fogo é supremo”: se as suas acções envolvem riscos desnecessários, não é porque ele esteja deles inconsciente, mas precisamente porque deseja esses riscos: é com o fogo que se brinca. “É por certas coisas serem genuinamente venerandas que é bom brincar com elas. É uma forma de respeito”. Se Tom brinca com a fuga de Jim, não é porque despreze a liberdade que ele procura, e sim por lhe querer oferecer o tratamento mais digno que conhece: quer dar-lhe uma história.
  É fácil tomar Tom Sawyer por mero representante caricatural das convenções sociais, das normas caducas de que os próprios Huck e Jim têm ainda dificuldade em libertar-se. Mas se observarmos com atenção poderemos ver como ele encarna aquele amor pelas histórias que nos ajuda a identificarmo-nos com personagens quando lemos, aquele espírito aventureiro que arranca da vida o que nos faz sentir vivos, aquela consciência dramática que nos faz reconhecer o heroísmo e a cobardia, aquele amor pela fantasia que nos ajuda a ter os pés assentes na realidade. As ideias de Tom são absurdas, desnecessárias, perigosas e fantasiosas. Mas são elas que nos permitem apreender a sua sensibilidade. Ele é sem dúvida uma criança que só quer brincar. Mas é brincando com as coisas sérias que ele se revela mais sábio que os adultos. Sem Tom, Huck e Jim teriam certamente alcançado a liberdade. Mas talvez não tivessem chegado a compreender o que ela é.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O pato com pathos


  Em nenhum pato há mais pathos que no pato Donald, personagem da Disney.
  Donald só vive manifestando emoções. O seu temperamento molda-lhe as decisões e os comportamentos: toda a sua racionalidade é emotiva.
  As emoções de Donald são sempre vividas ao extremo: apaixona-se até lhe nascerem corações nos olhos, enfurece-se até fumegar, enciuma-se até à violência. Nenhuma emoção pode nele durar muito – excepto, talvez, a irritação –, porque ele está sempre aberto a começar de novo: tudo o que lhe acontece provoca uma nova história de sensações, reacções e precipitações. À parte a maldade gratuita, está pronto para tudo: para a bondade e compadecimento diante de quem sofre; para a indignação perante a injustiça; para o amor com Margarida; para a vingança depois da afronta; para o arrependimento na culpa.
  É sobretudo nas pequenas coisas que Donald se desequilibra. As quotidianas escaramuças com o vizinho assumem proporções bélicas, a rivalidade com o primo Gladstone Gander (Gastão na versão portuguesa) ganha contornos shakespearianos, as disputas com os esquilos Chip e Dale (Tico e Teco em Portugal) tornam-se épicas na envolvência dramática que ele lhes dá. E, no entanto, a sua vida parece ter problemas bem mais significativos: condenado a ser pobre e endividado, não tem um emprego fixo e está, aliás, frequentemente desempregado. O seu tio milionário explora-o constantemente e sem hesitação, recorrendo para isso, sempre que necessário, às dívidas do sobrinho.
  Donald tem jeito para fazer bem algumas coisas, mas, mais que tudo, tem jeito para fazer disparates – para se meter em alhadas. Como dizem os seus sobrinhos, no entanto, ele é capaz de aprender: nunca repete um disparate. Arranja sempre um novo. E há sempre mais um erro para ele cometer, mais uma confusão para arranjar, mais uma trapalhada em que se enredar. Quando, por exemplo, encontra o diário de juventude do seu tio Scrooge McDuck (Tio Patinhas nas publicações portuguesas), decide fazer tudo o que ele fez, na esperança de enriquecer do mesmo modo. Incapaz de adaptar o projecto ao seu tempo e lugar – bem diferentes daqueles em que o tio viveu na juventude –, o empreendimento revela-se, naturalmente, um fiasco. É assim o pato Donald: as suas ideias são brilhantes e correm sempre bem. Mas só na sua cabeça. Nunca cá fora, onde ele não se adapta.
  Acima de tudo, Donald é um azarado. Tal como o desgraçado Akáki Akákievitch (o protagonista do conto "O capote", de Nikolai Gógol), ele tem "a arte especial de ir pela rua fora e chegar sempre a tempo de apanhar com alguma porcaria despejada naquele momento de uma janela". Tudo o que lhe pode correr mal no imediato vai certamente seguir o caminho errado. O seu azar tem impacto suficiente para nos fazer confundir dimensões ontológicas: tratando-se de guardar uma coisa frágil, por exemplo, e sendo certo que algo frágil é, por definição, algo que facilmente se parte, é seguro que, nas mãos de Donald, ela vai partir-se mais cedo ou mais tarde. Assim, nas histórias do pato Donald, os acontecimentos meramente possíveis – porque ainda futuros – são já eventos de verificação certa – como se fossem passados. A perspectiva de que algo pode correr mal está já confirmada de antemão.
  A sua posição é a inversa da do seu primo Gastão, um sortudo ímpar. A sorte de Gastão é tão ou mais inacreditável que o azar de Donald. O suficiente para transformar também a dignidade ontológica dos acontecimentos, pondo agora os termos do avesso: as coisas boas que lhe acontecem (encontra carteiras, recebe prémios ou promoções por ser o milésimo cliente de uma loja, etc.), em condições normais, seriam inesperadas. Por isso, não deveria haver perspectiva de elas poderem acontecer: de tão remota a possibilidade, a hipótese de terem lugar não é uma com que alguém minimamente realista possa contar. Só que ao primo Gastão elas acontecem sempre. Tal como correm sempre mal com Donald, com Gastão as coisas correm sempre bem. Se o azar do primeiro torna certos os eventos possíveis, precipitando no mundo do ser o que seria em condições normais mera ameaça, já a sorte do segundo faz nascer a própria possibilidade de ocorrer aquilo que normalmente seria inverosímil, torna expectável o que por norma ninguém espera, faz normal o que deveria ser extraordinário.
  É como se os primos fossem o reflexo invertido um do outro. No fim de contas, eles não se distinguem em termos estruturais. Donald começa uma das suas histórias partindo mais um dos muitos vidros que tem quebrado ao longo da vida. Desta vez, porém, na loja onde compra sempre vidros novos, avisam-no de que, tendo em conta o volume de gastos já feito, habilita-se a beneficiar de vidros grátis, oferecidos pela própria companhia numa promoção pensada para quem, no final desse mesmo dia, registar as despesas mais volumosas na loja. Entretanto, Gastão provoca um acidente de um camião que transportava precisamente vidros da mesma companhia. Os estragos provocados equivalem justamente à quantia gasta pelo primo. Para além de, logo de seguida, encontrar um bilhete premiado de lotaria que lhe permite pagar imediatamente os prejuízos, Gastão fica empatado com Donald na corrida aos vidros grátis. Ora, cada um deles precisa, segundo parece, do que o outro tem em abundância: Donald precisa de sorte para se adiantar ao primo e Gastão precisa de azar para partir vidros. A batalha desenrola-se precisamente em função desse pressuposto, cada um deles impingindo amuletos ao outro (patas de coelho, trevos de quatro folhas...) ou buscando provocar o destino (pisando riscos da calçada, passando por baixo de escadas...). Talvez nenhuma história mostre tão bem como, sendo tão diferentes na sorte que têm, eles são afinal tão iguais.
  A história permite também uma outra nota: a sorte não se limita a ficar longe de Donald, sem nunca o visitar. É mais cruel do que isso: por vezes aproxima-se, mas só para logo partir sem chegar a tocar-lhe. Assim numa história, por exemplo, em que um milionário o encontra na rua e, vendo o ar pobre que ele tem, se aproxima dele e lhe oferece uma ferradura, alegando que esse objecto o tornou rico e, uma vez que já não precisa dele, resolveu dá-lo a alguém que necessitasse. Donald não demora a perder a ferradura e ela é encontrada e perdida ou deitada fora por várias pessoas sucessivamente. Todas elas têm golpes de sorte significativos durante os breves momentos em que têm a ferradura na sua posse. A dada altura, esta acaba perdida num depósito enorme de ferraduras, todas iguais, com o desolado Donald a tentar encontrar aquela que lhe deveria trazer a felicidade. É assim o azar de Donald: torna-o impermeável contra a sorte.
  Por uma vez, no entanto, Donald conseguiu gozar de boa sorte. Nessa história, Donald parte em busca de uma ampulheta mágica que garante uma hora de sorte ao seu possuidor. O seu plano é usá-la num programa televisivo em que, durante uma hora, é suposto o participante responder a diversas perguntas; se responder com sucesso a todas, ganhará uma quantia avultada. Depois de muitas peripécias, Donald consegue encontrar a ampulheta. Para garantir que a não a perde, parte ou vira do avesso (desperdiçando a hora de sorte) no regresso, são os sobrinhos que trazem o objecto mágico no caminho de volta. Confiante, Donald atravessa praticamente todo o programa respondendo com sucesso (e muita sorte) a todas as questões colocadas, até faltar uma apenas. Quanto restam uns meros segundos de areia na ampulheta, Donald interrompe o apresentador para apanhar uma moeda que encontra no chão – a única moeda que teve a sorte de encontrar por acaso em toda a sua vida. É esse momento de sorte, porém, que o faz gastar o tempo que sobrava e, quando a última questão lhe é colocada, ele fracassa, ficando sem o prémio. No fim de contas, Donald só tem sorte quando isso se torna garantia de que vai ter azar.
  Donald perde sempre as suas batalhas, não tem sucesso nos seus empreendimentos, está condenado a uma vida de infortúnios. Comete sempre erros, faz sempre disparates, estraga sempre tudo. Por isso ele é aquela criatura dentro de nós a quem tememos sempre que as coisas corram mal. Se receamos partir algo, se lutamos contra a perspectiva de falharmos, é porque tememos esse Donald interior que atrai o azar até à inevitabilidade. Mas se olharmos com atenção e não nos deixarmos distrair pelos seus acessos de fúria, muitas vezes tão fugazes quanto repentinos, talvez possamos descobrir que esse pato que trazemos cá dentro é o mesmo que nos pode oferecer os tesouros mais valiosos. Porque embora não tenha a sorte do primo Gastão, é dele que Daisy (Margarida em Portugal) gosta. Ainda que sem jeito ou muitas vezes incompetente, é sempre a ele que o seu tio Patinhas recorre. Mesmo com as dificuldades financeiras, consegue cuidar dos sobrinhos. E apesar de não ser um modelo de virtudes ou de responsabilidade, eles não o trocavam por outro. Em suma, é fácil notar que o pato Donald não possui nada de valioso ou que mereça ser invejado. Mas é enganador: porque olhando melhor vemos bem que ele tem tudo. O Tio Patinhas tem o dinheiro, mas é Donald o pato mais rico. A sorte está com Gastão, mas é Donald o verdadeiro sortudo.