E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 25 de novembro de 2017

Brincar com o fogo

  No livro Adventures of Huckleberry Finn, de Mark Twain, Tom Sawyer surge nos últimos capítulos para, supostamente, ajudar o amigo Huckleberry ("Huck") a libertar Jim, um escravo sequestrado numa cabana na quinta dos tios de Tom. Quando conversam sobre o plano de acção a adoptar, Huck Finn sugere que furtem a chave ao tio e a usem para deixar Jim sair e fugir na jangada. Mas Tom, não discutindo o provável sucesso do plano, acha-o demasiado simples e convence-o de que a melhor opção será a de cavarem um túnel de saída, o que, naturalmente, levará muito mais tempo e será claramente mais arriscado.

  Todas as propostas de Huckleberry – práticas e razoáveis –, desde o plano global de acção às questões técnicas mais concretas, são rejeitadas por Tom, que opta sempre por vias mais condizentes com o seu espírito romântico: prefere, por exemplo, usar pequenas navalhas para cavar o túnel de fuga (já de si desnecessário), em vez de pás e picaretas, bem como serrar a perna da cama à qual Jim está acorrentado, em vez de simplesmente levantarem a cama e passarem a corrente por baixo (chegando mesmo a lamentar não serem obrigados a serrar a perna do próprio Jim).
  Huck e Jim não percebem a necessidade dos procedimentos que Tom vai impondo. Querem apenas que a liberdade do escravo chegue do modo mais rápido e seguro possível. Mas para Tom a libertação de Jim não é um objectivo que tenha valor em si, ou não é o mais importante. Ela só vale pela aventura que possibilita. E a aventura será tanto maior e mais apaixonante quanto maior o perigo. Por isso Tom, lamentando o facto de a realidade levantar tão poucas dificuldades ao empreendimento, vê-se obrigado a criar ele próprio obstáculos e perigos (“Blame it, this whole thing is just as easy and awkard as it can be. And so it makes it so rotten difficult to get up a difficult plan. There ain’t no watchman to be drugged — now there ought to be a watchman. There ain’t even a dog to give a sleeping-mixture to. (...) You got to invent all the difficulties.”), tomando mesmo como óbvia a necessidade de deixar pistas para os perseguidores e indo ao ponto de avisar muita gente de quando iria ocorrer a libertação, atraindo assim ao local várias pessoas armadas e prontas a disparar.
  Os métodos de Huck e Jim são demasiado simples para Tom Sawyer: não envolvem risco e são desprovidos de estilo e aventura. Prefere os caminhos mais complicados e, no seu modo de ver, heróicos. Tom ama o drama e todo o empreendimento só tem para si sentido se seguir o modelo dos livros que leu. De que serve a liberdade se não for conseguida do modo com que Casanova ou o homem da máscara de ferro a alcançaram?
  A simplicidade de Jim e Huck parece adequada à racionalidade comum, mas Tom não a partilha: ele não avalia um plano ou um feito pela sua eficácia, nem sequer pelo seu sucesso, mas sim pela heroicidade da ousadia, pelo risco da aventura, pela emoção do perigo. Huck e Jim têm talvez bom senso, mas é em Tom que encontramos a consciência dramática. São Huck e Jim quem sofre, mas é Tom quem compreende a tragédia.
  Atendendo aos riscos desnecessários que cria, a paixão aventureira de Tom parece-nos absurda, prejudicial e dispensável. Mas só é assim porque falhamos o nosso compromisso de leitores: queremos ler sem partilhar o espírito literário. Se não hesitamos em censurá-lo por fazer de algo tão sério uma brincadeira, é porque não compreendemos o que é brincar.
  Como explica Miguel Esteves Cardoso ("Brincar"), "as crianças não são mais inconscientes que nós. Também sabem. Também têm medo". E não prejudica isso a falta de responsabilidades, já que estas só se inventam "para se poder atingir o prazer da irresponsabilidade". Se Tom faz deste assunto uma brincadeira, não é porque lhe retire importância, mas precisamente porque o assunto é muito importante. “Brincar com o fogo é supremo”: se as suas acções envolvem riscos desnecessários, não é porque ele esteja deles inconsciente, mas precisamente porque deseja esses riscos: é com o fogo que se brinca. “É por certas coisas serem genuinamente venerandas que é bom brincar com elas. É uma forma de respeito”. Se Tom brinca com a fuga de Jim, não é porque despreze a liberdade que ele procura, e sim por lhe querer oferecer o tratamento mais digno que conhece: quer dar-lhe uma história.
  É fácil tomar Tom Sawyer por mero representante caricatural das convenções sociais, das normas caducas de que os próprios Huck e Jim têm ainda dificuldade em libertar-se. Mas se observarmos com atenção poderemos ver como ele encarna aquele amor pelas histórias que nos ajuda a identificarmo-nos com personagens quando lemos, aquele espírito aventureiro que arranca da vida o que nos faz sentir vivos, aquela consciência dramática que nos faz reconhecer o heroísmo e a cobardia, aquele amor pela fantasia que nos ajuda a ter os pés assentes na realidade. As ideias de Tom são absurdas, desnecessárias, perigosas e fantasiosas. Mas são elas que nos permitem apreender a sua sensibilidade. Ele é sem dúvida uma criança que só quer brincar. Mas é brincando com as coisas sérias que ele se revela mais sábio que os adultos. Sem Tom, Huck e Jim teriam certamente alcançado a liberdade. Mas talvez não tivessem chegado a compreender o que ela é.

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