Em nenhum pato há mais pathos que no pato Donald, personagem da Disney.
Donald só vive manifestando emoções. O seu temperamento molda-lhe as decisões e os comportamentos: toda a sua racionalidade é emotiva.
As emoções de Donald são sempre vividas ao extremo: apaixona-se até lhe nascerem corações nos olhos, enfurece-se até fumegar, enciuma-se até à violência. Nenhuma emoção pode nele durar muito – excepto, talvez, a irritação –, porque ele está sempre aberto a começar de novo: tudo o que lhe acontece provoca uma nova história de sensações, reacções e precipitações. À parte a maldade gratuita, está pronto para tudo: para a bondade e compadecimento diante de quem sofre; para a indignação perante a injustiça; para o amor com Margarida; para a vingança depois da afronta; para o arrependimento na culpa.
É sobretudo nas pequenas coisas que Donald se desequilibra. As quotidianas escaramuças com o vizinho assumem proporções bélicas, a rivalidade com o primo Gladstone Gander (Gastão na versão portuguesa) ganha contornos shakespearianos, as disputas com os esquilos Chip e Dale (Tico e Teco em Portugal) tornam-se épicas na envolvência dramática que ele lhes dá. E, no entanto, a sua vida parece ter problemas bem mais significativos: condenado a ser pobre e endividado, não tem um emprego fixo e está, aliás, frequentemente desempregado. O seu tio milionário explora-o constantemente e sem hesitação, recorrendo para isso, sempre que necessário, às dívidas do sobrinho.
Donald tem jeito para fazer bem algumas coisas, mas, mais que tudo, tem jeito para fazer disparates – para se meter em alhadas. Como dizem os seus sobrinhos, no entanto, ele é capaz de aprender: nunca repete um disparate. Arranja sempre um novo. E há sempre mais um erro para ele cometer, mais uma confusão para arranjar, mais uma trapalhada em que se enredar. Quando, por exemplo, encontra o diário de juventude do seu tio Scrooge McDuck (Tio Patinhas nas publicações portuguesas), decide fazer tudo o que ele fez, na esperança de enriquecer do mesmo modo. Incapaz de adaptar o projecto ao seu tempo e lugar – bem diferentes daqueles em que o tio viveu na juventude –, o empreendimento revela-se, naturalmente, um fiasco. É assim o pato Donald: as suas ideias são brilhantes e correm sempre bem. Mas só na sua cabeça. Nunca cá fora, onde ele não se adapta.
Acima de tudo, Donald é um azarado. Tal como o desgraçado Akáki Akákievitch (o protagonista do conto "O capote", de Nikolai Gógol), ele tem "a arte especial de ir pela rua fora e chegar sempre a tempo de apanhar com alguma porcaria despejada naquele momento de uma janela". Tudo o que lhe pode correr mal no imediato vai certamente seguir o caminho errado. O seu azar tem impacto suficiente para nos fazer confundir dimensões ontológicas: tratando-se de guardar uma coisa frágil, por exemplo, e sendo certo que algo frágil é, por definição, algo que facilmente se parte, é seguro que, nas mãos de Donald, ela vai partir-se mais cedo ou mais tarde. Assim, nas histórias do pato Donald, os acontecimentos meramente possíveis – porque ainda futuros – são já eventos de verificação certa – como se fossem passados. A perspectiva de que algo pode correr mal está já confirmada de antemão.
A sua posição é a inversa da do seu primo Gastão, um sortudo ímpar. A sorte de Gastão é tão ou mais inacreditável que o azar de Donald. O suficiente para transformar também a dignidade ontológica dos acontecimentos, pondo agora os termos do avesso: as coisas boas que lhe acontecem (encontra carteiras, recebe prémios ou promoções por ser o milésimo cliente de uma loja, etc.), em condições normais, seriam inesperadas. Por isso, não deveria haver perspectiva de elas poderem acontecer: de tão remota a possibilidade, a hipótese de terem lugar não é uma com que alguém minimamente realista possa contar. Só que ao primo Gastão elas acontecem sempre. Tal como correm sempre mal com Donald, com Gastão as coisas correm sempre bem. Se o azar do primeiro torna certos os eventos possíveis, precipitando no mundo do ser o que seria em condições normais mera ameaça, já a sorte do segundo faz nascer a própria possibilidade de ocorrer aquilo que normalmente seria inverosímil, torna expectável o que por norma ninguém espera, faz normal o que deveria ser extraordinário.
É como se os primos fossem o reflexo invertido um do outro. No fim de contas, eles não se distinguem em termos estruturais. Donald começa uma das suas histórias partindo mais um dos muitos vidros que tem quebrado ao longo da vida. Desta vez, porém, na loja onde compra sempre vidros novos, avisam-no de que, tendo em conta o volume de gastos já feito, habilita-se a beneficiar de vidros grátis, oferecidos pela própria companhia numa promoção pensada para quem, no final desse mesmo dia, registar as despesas mais volumosas na loja. Entretanto, Gastão provoca um acidente de um camião que transportava precisamente vidros da mesma companhia. Os estragos provocados equivalem justamente à quantia gasta pelo primo. Para além de, logo de seguida, encontrar um bilhete premiado de lotaria que lhe permite pagar imediatamente os prejuízos, Gastão fica empatado com Donald na corrida aos vidros grátis. Ora, cada um deles precisa, segundo parece, do que o outro tem em abundância: Donald precisa de sorte para se adiantar ao primo e Gastão precisa de azar para partir vidros. A batalha desenrola-se precisamente em função desse pressuposto, cada um deles impingindo amuletos ao outro (patas de coelho, trevos de quatro folhas...) ou buscando provocar o destino (pisando riscos da calçada, passando por baixo de escadas...). Talvez nenhuma história mostre tão bem como, sendo tão diferentes na sorte que têm, eles são afinal tão iguais.
A história permite também uma outra nota: a sorte não se limita a ficar longe de Donald, sem nunca o visitar. É mais cruel do que isso: por vezes aproxima-se, mas só para logo partir sem chegar a tocar-lhe. Assim numa história, por exemplo, em que um milionário o encontra na rua e, vendo o ar pobre que ele tem, se aproxima dele e lhe oferece uma ferradura, alegando que esse objecto o tornou rico e, uma vez que já não precisa dele, resolveu dá-lo a alguém que necessitasse. Donald não demora a perder a ferradura e ela é encontrada e perdida ou deitada fora por várias pessoas sucessivamente. Todas elas têm golpes de sorte significativos durante os breves momentos em que têm a ferradura na sua posse. A dada altura, esta acaba perdida num depósito enorme de ferraduras, todas iguais, com o desolado Donald a tentar encontrar aquela que lhe deveria trazer a felicidade. É assim o azar de Donald: torna-o impermeável contra a sorte.
Por uma vez, no entanto, Donald conseguiu gozar de boa sorte. Nessa história, Donald parte em busca de uma ampulheta mágica que garante uma hora de sorte ao seu possuidor. O seu plano é usá-la num programa televisivo em que, durante uma hora, é suposto o participante responder a diversas perguntas; se responder com sucesso a todas, ganhará uma quantia avultada. Depois de muitas peripécias, Donald consegue encontrar a ampulheta. Para garantir que a não a perde, parte ou vira do avesso (desperdiçando a hora de sorte) no regresso, são os sobrinhos que trazem o objecto mágico no caminho de volta. Confiante, Donald atravessa praticamente todo o programa respondendo com sucesso (e muita sorte) a todas as questões colocadas, até faltar uma apenas. Quanto restam uns meros segundos de areia na ampulheta, Donald interrompe o apresentador para apanhar uma moeda que encontra no chão – a única moeda que teve a sorte de encontrar por acaso em toda a sua vida. É esse momento de sorte, porém, que o faz gastar o tempo que sobrava e, quando a última questão lhe é colocada, ele fracassa, ficando sem o prémio. No fim de contas, Donald só tem sorte quando isso se torna garantia de que vai ter azar.
Donald tem jeito para fazer bem algumas coisas, mas, mais que tudo, tem jeito para fazer disparates – para se meter em alhadas. Como dizem os seus sobrinhos, no entanto, ele é capaz de aprender: nunca repete um disparate. Arranja sempre um novo. E há sempre mais um erro para ele cometer, mais uma confusão para arranjar, mais uma trapalhada em que se enredar. Quando, por exemplo, encontra o diário de juventude do seu tio Scrooge McDuck (Tio Patinhas nas publicações portuguesas), decide fazer tudo o que ele fez, na esperança de enriquecer do mesmo modo. Incapaz de adaptar o projecto ao seu tempo e lugar – bem diferentes daqueles em que o tio viveu na juventude –, o empreendimento revela-se, naturalmente, um fiasco. É assim o pato Donald: as suas ideias são brilhantes e correm sempre bem. Mas só na sua cabeça. Nunca cá fora, onde ele não se adapta.
Acima de tudo, Donald é um azarado. Tal como o desgraçado Akáki Akákievitch (o protagonista do conto "O capote", de Nikolai Gógol), ele tem "a arte especial de ir pela rua fora e chegar sempre a tempo de apanhar com alguma porcaria despejada naquele momento de uma janela". Tudo o que lhe pode correr mal no imediato vai certamente seguir o caminho errado. O seu azar tem impacto suficiente para nos fazer confundir dimensões ontológicas: tratando-se de guardar uma coisa frágil, por exemplo, e sendo certo que algo frágil é, por definição, algo que facilmente se parte, é seguro que, nas mãos de Donald, ela vai partir-se mais cedo ou mais tarde. Assim, nas histórias do pato Donald, os acontecimentos meramente possíveis – porque ainda futuros – são já eventos de verificação certa – como se fossem passados. A perspectiva de que algo pode correr mal está já confirmada de antemão.
A sua posição é a inversa da do seu primo Gastão, um sortudo ímpar. A sorte de Gastão é tão ou mais inacreditável que o azar de Donald. O suficiente para transformar também a dignidade ontológica dos acontecimentos, pondo agora os termos do avesso: as coisas boas que lhe acontecem (encontra carteiras, recebe prémios ou promoções por ser o milésimo cliente de uma loja, etc.), em condições normais, seriam inesperadas. Por isso, não deveria haver perspectiva de elas poderem acontecer: de tão remota a possibilidade, a hipótese de terem lugar não é uma com que alguém minimamente realista possa contar. Só que ao primo Gastão elas acontecem sempre. Tal como correm sempre mal com Donald, com Gastão as coisas correm sempre bem. Se o azar do primeiro torna certos os eventos possíveis, precipitando no mundo do ser o que seria em condições normais mera ameaça, já a sorte do segundo faz nascer a própria possibilidade de ocorrer aquilo que normalmente seria inverosímil, torna expectável o que por norma ninguém espera, faz normal o que deveria ser extraordinário.
É como se os primos fossem o reflexo invertido um do outro. No fim de contas, eles não se distinguem em termos estruturais. Donald começa uma das suas histórias partindo mais um dos muitos vidros que tem quebrado ao longo da vida. Desta vez, porém, na loja onde compra sempre vidros novos, avisam-no de que, tendo em conta o volume de gastos já feito, habilita-se a beneficiar de vidros grátis, oferecidos pela própria companhia numa promoção pensada para quem, no final desse mesmo dia, registar as despesas mais volumosas na loja. Entretanto, Gastão provoca um acidente de um camião que transportava precisamente vidros da mesma companhia. Os estragos provocados equivalem justamente à quantia gasta pelo primo. Para além de, logo de seguida, encontrar um bilhete premiado de lotaria que lhe permite pagar imediatamente os prejuízos, Gastão fica empatado com Donald na corrida aos vidros grátis. Ora, cada um deles precisa, segundo parece, do que o outro tem em abundância: Donald precisa de sorte para se adiantar ao primo e Gastão precisa de azar para partir vidros. A batalha desenrola-se precisamente em função desse pressuposto, cada um deles impingindo amuletos ao outro (patas de coelho, trevos de quatro folhas...) ou buscando provocar o destino (pisando riscos da calçada, passando por baixo de escadas...). Talvez nenhuma história mostre tão bem como, sendo tão diferentes na sorte que têm, eles são afinal tão iguais.
A história permite também uma outra nota: a sorte não se limita a ficar longe de Donald, sem nunca o visitar. É mais cruel do que isso: por vezes aproxima-se, mas só para logo partir sem chegar a tocar-lhe. Assim numa história, por exemplo, em que um milionário o encontra na rua e, vendo o ar pobre que ele tem, se aproxima dele e lhe oferece uma ferradura, alegando que esse objecto o tornou rico e, uma vez que já não precisa dele, resolveu dá-lo a alguém que necessitasse. Donald não demora a perder a ferradura e ela é encontrada e perdida ou deitada fora por várias pessoas sucessivamente. Todas elas têm golpes de sorte significativos durante os breves momentos em que têm a ferradura na sua posse. A dada altura, esta acaba perdida num depósito enorme de ferraduras, todas iguais, com o desolado Donald a tentar encontrar aquela que lhe deveria trazer a felicidade. É assim o azar de Donald: torna-o impermeável contra a sorte.
Por uma vez, no entanto, Donald conseguiu gozar de boa sorte. Nessa história, Donald parte em busca de uma ampulheta mágica que garante uma hora de sorte ao seu possuidor. O seu plano é usá-la num programa televisivo em que, durante uma hora, é suposto o participante responder a diversas perguntas; se responder com sucesso a todas, ganhará uma quantia avultada. Depois de muitas peripécias, Donald consegue encontrar a ampulheta. Para garantir que a não a perde, parte ou vira do avesso (desperdiçando a hora de sorte) no regresso, são os sobrinhos que trazem o objecto mágico no caminho de volta. Confiante, Donald atravessa praticamente todo o programa respondendo com sucesso (e muita sorte) a todas as questões colocadas, até faltar uma apenas. Quanto restam uns meros segundos de areia na ampulheta, Donald interrompe o apresentador para apanhar uma moeda que encontra no chão – a única moeda que teve a sorte de encontrar por acaso em toda a sua vida. É esse momento de sorte, porém, que o faz gastar o tempo que sobrava e, quando a última questão lhe é colocada, ele fracassa, ficando sem o prémio. No fim de contas, Donald só tem sorte quando isso se torna garantia de que vai ter azar.
Donald perde sempre as suas batalhas, não tem sucesso nos seus empreendimentos, está condenado a uma vida de infortúnios. Comete sempre erros, faz sempre disparates, estraga sempre tudo. Por isso ele é aquela criatura dentro de nós a quem tememos sempre que as coisas corram mal. Se receamos partir algo, se lutamos contra a perspectiva de falharmos, é porque tememos esse Donald interior que atrai o azar até à inevitabilidade. Mas se olharmos com atenção e não nos deixarmos distrair pelos seus acessos de fúria, muitas vezes tão fugazes quanto repentinos, talvez possamos descobrir que esse pato que trazemos cá dentro é o mesmo que nos pode oferecer os tesouros mais valiosos. Porque embora não tenha a sorte do primo Gastão, é dele que Daisy (Margarida em Portugal) gosta. Ainda que sem jeito ou muitas vezes incompetente, é sempre a ele que o seu tio Patinhas recorre. Mesmo com as dificuldades financeiras, consegue cuidar dos sobrinhos. E apesar de não ser um modelo de virtudes ou de responsabilidade, eles não o trocavam por outro. Em suma, é fácil notar que o pato Donald não possui nada de valioso ou que mereça ser invejado. Mas é enganador: porque olhando melhor vemos bem que ele tem tudo. O Tio Patinhas tem o dinheiro, mas é Donald o pato mais rico. A sorte está com Gastão, mas é Donald o verdadeiro sortudo.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.