E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Preso em lugar nenhum

  No conto "O passageiro eterno", de Stefan Grabiński, Agapit Kluczka é um escrivão de tribunal que passa as tardes na estação de Snowie, realizando "viagens simbólicas": espera na fila para comprar bilhete, instala-se no comboio com a bagagem, troca informações de viagens com outros passageiros, impacienta-se com os atrasos do transporte... mas nunca chega a viajar: abandona a fila no instante antes de comprar o bilhete, sai da carruagem assim que o apito avisa da partida, e espera na estação pelo comboio seguinte, para repetir o ritual. Já lhe conhecendo os hábitos, os trabalhadores da estação chamam-lhe "passageiro eterno".

  O senhor Kluczka não é, vendo bem, passageiro nenhum, visto que nunca chega a partir, senão em imaginação. Lamentando não poder ser revisor por razões de saúde (não esclarecidas) e que o destino o tenha feito prisioneiro de trabalho de secretária, sonha com as viagens que nunca fará e simula todos os procedimentos necessários para a partida que nunca terá lugar.
  Agapit não deseja propriamente chegar a um sítio em concreto, porque o apaixona a viagem, não o destino; inveja nos funcionários ferroviários a "neurose constante" da viagem sem fim. 
  O que pretende o senhor Kluczka? Está claro que não sonha com qualquer destino paradisíaco, não tem propriamente um lugar idealizado a aguardar os passos que não pode dar. Sob certa perspectiva, parece ser livre: nada o puxa nem o prende. Encontra-se materialmente dependente do que o sustenta, mas nos planos anímico e espiritual, não tem raízes em casa – pelo contrário, lamenta a impossibilidade de a deixar. Do estrangeiro também não o chama ninguém nem nenhum local específico, de modo que Agapit é pessoa sem correntes, porque sem ligações. Não foram razões monetárias e de saúde, poderia viajar por onde quisesse, sem incómodos de maior. Não pousando o centro da sua personalidade – o núcleo impulsionador das decisões que toma – em nenhum lugar fora de si mesmo, nem se amarrando a qualquer interesse fixo prevalecente, material e geograficamente situado (como poderia ser uma mulher amada, uma promoção na carreira, etc.), o senhor Kluczka é dono de si mesmo e do seu destino, preso por nada e livre de grilhões. Não se pode verdadeiramente contradizer isto com a sua paixão por viajar, porque é a viagem, não a chegada, o que o fascina: arrebata-o tanto a ida como o regresso, porque, vendo bem, nenhum é ida ou regresso, são ambos deslocação: sem casa nem destino, toda a locomoção é para ele passeio sem turismo, nada interessando na paisagem, antes relevando somente os mecanismos e rituais do viajar. A viagem não é, assim, ponto fixo que o limite e restrinja, capturando-o para longe de si mesmo, mas sim a concretização possível do idealizado processo de libertação de todos os pontos fixos que não lhe importam. Interessa-lhe viajar, em suma, porque não quer pousar em lugar nenhum.
  Algumas dúvidas, porém, se levantam quando o vemos tão liberto: quer Agapit de facto viajar? As suas dificuldades de saúde não são esclarecidas, ficando no plano do mero pretexto; quanto às monetárias, podemos perguntar se o seu desejo, apresentado como tão intenso, não o devia levar a procurar outro emprego, uma promoção, ou simplesmente a juntar dinheiro, de modo que pudesse comprar viagens de quando em vez. Se o senhor Kluczka concretizasse os seus sonhos e levasse a vida a deslocar-se de um lado para o outro sem estacionar em nenhum, gozaria a liberdade duma existência inversa à dos fantasmas: estes espíritos vagueiam movidos pelo drama de não poderem voltar à vida de onde partiram, estando ao mesmo tempo impedidos de aterrar onde os mortos descansam; já no caso de Agapit, a mesma condição não seria drama, mas alegria: tivera a disponibilidade para isso e seria feliz vagueando sem pousar onde quer quer fosse.
  O senhor Kuczka, contudo, nunca chega a partir, e é legítimo suspeitar que algo para lá dos pretextos materiais o prende à estação. Esta poderia ser para ele o que a rotunda é para Aaronson, personagem de Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares): um lugar com múltiplas hipóteses de caminho onde se pode ficar mantendo em aberto todas as possibilidades, sem chegar a arriscar nenhuma. Para Aaronson, é confortável correr à volta da rotunda sem tomar uma via, porque não optando, não há hipótese de engano, de ser obrigado a voltar atrás. Por aqui já notamos, todavia, diferença em relação a Agapit: não é por medo de errar que abandona o comboio antes da hora, pois a opção por um destino nem se lhe apresenta. Em rigor, visto que não tem em mente qualquer meta, a própria perspectiva de erro perde sentido: todas as opções são válidas, porque nenhuma é a correcta; e nenhuma é a correcta, porque nenhuma está errada. O senhor Kluczka não quer chegar a lado nenhum, quer apenas fazer o caminho. Não voltaria atrás por se ter enganado, mas por ser essa a direcção tomada pelo comboio. Podemos ir ao ponto de dizer que nem sequer estaria verdadeiramente a voltar atrás: os caminhos com que sonha não têm linhas de chegada e partida, pelo que a indiferença entre os lugares de chegar e partir é a conclusão mais lógica: os seus percursos não têm origem nem destino.
  O senhor Kluczka, no entanto, nunca parte. Vive na prisão avessa à dos fantasmas: sofre, não por falta de lugar para pousar, mas por não poder partir. Se ao menos tivera noutro lugar algo que o puxasse, teria ocasião para se arrancar de onde mora. Mas não tem centro, nem no estrangeiro nem em casa, e por isso não chega a estacionar verdadeiramente em lugar nenhum. Homem sem ligações, não há correntes nem algemas que o limitem ou condicionem. Mas, no fim de contas, nem isso lhe dá liberdade. Sem direcção nem objectivo, nenhum comboio o pode levar para onde quer que seja, porque os comboios orientam-se pelas estações para que apontam e são elas que os obrigam aos caminhos. Para Agapit, as outras estações são pretextos que ele dispensa, sem perceber que assim é o próprio percurso que acaba condenado. Nem na estação onde passa tantas horas dos seus dias assenta realmente, porque só lá permanece na perspectiva (ainda que irreal) de partir brevemente. Não partirá, e por isso a estação, no fim de contas, é a sua prisão.
  A liberdade é possível para o senhor Kluczka? Sonha existir como os fantasmas, mas estes só vagueiam no pesadelo de não poderem chegar a lado nenhum, nem regressar. Agapit não tem meta, e por isso nunca comprará bilhete. Pudera ele viajar sem destino e seria feliz, mas para isso precisaria de uma linha ferroviária circular, que o encurralasse num percurso infinito sem chegada. Poderia então sorrir finalmente, contente no limbo de não estar em nenhum lado, de estar só viajando, satisfeito como Aaronson, porque, como para este, "a vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda". 

domingo, 8 de dezembro de 2019

Herói a sério


  Darkwing Duck será um verdadeiro super-herói? O epíteto faz-nos pensar em figuras de banda desenhada como o Super-Homem, o Batman ou o Homem-Aranha. Aquele que agora consideramos parece situar-se em universo à parte, mas paralelo, actuando em jeito de imitação e sátira do habitado pelas figuras modelares. As coisas não soam a sério no universo do pato de capa, os vilões parecem bonecos e os perigos quase brincadeiras. As peripécias são demasiado fantasiosas e até ridículas para perturbarem, e os dramas nunca apoquentam para lá da emoção leve do momento.
  Tudo isto entra em contradição, todavia, com o discurso do protagonista. É difícil imaginar alguém levar-se mais a sério, adoptar atitude mais profissional ou encarar os desafios pela frente com atenção mais cuidada. A postura começa por destacar-se em contraposição com a perspectiva de muitos dos demais, incluindo os inimigos, que muitas vezes o buscam ridicularizar. Mas o juízo vale à luz de qualquer padrão, e a atitude do pato tanto é de ferro em intensidade como em constância: pode acontecer que duvide da sua aptidão, habilidades ou autosuficiência; mas nunca da dignidade das tarefas que lhe cabem.
  É justamente a seriedade com que encara o seu trabalho que melhor explica o heroísmo desta personagem. Apesar de desprovido de super-poderes, a sua valentia nunca fraqueja; não recua perante nenhuma ameaça, mesmo quando superado fisicamente ou depois de vencido em combate. É incorruptível, honesto como o azeite e íntegro como as estátuas. Não decide pelo tamanho da ameaça ou do suborno, porque só mede com a régua da equidade. Mas os seus ideais de justiça só se compreendem atendendo à adoração que sente pela teatralidade: age, sobretudo, para desempenhar o papel de super-herói, no qual quer que o vejam e reconheçam, mesmo se não tanto como nele se quer ver e reconhecer a si mesmo. Toda a encenação que desenvolve é pretensão de corresponder ao papel que tanto preza: entra anunciando-se com imagens descritivas rebuscadas, recorre a frases-chavão, usa disfarce, realiza gestos dramáticos com a capa, abusa de falas empolgadas e arrebatadoras, enfim, vale-se de todos os maneirismos e implicações cénicas de que se lembra e é capaz. Providencia até a narração em tons épicos dos seus feitos – nos quais podem estar incluídas as acções mais banais e as situações mais quotidianas.
  Não é estranho apontar-lhe, assim, certo desejo de encontrar ameaças de grande dimensão, na pressuposição de que elas lhe proporcionarão a oportunidade de crescer até às dimensões do papel que idealiza. Como Batman, Darkwing precisa dos seus inimigos, porque são eles que lhe justificam a máscara. E é a máscara que o mantém desperto, já que Drake Mallard, o seu alter ego, no fim de contas, só existe porque super-herói que se preze precisa de identidade secreta. Os dois heróis parecem partilhar o manto: Darkwing adopta a seriedade de Batman para encarar ameaças ridículas, quase infantis. Incapaz de brincar, Batman adoptaria a mesma atitude séria perante o que poderia ser mera palhaçada. No limite, o que os torna o inverso um do outro é o inimigo: diante de Darkwing, não há Joker nenhum a impossibilitar qualquer riso, a conferir um definitivo rosto trágico aos acontecimentos. Os inimigos do pato de capa são palhaços no sentido cómico do termo, nunca no trágico, nem muito menos no terrível, e por isso a atitude séria, se em Batman é resposta adequada, em Darkwing não podia surgir mais deslocada. Actua muito por aí o humor vertido nas suas aventuras. Mas se o humor funciona pela inversão da ordem, por situar em posição deslocada ou fora de lugar os elementos sujeitos a ridículo, é Batman, não Darkwing, quem, em última análise, se oferece a – e até provoca – o mais terrível sentido de humor: Joker não surge somente em resposta à seriedade de Batman, ele não ri simplesmente porque este não o faz, mas sim porque essa seriedade não parece cómica a ninguém. Joker não responde simplesmente a Batman não achar piada a nada, mas a que ninguém ache piada à falta de sentido de humor do homem-morcego. Se Darkwing não encontra o seu Joker, não é então culpa sua: porque embora lhe falte sentido de humor (ou justamente por isso), nunca é difícil rir dele. Em última análise, o seu heroísmo também é o de nunca rir, porque aquele que apenas ri suscita a pergunta terrível de quem não acha graça: "qual é a piada?" Por outras palavras, um Joker terrível, que nunca riria, surgiria no mundo dos patos se este herói compreendesse a graça.
  Dizer que este pato não sabe brincar não é falso, mas fornece só uma das dimensões que a questão suscita. Um brincalhão diverte-se no meio de coisas sérias, trata-as como leves, enquanto Darkwing Duck, invertendo esse espírito, encara seriamente aquilo que, à partida, seria leve e engraçado. Mas não o faz como adulto envelhecido e empedernido que muda o cariz às coisas. Ele não transforma as coisas, já que estas nunca perdem o seu tom cómico; limita-se a vê-las de outro modo. O seu olhar visita o mundo sempre munido de gravidade, mas nunca o torna grave. Inverte o brincalhão em espírito, mas não em acções: se aquele joga com coisas sérias, este não torna sério jogo nenhum, pois já o encontra assim mesmo; se algo muda no mundo por acção do olhar deste pato, não são as coisas, mas o olhar dos outros sobre elas, porque ele limita-se a revelar o peso que elas têm escondido nas cores berrantes. Assim, é como se o pato mascarado fosse o único que, neste universo, consegue adivinhar a gravidade dos acontecimentos e personagens que o rodeiam, escondida por máscaras de patetice. Nada para ele é anódino nem inofensivo, porque o perigo é real está sempre à espreita. O ridículo existe e ele experiencia-o com frequência; mas nunca é leve nem o faz rir.
  Isto suposto, Darkwing Duck parece igualmente o inverso do homem-aranha: constantemente perseguido por vilões que o atormentam e por responsabilidades que sente sobrecarregarem-no, Peter Parker acha-se em luta permanente com a sua máscara, sofrendo crises existenciais que recorrentemente o fazem desejar e mesmo decidir deixar o trabalho de herói. Anseia por uma vida normal, liberta de tragédia e culpa, e podemos supor que se ao menos não houvesse crime, o homem-aranha poderia brincar: seria livre. Usa frequentemente humor enquanto combate vilões, mas em muitas ocasiões, tal parece tentativa, por vezes desesperada, de aliviar o ambiente, demasiado sério e carregado, dados os perigos em questão. Pelo contrário, Darkwing Duck não se vale de pilhérias para seja o que for, porque o seu intento nunca é o de aliviar o ambiente, senão o de o carregar.
  Drake Mallard sofre igualmente aqui e ali crises e dúvidas existenciais, quando derrotas mais espalhafatosas lhe produzem rombos maiores no orgulho. Também ele volta sempre para combater o crime novamente, não importa quão baixo o desânimo o tenha levado. Darkwing Duck tem, no fundo, vocação para super-herói a sério em todas as dimensões; só lhe falta o contexto. Está pronto a ser impiedoso no combate ao crime; só lhe faltam criminosos mais perigosos. Está preparado para ser modelo de comportamento e admiração para todos os jovens; só lhe falta ser levado a sério.
  Preso num mundo onde é impossível ser super-herói, porque a seriedade é o maior motivo para riso, Darkwing Duck nunca se descompõe, nem deixa de respeitar o papel que tanto admira e cultiva. Talvez não haja público para o seu teatro, ou talvez a sala esteja cheia de pessoas que riem dele. Mas no fim de contas, na tenacidade com que combate malfeitores e na fidelidade com que ama o teatro da justiça, ele exibe em cada pena um dos sinais distintivos do heroísmo: o da inapagável e impoluta dignidade.

domingo, 20 de outubro de 2019

Por detrás do sorriso


  Joker (Todd Phillips) conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), palhaço de festas e aspirante a comediante que depende de serviços sociais para conseguir os medicamentos de que precisa, vive com a mãe, de quem cuida, e, por razões médicas, sofre de ataques de riso em contextos de pressão ou nervosismo. Acossado por dificuldades financeiras, problemas de adaptação e constantes abusos, maus tratos e incompreensão, além de perder acesso à medicação, Arthur entra numa espiral de descontrolo e alienação que se vem a traduzir em diversos actos de violência.

  Arthur não é o vilão do universo Batman que conhecemos até aqui. Tomado como reverso do super-herói (um veste negro, é sisudo, obedece a um código moral; o outro é colorido, ri e viola todas as leis), ou simplesmente como agente do caos, o Joker quase sempre se identificou com a sua máscara. É fácil pensar que se trata dum Batman fracassado, ou um ponto de chegada diverso do que levou ao homem-morcego, se adoptarmos ambos os casos como respostas a eventos traumáticos – um passaria a usar máscara para tentar corrigir as injustiças do mundo, enquanto o outro adoptaria uma para mostrar que as regras que ditam a observância da lei e da ordem são tão arbitrárias como as que ditam o que tem graça e o que não tem. Mas outra perspectiva pode apresentar-nos o Joker como o caso de sucesso: Batman é a tentativa desesperada de Bruce Wayne de se tornar a máscara, o símbolo, de se desligar do seu passado traumático. Está condenado a fracassar, porque é esse mesmo trauma que alimenta a vida da máscara. Bruce só se torna Batman por não ter podido ser a pessoa que se tornaria no caso de os seus pais sobreviverem; mas essa tragédia não é mera interrupção que o leva a desviar os passos do caminho esperado, já que ele a traz sempre consigo. Não assim com o Joker: não há história que explique em definitivo a (origem da) personagem, porque qualquer que se lhe queira atribuir é redutora e mesmo transformadora: só a máscara – as cores, o sorriso disforme, permanente e sem razão definitiva – o resume. Ao contrário do Batman, consegue tornar-se a imagem que usa. Não é sequer um homem esquecido mascarado, ou pintado; é o Joker.
  Curiosamente, isto fica bem demonstrado na cena de abertura da famosa obra em que se pretende justamente oferecer uma história de origem à personagem: The Killing Joke (Alan Moore e Brian Bolland). Batman desloca-se ao manicómio para tentar falar com o seu inimigo e chamá-lo à razão. Encontra, todavia, um substituto no seu lugar, a fazer dele, e que presumimos tê-lo ajudado a fugir. É isto que acontece quando procuramos falar com o Joker e encontrar nele algum senso ou razoabilidade: só encontramos o seu sorriso; a resposta é sempre de violência e total ausência de razão. Se o homem à nossa frente não rir das nossas palavras, então não encontrámos quem procurávamos, mas sim um qualquer indivíduo disfarçado. Não encontrámos a máscara, mas alguém pintado (é a tinta da pintura, aliás, que denuncia o impostor na obra referida). O homem pintado nunca será quem procuramos; esse andará por outro lado. O próprio Joker, aliás, faz-nos duvidar do relato de origem que a obra nos propõe, já que, como no filme The Dark Knight (Christopher Nolan), garante saltar nas suas recordações de história em história, incerto sobre qual (se alguma) será a verdadeira: "Sometimes I remember it one way, sometimes another ... If I'm going to have a past, I prefer it to be multiple choice!". Não importa verdadeiramente o que lhe deu origem, porque ele já se desligou do que lhe aconteceu.
  É justamente esta a nota diferenciadora no filme de Phillips. Arthur Fleck nunca deixa de ser Arthur Fleck. Evolui, deteriora-se e deforma-se, mas não desaparece, e por isso o Joker nunca surge. Arthur carrega a sua história e nunca consegue libertar-se dela, dos seus dramas, traumas e dores. Pode soar paradoxal, mas Arthur nunca deixa de ser quem é num filme em que o seu drama é muito o de perda de identidade (descobre que as ideias que tinha sobre quem eram os seus pais podem estar erradas). Nem quando perde o domínio e começa a recorrer à violência para reagir aos abusos e injustiças sentimos que desapareça o homem maltratado. As suas acções nunca são crimes dum louco sem nexo; mantêm-se gestos dum homem magoado. A única sugestão (sem passar disso) de que o Joker que conhecíamos chegou surge no fim do filme, quando os seguranças do hospital perseguem Arthur sem o conseguirem apanhar: é isso, que nesta linha mais define esta personagem, a impossibilidade de agarrar a pessoa que esperaríamos encontrar atrás da pintura.
  Arthur sofre duma condição que desemboca em risos que não domina e surgem em situações inapropriadas, normalmente de nervosismo ou ansiedade. O seu riso não lhe pertence. Não surge por sua vontade e nunca é lido pelos outros como pretende. Cita repetidamente a mãe, que lhe recomenda sorrir e pôr uma cara feliz; mas nunca ri de felicidade. O seu propósito, ainda segundo a mãe, seria o de trazer riso e alegria ao mundo; mas só provoca desconforto e estranheza. O riso de Arthur carrega-lhe a tragédia: a expressão mais característica da imagem que projecta é-lhe alheia por completo, e é assim que ele erra pelo mundo, completamente alienado, inadaptado e nunca aceite. Queixa-se à assistente social de que ela não ouve nada do que ele diz, que ela lhe repete as mesmas perguntas sem nunca atender verdadeiramente às respostas. Mas é assim que ouvimos aqueles que, como Arthur, não correspondem aos esquemas que projectamos no mundo para o organizar: quando as suas respostas falham em encaixar nesses esquemas, não as aceitamos e tomamos o seu autor como estranho, louco ou mesmo aberração. Arthur não é outra coisa para quem o ouve.
  Nada na vida de Arthur lhe dá motivos para rir, mas quando nada resta para desmoronar, ele abraça o seu sorriso. Não deixa para trás a sua tragédia, mas deixa de combater a máscara que o amordaçou até então. Passou os anos, como explica, a encarar a sua vida como tragédia, e agora percebe que é uma comédia. Não porque tenha encontrado motivo para rir até então desconhecido, mas porque percebeu não haver verdadeiramente motivos correctos ou preferíveis para gargalhadas. Como esclarece também, os outros decidem quem é bom ou mau – no limite, o que está certo ou errado – com a mesma arbitrariedade que usam para declarar o que é engraçado (e em que momento). É essa autoridade que ele deixa de reconhecer. Quando, no programa de televisão em que comparece como convidado, leva a cara pintada, mostra que deixou de rejeitar a máscara com que se debatera até então; mas se percebeu não poder tirá-la nunca, decidiu que vai ser ele mesmo a pintá-la. Até aí, como os pretendentes à mão de Penélope por força de Atena na Odisseia de Homero (canto XX, 347), rira com as bocas dos outros; agora passará a rir com a sua. O apresentador insiste em troçar dele, e o público em rir das suas peculiaridades; mata então o apresentador, não num gesto frustrado de quem não consegue vencer o riso alheio, mas de quem percebe que para ser dono do riso basta ter poder. E, dependendo da perspectiva, um homicídio pode ser algo muito errado e terrível, ou algo muito engraçado. Talvez as duas coisas: o homicídio torna-se para Arthur terrivelmente cómico.
  Quando Arthur dança para a multidão de arruaceiros violentos que o idolatra, não o faz por aceitar o papel de símbolo que lhe querem colar, mas como quem está livre da necessidade de corresponder ao que quer que seja que os outros exijam, como quem despreza a arbitrariedade que o quer pôr no pedestal (a mesma que antes o largava espancado em sarjetas). Ainda aí, contudo, encontramos um homem e não um palhaço; descobrimos o sujeito que faz palhaçadas, não para divertir os outros ou para se humilhar, mas para se libertar das suas dores. São ainda estas – se bem que agora pela negativa – que continuam a explicá-lo. No universo Batman, o Joker-vilão usa muitas vezes um gás que mata as vítimas deixando-lhes na cara um sorriso desfigurador permanente. Curiosamente, é isso que nunca chega a acontecer a Arthur. Porque se ele abraça o riso que não pode abandonar, não chega a transformar-se nele. Por detrás desse sorriso terrível e traumático, continua a morar o homem magoado que ainda não aceitamos, porque não compreendemos. Nas palavras do próprio, ele ri porque nada tem a perder, porque não é ninguém. Mas não é o riso feliz de quem está contente por ser nada; é antes o riso trágico de quem só se consola por já não poder perder o que quer que seja depois de ter perdido tudo. Quando o vemos rir com tanta tristeza e distanciamento cínico, sabemos que há aí um sinal, por fraco que seja, de que Arthur ainda não desapareceu por completo: rindo, ele chora a perda de si. Mora aí a primeira possibilidade de se encontrar novamente a si mesmo.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Estilhaços


  Na série The Leftovers (criada por Damon Lindelof e Tom Perrotta), após o desaparecimento súbito e inexplicável de milhões de pessoas (2% da população mundial), seguimos as vidas dos que ficaram, os restantes.

  Cada um encara o acontecimento (a "partida" – the departure) de modo diverso, porque não há propriamente fórmula correcta para lidar com o mesmo. O desaparecimento dos familiares e amigos obriga ao confronto com todas as questões que a morte levanta. Para os que ficam, evidencia a fragilidade, precariedade e transitoriedade; recusa motivos, sentidos ou explicações, e nega a perenidade. Os que se vão somem sem adiamentos, razões ou objectivos, nem é possível negociar o desaparecimento. Mas a partida dos 2% parece acrescentar a isto a imprevisibilidade. A morte dos que nos deixam leva-nos a embater no absurdo e obriga-nos a aceitar a arbitrariedade como regra do jogo. Mas é como se com a "partida" as regras não tivessem sido respeitadas. Se a vida humana se faz do permanente diálogo com a certeza da morte, da reinvenção permanente do sentido ou sentidos que permitam continuar apesar do fim que se aproxima, a "partida" tem um efeito destrutivo arrasador: habituámo-nos a integrar a morte no quotidiano, seja por meio de rituais como o funeral ou o velório, seja por meio da recordação dos falecidos e do relato da sua história, seja por recurso a narrativas que lhes dêem pretensa lógica (o "descanso eterno", a "condenação no inferno", a reencarnação, etc.). Em The Leftovers, porém, não é possível garantir que os sumidos não estão vivos. O evento põe a nu o que de mais cru tem a morte: estavam aqui, mas já não estão; não sabemos para onde foram, porque foram ou por que foram. Não sabemos sequer se morreram, mas, no fim de contas, que sabemos sobre morrer? Por debaixo de todas as narrativas, rituais e relatos, morrer é desaparecer, deixar de estar, partir. A "partida" não é mais que a morte despida, arrancada a todos os enfeites que usamos para a aceitarmos e continuarmos como pudermos.
  Esse é o maior desafio para os que ficaram: continuar. A "partida" aparece como evento tão dilacerante, tão destruidor, que ameaça tornar impossível prosseguir. Se recuperarmos da morte (enquanto acontecimento com que temos de lidar) tudo o que tentámos afogar em explicações, relatos e rituais, ficamos com uma ocorrência tão perturbadora que não conseguiremos reconstruir seja o que for. É como se a "partida" rasgasse a linha temporal, o fio que une os dias, desfazendo a ideia de que as coisas continuam, apesar dos que vão desaparecendo; não há explicações para o que ocorreu, e sem reintegrar o acontecido no quotidiano não é possível prosseguir.
  É este dilema que as personagens buscam resolver de modos diversos.
  Alguns tentam arranjar explicações, motivos: Matt, antigo padre, procura convencer as gentes de que a partida terá sido castigo para os pecados do que sumiram. Outros orientam essas explicações, não para o passado, mas para o futuro: o pai de Kevin, nomeadamente, vê a "partida" como prenúncio da grande catástrofe que ocorrerá no aniversário dos sete anos após o dia fatídico. A tenacidade com que se dedica a evitar o fim do mundo que tanto teme só se explica pela necessidade que tem de que esse fim realmente esteja próximo – se o apocalipse não estiver iminente, então a "partida" volta a perder sentido e o pai de Kevin tem de encarar novamente a perspectiva de seguir em frente, mais assustadora que qualquer parúsia.
  Nenhuma explicação cola em definitivo, e muitas pessoas tentam simplesmente deixar a ocorrência para trás, recuperar o quotidiano, recomeçar famílias, amizades, rotinas. Mas isto só é possível por meio de representação e fingimento. Um evento tão destrutivo – que exibe o absurdo da morte e é ainda mais inapagável que esta, porque retém dela o que ela tem de inexplicável sem deixar hipótese de ocultação ou normalização (não se pode fazer funerais para os desaparecidos, não se pode contar histórias sobre o que lhes aconteceu) – não é passível de ser ignorado, esquecido ou desconsiderado. Não é possível deixá-lo para trás, porque ele puxa-nos; não podemos esquecê-lo, porque a ausência dos que partiram não desaparece de tudo o que ficou; não cabe recomeçar, porque tudo o que vem depois vem sempre referido ao que aconteceu. Quem tenta seguir em frente só o consegue fingindo que o está a fazer, e portanto falha. É esta hipocrisia que buscam denunciar os "guilty remainers" (GR). Recusam falar e fazer seja o que for, porque a comunicação e os actos perderam significado. Já não servem para construirmos histórias de vida, erguermos construções, prosseguirmos – porque prosseguir já não é possível, porque as premissas básicas para seja o que for poder ter sentido desapareceram, porque não somos humanos em vez de animais por ficarmos contentes por estarmos vivos, e sim por não percebermos porque o estamos; e se um evento como este afunda todas as possibilidades de sentido com que gostaríamos de enganar esse absurdo, só nos resta aceitar o vazio do que ficou.
  Jarden representa um milagre para os que ficaram porque é uma desejada ilha de salvação. Os que procuram a terra não o fazem para estar a salvo do que possa vir aí, mas do que ficou para trás. É esse o erro inicial de Nora e Kevin: estão a fugir do futuro, desesperados por assegurar que não se repita o que aconteceu, mas é precisamente o que aconteceu o que ainda têm por resolver. Para todos os desesperados, Jarden é o lugar onde as coisas seguem como sempre, onde ninguém desapareceu e não houve perturbação. Não devemos estranhar, por isso, a intransigência de John e companheiros na negação de qualquer mistério ou cariz sobrenatural: o verdadeiro milagre é o da normalidade. Está tudo como deve estar. Nada de estranho ocorreu em Jarden, apesar de ser o único lugar a escapar à "partida"; a anormalidade verificou-se somente no resto do mundo. Não há tesouro mais valioso que esse. Ou não haveria, se fosse verdadeiro. Na realidade, a ilha desejada é uma bolha feita de especulação, fé e misticismo. Os GR destroem um paraíso que nunca foi real: a "partida" não estilhaçou todos os lugares menos aquele, como se aquele estivesse arrumado num universo à parte. Ela estilhaçou todos os lugares, inclusive aquele onde não se verificou, porque mesmo para os habitantes de Jarden foi posto a nu o absurdo que destruiu tudo no resto do mundo. Ninguém na família de John desapareceu, mas com a "partida" deixou de haver família (para usar as palavras de Evie, a filha rebelde), não há sentido em continuar. É isso que lhe tenta dizer a filha pelos seus actos de violência.
  Nem sequer o suicídio oferece resposta. O suicida escolhe assumir o fim da sua vida, como que dizendo que se não pode tomar conta dela, enchendo-a de sentido, pode ao menos ditar-lhe a conclusão, escolher como e onde acaba. Mas é só isso que consegue, escolher o seu fim. Não há universalidade no seu gesto, não há sentido que possa emprestar a outros. É só a acção de escrever o capítulo final de um livro cuja história se mantém vazia de porquês. Os suicídios tentados ou simulados a que Nora ou Kevin se entregam não podem, por isso, resolver o que quer que seja. Talvez ofereçam a satisfação transitória de estarem vivos e presentes, de não terem desaparecido. Mas o maior drama é afinal esse mesmo.
  Há esperança para Nora e Kevin no fim da terceira temporada? Provavelmente sim, porque Nora conseguiu finalmente deixar para trás a família. Ao vê-los e descobrindo o que lhes aconteceu, a "partida" ganhou para ela um sentido, uma história que pode reintegrar na sua vida. Ver que os filhos e o marido continuaram sem ela é doloroso, mas permite-lhe deixá-los em definitivo, arrumá-los no passado e recomeçar. O que faça daí em diante já não tem por que estar a referido à "partida". A própria "partida" deixa de ser desaparecimento. Ela encontra o mesmo que Laurie e John ofereciam aos desesperados por consolo: não trazer-lhes os seus entes queridos de volta, nem sequer explicar onde estão, mas garantir que estão em algum lugar, que nenhum buraco negro os engoliu. Estão longe e não os podemos alcançar; mas onde quer que estejam, é aí que estão, não se desvaneceram. Talvez isso baste.

domingo, 18 de agosto de 2019

A enfermeira ausente


  No conto “The trouble with mrs. Blynn, the trouble with the world”, de Patricia Highsmith, a sra. Palmer, moribunda, recebe, numa casa de campo arrendada por recomendação médica, os cuidados da enfermeira Blynn e da empregada Elsie. No dia da morte, recebe também a visita do filho.

  A sra. Palmer sente-se um fardo. Sente-o a ponto de precisar de encontrar compensações para os incómodos que acredita impor aos outros: o pagamento acima da média à empregada e à enfermeira, o arrendamento da casa que naquele período do ano normalmente ficava vazia, etc. Sente-o a ponto de aceitar a ordem que lhe impõem, não como quem se resigna, mas como quem reconhece que os outros decidem melhor, mesmo quando decidem por ela. Mais que tudo, o que a leva a ver-se como encargo para os demais é a perspectiva da morte próxima: consciente de que vai morrer em breve, fica tomada pela certeza de que está a mais no mundo. Só lhe resta morrer, e por isso tudo e todos estarão certamente à espera desse desfecho; qualquer demora em fazê-lo será atraso. Mas se o desencanto da sra. Palmer pode trair a ilusão em que ela vivera até então, não mora aí mais que uma condição de validade universal: se ela tiver razão e os outros realmente a virem como encargo e pouco (ou nada) mais, então não apenas nos escondemos da nossa morte como só procuramos quem nos prometa durar para sempre. O mal da sra. Palmer é o de neste mundo só haver lugar para imortais. Aquele que já não nega nem esconde que vai morrer é demasiado inconveniente, até obsceno, para lhe sorrirmos. É justamente a efemeridade o que a sra. Palmer ainda quer ocultar quando se maquilha para as visitas que recebe. A morte é tão feia como evidente; ela já não a pode esconder, mas ainda pode escolher não a trazer no rosto.
  De que vale ligarmo-nos ao efémero? A sra. Palmer continua a procurar ligações, mas as tentativas frustram-se, porque embora nos liguemos apenas ao que não pode durar, não conseguimos fazê-lo quando a efemeridade é demasiado evidente. Parece estranho, mas a sra. Palmer dirige os seus intentos ao alvo mais improvável: a fria sra. Blynn. A distância é justamente o que mais marca a enfermeira. Parada na sala da paciente, a sra. Blynn tem um sorriso “ausente” (“Mrs. Blynn was standing with an absent smile in the center of the room”) porque o dirige ao que está longe: o que a faz sorrir são as memórias do marido e do tempo que passaram naquela casa. Quando torna ao presente, a sra. Blynn desaparece, esfuma-se em gestos eficazes, indiferentes e impessoais. A sua frieza é a mesma que só os médicos conseguem mostrar, porque só eles podem ser profissionais tratando da intimidade alheia. A sra. Palmer deseja que a enfermeira mostre ao menos o desejo interesseiro de lhe prolongar a vida para estender o pagamento, mas o profissionalismo da sra. Blynn é demasiado inumano para isso. Está demasiado distante da moribunda para a conseguir encontrar com o seu olhar vítreo (“her bulging green-gray eyes were glassy, as if she saw nothing and did not need to see anything”). A sra. Palmer não é para ela uma pessoa a ser compreendida ou ouvida, mas uma tarefa. As conversas com ela não servem para construir ligações, são mero trabalho. No fim de contas, a enfermeira não vê a sra. Palmer, mas a verdadeira ausência não é a da paciente: se espreitarmos pelo vidro dos olhos da sra. Blynn, veremos que lá não mora ninguém.
  A enfermeira ausente não pode corresponder ao desespero da paciente por construir qualquer simulacro de ligação por meio de conversas, perguntas, observações. Mas onde mora verdadeiramente a sra. Blynn? Mais do que nos sítios que pisa, mora nos lugares onde se projecta. A altivez que exibe, as indicações dadas em jeito de comando, até os saltos muito altos, sugerem que ela acredita merecer outro lugar no mundo, mais elevado que o que lhe coube, e trata os outros como se ocupasse de facto esse lugar, olhando-os de cima. Mas essa altura a que se assoma impede-a de descer ao nível da sra. Palmer para lhe pedir o alfinete que tanto cobiça. Do seu pedestal, não consegue mais que sugerir à enferma o interesse no objecto e esperar que esta lho ofereça, para o poder aceitar como quem faz um favor. Fracassa, não por causa da sra. Palmer, mas apesar dela.
  A moribunda oferece o alfinete à empregada, talvez, para de algum modo derrotar a sra Blynn ou vingar-se dela. Ou busca porventura provar, pela consequência (o prémio), a suposta bondade de Elsie. Esta bondade, no entanto, se não é fingida, pode resumir-se à decência devida a seres humanos em geral, ao respeito de mostrar que reparamos neles e os tratamos como reconhecendo-lhes o direito ao lugar que ainda ocupam. Por isto, a sra Palmer tenta, mais que tudo, inventar uma ligação, uma última antes de partir, um último contacto humano significativo, que não apenas respeito e educação, mas verdadeiro interesse, afecto, troca.
  É após todas as tentativas, depois de morrerem as possibilidades de ainda se agarrar a qualquer mão ao seu alcance, que a sra. Palmer tenta oferecer o alfinete à sra. Blynn. Este já não é um gesto de quem se quer agarrar, mas de desprendimento. É uma tentativa última de bondade pura, talvez para redimir as falhas da sua vida (“she could wish her own character had been better, purer, that she had never shown temper or selfishness, for instance”); praticada onde o gesto é mais inútil e, por isso, mais significativo: dirige-se à sra. Blynn, personificação da frieza e da indiferença, da mecanização dos gestos e palavras. Não pode ter sequer a pretensão de redimir a enfermeira ou de lhe revelar a humanidade, porque a sra. Blynn, se dissesse obrigado, não o faria por se sentir agradecida, mas por educação. A inutilidade do gesto que a sra. Palmer não chegou a concretizar é, por tudo isto, a da bondade. No fim de contas, ambas as mulheres querem representar papéis. A enfermeira desaparece na eficiência automatizada dos seus gestos, enquanto a paciente tenta desesperadamente aparecer na enfermidade do seu declínio. A sra. Palmer tenta convencer-se de que a ordem do mundo é a melhor possível, mas não consegue apagar-se na máscara silenciosa da moribunda a quem só resta partir. Depois de tentar que a vejam por todos os modos de pedir que lhe eram possíveis, resta-lhe tentar um último papel: o da criatura bondosa que dá sem esperar em troca. A oferta a Elsie foi a de quem tenta inventar uma ligação. A oferta à sra. Blynn seria a de quem dispensa ligações por se bastar a si mesma com a satisfação de fazer o bem. Veio tarde a ousadia e o gesto não chegou a nascer. Tivera nascido e cairia no vazio onde era suposto morar a enfermeira ausente.