E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Sem regresso


  Na crónica "También ella", conta-nos Millás a sua recente viagem num metro apinhado. Enquanto olhava os companheiros de travessia, tomou consciência de que todos os presentes iriam morrer um dia: tratava-se de uma carruagem cheia de mortais. Procurou então entre as pessoas um imortal, mas todos traziam a morte no olhar ("Todos llevábamos la marca de la muerte en la mirada"). Olhando o seu jornal, imaginou uma notícia no dia seguinte informando nos seguintes termos: "Coinciden en el mismo vagón de metro, el mismo día y a la misma hora, noventa personas que van a morir. Juan José Millás, que era una de ellas, prefirió no hacer declaraciones". Conta, por fim, como cruzou olhares com uma senhora que por ali passou, num momento muito breve, mas pleno de significado, aparentando partilharem ambos o segredo do que ia acontecer.

  A crónica constitui uma nota de destaque a contrastar com o apagamento a que nos votamos diariamente: vivemos a esconder-nos da efemeridade e a nossa transitoriedade termina sendo tão óbvia quanto oculta. Os rituais quotidianos instalam mecanismos de repetição e uniformização, criando, por adormecimento e tédio, a ilusão de eternidade e permanência. Vamos repetindo tarefas, deslocações e trajectos como se não houvesse alternativa e estivéssemos presos numa marasmo perene. Entediamo-nos embrutecidos com a mesmidade e a monotonia, mas é um preço que sentimos ser baixo para o consolo da permanência: enquanto nos repetirmos e nos deixarmos imergir na espuma dos dias, poderemos seguir tomando-nos por imortais. Nunca nos julgamos deuses como quando nos dedicamos a futilidades. É, claro, um mero desviar de olhos: está sempre aí a nossa mortalidade, a espreitar-nos no olhar e nos olhares dos outros. Mesmo que não queiramos ver a ameaça que esses olhares carregam, não há modo de fugir à certeza de que eles hão-de desaparecer em algum momento.
  Também nós nos apressamos a fugir dos olhos estranhos que encontramos; não conseguimos manter a prisão de um olhar alheio por muito tempo e cedo ou tarde recuperamos a alma que os olhos dos outros parecem querer furtar-nos quando nos descobrem. Opera sempre um certo reconforto no momento em que desviamos os olhos para destino nenhum, fugindo do estranho que nos persegue, mas isto é uma mera confirmação de que não chegamos a lugar nenhum para ficar: estamos sempre a exibir a nossa efemeridade. É como se só aparecêssemos para informar que amanhã não estaremos presentes, que viemos aqui para desaparecermos. Aonde vamos, vamos com a promessa de que havemos de partir. Todos os olhares que entregamos a outrem são meros empréstimos: recuperamo-los a todos, no fundo, não tanto por medo de que nos sejam levados em definitivo, mas para mais uma vez nos consolarmos com a ilusão de que se os guardarmos dentro de nós e não deixarmos que os levem, talvez possamos ficar com eles para sempre. Sorrimos como se acreditássemos nas nossas mentiras.
  É ainda mais efémero o cruzar de olhares entre Millás e a mulher do metro. Dura um instante e tudo desaparece. Eles não se conhecem nem há perspectiva de se reencontrarem (ou de se reconhecerem), pelo que nunca falarão sobre o assunto nem restará sequer a hipótese de partilharem uma memória. Talvez a guardem consigo, mas daí a um tempo, como ter a certeza do que aconteceu, ou se aconteceu? É mesmo difícil identificar, de todo o modo, o que se passou de facto. No instante em que tudo se passou, nada, na verdade, se passou, salvo na leitura que Millás faz do evento. O segredo que ele e a mulher comungam é o mais arcano dos segredos, porque não chega sequer a ser transmitido: não trocam palavras, só vislumbres, e é ele quem pretende ler nos olhos dela o que só os dele dizem. O segredo não tem assim apenas a inconsistência da efemeridade: sem substância efectiva, ele é transparente.
  Millás reparou nestas pessoas enquanto lia o jornal. Talvez nenhum instrumento além deste dê corpo tão evidente ao jeito humano de nos distrairmos da efemeridade afogando o transitório numa repetição perpétua. O jornal surge todos os dias: podemos confiar que ele estará lá na manhã seguinte, como está no próprio dia e esteve no dia anterior. Ele sugere a permanência das estruturas em que estacionamos os nossos hábitos e horários. O jornal renova-se diariamente e o seu papel (no sentido literal como no figurativo) nunca morre. Há sempre algo novo a acontecer – a morte do jornal viria de não haver nada a relatar. A ausência de notícias mata o jornal e implica, por definição, a ausência de vida, já que esta só existe no devir, faz-se de factos, acontecimentos.


João Cóias

  Na figura desenhada por João Cóias – em que três bonecos espreitam um jornal que na capa anuncia não haver notícias para hoje –, ninguém está mais morto que o público: petrificados perante a ausência de eventos, não têm rostos para reagirem ao que não acontece, nem mobilidade para desviarem os olhos inexistentes do papel e construírem os factos que poderiam ser dados a conhecer no dia seguinte. Não existe, aliás, "dia seguinte": "hoje" não há notícias e este dia estende-se indefinidamente para onde queiramos olhar. Não há ontem nem amanhã, é sempre hoje e por isso não há notícias, porque nada acontece, nada fica para trás, nada pode ser guardado para ser contado. Os leitores são bonecos porque não podem ser pessoas. São os imortais que Millás procurava no metro, mas o seu jornal é outro, não traz notícias.
  O jornal de Millás, como qualquer um que se debruce sobre o dia de ontem, tem um conteúdo efémero por natureza: só nos traz acontecimentos, eventos; estes, por definição, estão limitados, ou até, de certo modo, mortos: já faleceram porque já ocorreram. A morte desenha-lhes os limites e eles agora cabem numa folha. O jornal traz-nos a sua despedida, sempre definitiva, porque eles não poderão repetir-se (se se repetissem, a notícia seria a da própria repetição). Cada edição de um jornal, em cada dia, dispensa o desalento com que Camilo Pessanha questionava as "imagens que passam pela retina", perguntando-lhes porque não se fixam. Em vez disso, o jornal aceita que todos os acontecimentos moram no dia de ontem e não voltam, optando por continuar a trazer-nos os óbitos das efemeridades que nos distraem. A voragem do jornal é a de usar as efemeridades diárias para perpetuar a sua renovação incessante e, deste modo, o seu mecanismo inverte o funcionamento do animal laborans de que falava Hannah Arendt: enquanto actividade que sustém os processos biológicos básicos da vida humana, o labor realiza-se pela perpétua renovação e repetição; sem princípio nem fim, tudo o que produz é perecível e deve ser consumido brevemente, obrigando à retoma dos processos de produção. Também o jornal se renova na sua mesmidade eterna, mas não para produzir notícias (efémeras por definição) e sim porque se alimenta delas. Também ao jornal falta um fim e um princípio, porque se as efemeridades que traz nas páginas podem ser arrumadas em fotografias e textos, a sua permanência infinita, ao invés, não conhece verdadeiramente o dia anterior ou o seguinte: as notícias podem ser de ontem, mas a imprensa trabalha sempre hoje. Este contraste é oferecido ironicamente no sketch dos Gato Fedorento em que um apresentador de televisão anuncia no telejornal que o mundo vai acabar dentro de 29 minutos, indicando que de seguida serão dadas informações de trânsito. O noticiamento em si – enquanto processo –, como se vê, não admite princípio nem fim, a tal ponto que o próprio fim (do mundo), enquanto notícia, é mais um acontecimento efémero a juntar aos outros (as informações de trânsito) que passam e não ficam. Não há-de vir nada a seguir ao fim, mas nem por isso muda a máquina o seu modo de funcionamento, pelo que ela seguirá transmitindo as notícias como sempre.
  Millás quer, finalmente, fixar este encontro com os transeuntes do metro com o único instrumento de eternização ao seu dispor: a escrita. Pelo registo, pretende de algum modo manter o sucedido, mas até que ponto o consegue? O relato que fica – admitindo que fica – é só relato, nunca o próprio acontecimento. Para lá disso, o texto resume-se praticamente a pensamentos do autor, a leituras e suposições, e não a factos efectivos. Um texto de impressões despido de factos a ilustrar talvez a vanidade da pretensão com que nasce: ele carrega no seu propósito o seu próprio fracasso, pois nunca poderá suceder em fixar em definitivo o que nasceu para passar e desaparecer. No seu desconsolo ao ver fugirem-lhe as imagens que passam, Camilo Pessanha sabia que não valeria a pena gastar versos a prender essas imagens voadoras que nunca pousam. São outras as asas da efemeridade: as que os pássaros nos mostram fecham sempre de novo para eles poderem tornar à terra. As que os levam para desaparecer em definitivo nunca fecham, porque também eles, como os mortais da carruagem do metro, foram feitos para nunca voltar.

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