E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Beleza morta



  Na história de Branca-de-Neve, quando os anões tomam Branca-de-Neve por morta, acabam por deixá-la num esquife até o príncipe surgir.

  Como explicar a opção dos anões, perante a normalidade de enterrar os mortos? Na versão da Disney (Snow White and the seven dwarfs), a justificação para manterem Branca-de-Neve junto de si é a de que ela era tão bonita que não foram capazes de a enterrar ("...so beautiful, even in death, that the dwarfs could not find it in their hearts to bury her..."). 
  Resulta especialmente irónico este fundamento quando nos lembramos de que a beleza é, nas pessoas, tão perecível quanto subjectiva. Aos anões custa separarem-se de Branca-de-Neve, não conseguem deixá-la partir, mas agarram-se justamente àquilo que nela mais está, em teoria, condenado a desaparecer. Nada é tão efémero nos seres humanos como a aparência, porque ela vive da juventude, e esta só pousa no passado. Os anões parecem descortinar no rosto da sua adorada, todavia, um cariz diferente: o grau da sua pulcritude é tal que lhe acrescenta algo em qualidade, tornando-a perene – uma tal beleza não perecerá.
  O que se segue parece uma confirmação de que a beleza mora nos olhos de quem a vê. Com efeito, é esta adoração dos anões que verdadeiramente sustenta Branca-de-Neve, já que, na sua posição de meros espectadores do quadro estético oferecido pela moça, acabam por fazer mais por ela do que o príncipe que a vem a beijar. É a posição deles a que exige mais fé, porque é essa a mais absurda: a sua decisão é tomada sem base racional. Com tudo para acreditarem morta Branca-de-Neve, eles recusam despedir-se dela. Acreditam numa beleza como nenhuma outra: uma que não esvanece nem se perde. Uma beleza que perdura. A sua fé é tão louca quanto sólida, tão irracional quanto admirável. E esses mesmos olhos agarrados à beleza da jovem abdicam de a enterrar, mantendo-a na única casa em que pode morar a aparência: a superfície. Ela pode assim perdurar nos olhos de quem a vê, de quem a quer ver para sempre.
  A perenidade da moça, todavia, promete somente a imobilidade. À morte de Branca-de-Neve só falta o rosto: ela não respira, não fala, não gesticula. Já não tem qualquer interacção no mundo, é quase um mero objecto, um cadáver incapaz até de procriar. A beleza a que os anões se dedicam e na qual depositam a sua fé faz-se só de rosto, não de vida. Parecem adorar, não uma beleza morta, mas a beleza da morte. De resto, é fácil notar a coerência da sua postura: incapazes de a enterrar por a verem tão bonita, querem mantê-la à superfície, junto deles, onde podem seguir admirando-a eternamente. Uma tal beleza, assim o crêem, é seguramente eterna – mas, no fim de contas, se ela não pode morrer, é porque não está viva.
  Mesmo depois do seu despertar, o destino da jovem não parece capaz de inverter estes juízos. Uma vez acordada, ela desaparece com o príncipe para um castelo de onde nada mais sabemos deles e onde, supomos, terão vivido felizes para sempre. Que outro eufemismo para a morte conhecemos mais claro que o de uma prometida felicidade eterna, sem peripécias, dúvidas ou cansaço? Muito mais viva é a Cinderela de Jerome K. Jerome ("On the disadvantage of not getting what one wants"), que, depois de uns meses de felicidade com o seu príncipe, sofre as agruras de uma vida no palácio para a qual não foi fadada e sonha retornar à sua cozinha e aos seus labores domésticos. Não admira assim que Branca-de-Neve desapareça para um castelo situado num lugar que não podemos localizar, que está fora do mundo. Manter-se por aqui significaria continuar a viver, com tudo o que vai aí implicado: dias tristes, infelizes, entre outros de alegria; significaria, enfim, poder morrer. Em vez disto, ela "acorda" para desaparecer, acorda para mostrar que não lhe é mais possível acordar verdadeiramente,
  As nuances do destino de Branca-de-Neve sugerem-nos igualmente dúvidas sobre o suposto fracasso da Rainha Má, sua madrasta. Podemos desde logo perceber porque precisa esta de se transformar numa bruxa (i. e., numa velha feia e sinistra) quando resolve deixar a princesa naquele estado de sono perpétuo. Se o espelho lhe devolve Branca-de-Neve quando a Rainha se desloca até ele, isto tem de significar que Branca-de-Neve é a única hipótese de beleza da Rainha: quando pergunta pela maior de todas as belezas, é-lhe devolvido o rosto da moça. Oferecendo-lhe como reflexo este rosto, o espelho ameaça a Rainha com a eternidade de uma beleza que não desaparece nem se atenua – uma eternidade fora da vida. O que a madrasta faz ao adormecer Branca-de-Neve é retirar do plano da vida a beleza desta, tornando-a coisa perene, muda e imóvel: uma estátua. Se a Rainha quer viver, se pretende continuar a falar, agir e a mover-se no mundo, tem então de abdicar da beleza à qual quer retirar o espírito. Também ela, como os anões, reconhece no rosto da princesa uma graça duradoura, que não esvanece. Se quer escapar à perenidade do que não pode morrer e por isso não tem vida, ela tem de abdicar dessa beleza fatal que encontra no reflexo e tornar-se velha e feia, só lhe restando viver como coisa perecível, deteriorável e imperfeita. 
  Desta perspectiva, ao contrário do entendimento mais comum e apressado, a Rainha não quer ser a mais bela – ao invés, é precisamente esse o seu terror. Ela não se torna uma bruxa velha e feia para conseguir a pulcritude, mas sim para fugir desta. O que ela quer é viver. Branca-de-Neve é a mais bela, mas o preço disso é o de possuir uma graça perpétua, sem acontecimentos, objectivos ou interrupções – sem um fim. A Rainha não deseja isso, mas sim a certeza de que vai morrer um dia – ela quer saber que está viva. E assim o seu gesto criminoso é talvez egoísta, mas compreensível, porque é afinal o de se agarrar à vida – não a de uma permanência paralisada, mas antes a de uma efemeridade cheia de significado humano. Não tanto sequer a vida, mas sim a vitalidade. O seu plano é então o de deixar a princesa esgotar a beleza vegetativa que lhe cabe e guardar a vida animada para si. Consegue o que procura, de certo modo, até ao limite: vem mesmo a morrer. Mas por aí prova que estava viva.
  Surge agora com outra clareza a oposição entre os destinos das duas mulheres. Branca-de-Neve acordou mas é difícil ou impossível dizer que despertou verdadeiramente: é, com efeito, duvidoso que esteja viva, se a esta expressão quisermos atribuir algum significado humanamente reconhecível.  Já a bruxa morreu, mas de um modo que lhe permitiu provar definitivamente que chegou a viver. Esta contraposição é levada a um extremo gráfico na versão dos Irmãos Grimm ("Schneewitchen"), onde a Rainha termina os seus dias condenada a dançar com uns sapatos vermelhos até morrer. Não podia ser mais óbvio o contraste visual oferecido neste final tão grotesco: a Rainha mexe-se, literalmente, até morrer, enquanto Branca-de-Neve pode viver imóvel. Mas aquela morre porque se move – é mesmo a a sua vitalidade que a mata – e esta vive porque pára – é a imobilidade que a mantém. Uma mexe e morre porque está viva. A outra deixa-se quieta e permanece porque está morta.

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