Numa carta de 13-14 de outubro de 1927, Virginia Woolf pergunta a Vita Sackville-West, mulher que amava, se é verdade que ela range os dentes durante a noite: "Is it true you grind your teeth at night?"
Como se ama alguém, e como se diferencia isso de conhecer quem se pretende amar?
Woolf escrevia por então Orlando, inspirado em Vita e tido por um dos filhos desta como longa carta de amor em forma de literatura. As perguntas que lhe dirige são, portanto, pesquisa para o seu livro. Mas não apenas. Também quer conhecer quem ama – porque conhecer é afinal a única forma de possuir que pode ter quem não vive junto (e a mais eficaz para quem vive). Privada da intimidade prolongada de Vita, resta a Woolf buscá-la pelos dados e peculiaridades. Só conhecendo as curvas pode traçá-la de longe, tornando-a presente.
Woolf quer então descobrir Vita à luz do candeeiro, para encontrar o que a luz distraída do dia não nota (“I want to see you in the lamplight (...) just to sit and look at you, and get you to talk, and then rapidly and secretly correct doubtful points”). Visa enriquecer o objecto de adoração com pormenores. Mas como se vê, ama sem idealizar, pois a idealização foge à minúcia, sofre horror a vincos e rasgões: tudo quer liso e sem manchas. Não idealiza Woolf, que ama buscando esgotar a realidade daquela a quem ama. Precisa de lhe conhecer as imperfeições, dar conta das particularidades que a situam pela precisão. Querendo ajustar o retrato, Woolf abdica de retratos, porque substituindo pelo conhecimento a distância, consegue enganá-la.
Woolf não se assume, enfim, como criatura adorante, senão conhecedora: conhecer é amar, porque só conhecendo pode criar quem já existe, e a criação é o acto de amor mais genuíno e frutuoso, por dar fruto que nasce para ser amado. Conhecer é a única via que lhe resta para poder reinventar a mulher que não pode agarrar nem quer adorar.
Curiosa resposta (não cronológica: consta de carta de 21 de janeiro de 1926) encontra então Woolf na correspondente: “I am reduced to a thing that wants Virginia”. Reduzida a coisa querente, a amada apaga os pormenores que a amante pedia. Transforma-se em amante a coisa amada, e logo o faz reduzindo-se ao sentido único de desejar e conhecer quem ama. Deita fora seus pormenores, seus erros e imperfeições, mostrando-se disponível para ser preenchida com as particularidades de quem abraça.
Escreve ainda Vita: “I miss you even more than I could have believed; and I was prepared to miss you a good deal”. Preparada para sentir a falta até dado ponto, descobre senti-la além do esperado. Em pureza de sentimento, não é no conhecimento do que se procura, na intelecção do que se toca, que mora o amor, mas neste excesso, nesta deriva delirante que sempre surpreende retirando o chão ao pé que julgávamos poder pousar com segurança.
Sem este excesso, sem esta surpresa e este andar perdido, nada move o desejo de abraçar ou de saber. Só transviado se pode amar conhecendo. De pés assentes na terra, aprende-se como cientista, não como amante. Nem Woolf, nem Vita são cientistas. Ambas escritoras, não puderam deixar de pensar, de querer conhecer e abraçar como quem sabe. O que parece transpirar, entre as linhas usadas para se adivinharem, é o desejo derradeiro de se perderem – mas perderem-se nos corredores do palácio último que sonham habitar: no coração que, tão distante, trazem no peito.
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