Natividade Corrêa
No livro A Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen, Oriana perde os poderes e as asas como castigo por negligenciar os deveres de fada.
Numa das visitas que realiza pelo seu purgatório pessoal, encontra o poeta para quem costumava encantar a noite. Ele começa por reconhecer-lhe o rosto, mas logo duvida, não lhe vendo varinha nem asas. Diz-lhe então:
- Se és Oriana, encanta a noite.
Sem varinha, Oriana não pode aceder ao pedido, e o poeta, furibundo, expulsa-a como impostora.
Mais que pedir à fada que encante a noite, o poeta impõe a condição: 'se és a mágica donzela que dizes ser, encanta a noite. Se não o fizeres, não és Oriana'.
Condição terrível: pelo julgamento do homem, Oriana deixará de ser quem é se não cumprir o gesto que ele lhe demanda. Tirano poeta nos soa este, mas que faz ele senão absorver a identidade que a fada lhe ofereceu? Limita-se a reduzi-la à eficácia do gesto por ela prometido.
Foi Oriana que prometeu encantar a noite; fê-lo quando a encantou em todas as ocasiões em que apareceu, mudando a noite consoante lhe era pedido. Eis, portanto, como se ofereceu prometendo: 'sou Oriana, sou uma fada, encanto a noite'. Prometeu e cumpriu. Ela própria, deste modo, se reduziu ao gesto de encantamento, e a tal ponto o fez que, aparecendo sem o fazer, deixa de ser quem era até aí.
Tem assim razão o vate, e essa razão deu-lha a fada. Nem por isso deixa de ser tirano.
É tirano, porque o seu pedido é demasiado violento. A exigência que apresenta é destruidora: 'não és tu, se não fores capaz de ser tu'. Afirmação tão lógica quanto violenta, tão redundante quanto aniquiladora.
Que falta ao poeta? Misericórdia. O gesto de abertura de deixar que a fada seja não sendo fada. Quando Oriana lhe diz que não pode encantar a noite, falta ao poeta a bondade necessária para a abraçar na noite escura. Aceitar que a escuridão vai envolver ambos e que é o momento de se juntarem. Aceitar a fada que nessa noite, não é fada.
Não é capaz de piedade o poeta, não aceita a fada incapaz de ser fada. Para ele, aquela não é Oriana. Contudo, não é cruel, senão tirânico. Não tem maldade, nem ódio (zanga sim, mas não mais), tem impiedade. Não é mefistofélico, mas frio.
Também carece de imaginação (por isso precisa de Oriana). Se a tivera, podia imaginar uma noite encantada para os entreter. Mas então também não precisaria de fadas. A sua pobreza imaginativa é a dos poetas antigos, que chamavam por musas. Quando a musa surge, porém, dizendo que já não é capaz de o inspirar, ele demite-a do papel.
Não é para entreter fadas que puxamos pela imaginação. O poeta é pobre, e isso faz dele o que é: um tirano. Não faltou ao encontro com a fada, porque continuou a ser o que sempre foi: cabaneiro, falho de chama, ditador. Pede e exige a Oriana, porque sempre fez isto: aceitar o que a fada lhe prometeu e foi dando até agora.
Faltou a fada ao encontro com o poeta, porque quando compareceu, disse que não podia ser quem era. Quis continuar a ser quem fora até aí, mas não encontrou piedade. O poeta não a deixou ser Oriana, assim a castigando por não ser Oriana como sempre fora. A impiedade do poeta é a mais radical e cruel possível, é a de não lhe permitir não ser quem é, mesmo que só desta vez.
Saltando dum precipício para salvar uma idosa que caíra, Oriana consegue recuperar as asas e a varinha. Quando visita novamente o poeta, este reconhece-a e pede-lhe que encante a noite, ao que ela acede. Mas Oriana vem voando: não tem os pés no chão. Chega mais etérea que nunca esta fada, e confirmamos o que já sabíamos: o que o poeta esperava era a Oriana exigida quando a moça se mostrou incapaz de encantar a noite, e não a pessoa que ele mandou embora.
Onde ficou a rapariga que o poeta rejeitou, a quem foi negada a hipótese de não ser fada por uma noite, que estendeu a mão e não encontrou a do poeta, que ficou sozinha para se perder na escuridão? Podemos estar seguros de que não voltou do precipício a que se atirou. Porque não tinha asas para voar, nem condão para encontrar saídas. Voltou a magia, e o poeta sorriu, porque o encanto que esperava tornou. A noite encantou-se e ele pôde criar versos. Tornou a fada, mas foi-se a menina. Surgiu uma vez pedindo ajuda, mas o poeta não a esperava e não tinha espaço para ela. Foi embora, enfim, porque só assim podia a fada voltar. Desapareceu, porque é esse o preço de encantar a noite.
Saltando dum precipício para salvar uma idosa que caíra, Oriana consegue recuperar as asas e a varinha. Quando visita novamente o poeta, este reconhece-a e pede-lhe que encante a noite, ao que ela acede. Mas Oriana vem voando: não tem os pés no chão. Chega mais etérea que nunca esta fada, e confirmamos o que já sabíamos: o que o poeta esperava era a Oriana exigida quando a moça se mostrou incapaz de encantar a noite, e não a pessoa que ele mandou embora.
Onde ficou a rapariga que o poeta rejeitou, a quem foi negada a hipótese de não ser fada por uma noite, que estendeu a mão e não encontrou a do poeta, que ficou sozinha para se perder na escuridão? Podemos estar seguros de que não voltou do precipício a que se atirou. Porque não tinha asas para voar, nem condão para encontrar saídas. Voltou a magia, e o poeta sorriu, porque o encanto que esperava tornou. A noite encantou-se e ele pôde criar versos. Tornou a fada, mas foi-se a menina. Surgiu uma vez pedindo ajuda, mas o poeta não a esperava e não tinha espaço para ela. Foi embora, enfim, porque só assim podia a fada voltar. Desapareceu, porque é esse o preço de encantar a noite.
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