E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 27 de setembro de 2020

Uma coisa pequena a brilhar no escuro

  No conto "A small, good thing", de Raymond Carver, no dia do seu oitavo aniversário, Scotty é atropelado e, horas depois, levado para o hospital. Nos dias seguintes, enquanto aguardam melhoras, os pais vão recebendo telefonemas de alguém avisando que há um bolo por levantar, ou nada dizendo. A criança acaba por morrer, e a mãe lembra-se de encomendar um bolo a um padeiro para o aniversário do filho, pelo que deve ser ele do outro lado do telefone. Furiosa, vai com o marido, durante a noite, ao encontro do padeiro, que, inicialmente, se mostra zangado por não ter sido recolhido o bolo, mas ao saber da morte do rapaz, pede perdão, fala da sua solidão e consequente inaptidão social, e oferece-lhes pães acabados de fazer, apresentando-os como uma coisa pequena, mas boa ("a small, good thing"). Os dois aceitam, ouvem o padeiro, acalmam-se e, já nascendo o dia, têm pouca vontade de partir.

  É precioso este momento para os conversadores. Perdidos no turbilhão das emoções que ameaçam, descobrem no meio da tragédia que não têm de cair, podem apoiar os pés em coisas boas, ainda que pequenas. O pão acabado de fazer não vale um filho, não é um projecto de vida, nem preenche de significado o quotidiano de ninguém, porque apesar de boa, é coisa pequena. Mas do mesmo modo, apesar de pequena, é boa. Podemos descortinar uma sabedoria rudimentar – escondida, porque profunda – neste padeiro simples que não conhece muito, mas tem consciência suficiente para observar e notar, na pintura negra que lhe invade a casa, que os pães acabados de fazer são, ainda assim, uma coisa boa, um pequeno prazer. Por isso, embora levando dias tristes e deprimentes, a sua vida não é de pobreza sem tesouros, porque a pobreza ainda permite pequenas riquezas, se tivermos olhos para as descobrir e engenho para as revelar.
  Ao mesmo tempo, curioso jogo de espelhos se joga entre estes deambuladores. Temos de um lado os pais vindos de perder o filho, o algo enorme que lhes enchia a vida, e que agora deixa um vazio gigante. E do outro o padeiro, cuja vida não conhece algos grandes, pois ele só possui coisas pequenas. O casal perdeu a coisa grande que tinha – nessa linha, perderam tudo, porquanto tudo perde sentido morto o filho. Para os consolar, o padeiro, que nada tem, oferece-lhes tudo: partilha o seu pequeno tesouro, e assim dá mais que todos, segundo a parábola de Cristo, pois dá tudo o que é seu. Com uma das coisas pequenas que lhe fazem os dias e nunca o farão rico, o padeiro enriquece a vida dos desesperados pais que não verão o filho de novo, e, por isso, serão pobres para sempre.
  Um vazio como o deixado pela morte do filho, buraco tão grande, não se preenche com coisa tão pequena, naturalmente, nem sequer com muitas delas acumuladas. O padeiro, contudo, não lhes dá somente o pão quente: também lhes chama a atenção para ele, fazendo-os notar que estão a receber uma coisa agradável. Perdidos e afogados na escuridão da dor, cegos no vazio do seu buraco, eles nada vêem, parecem condenados a levar o resto da vida mecanicamente, sem encontrarem significado para os actos ou perspectiva para os dias vindouros. Aparece, todavia, o padeiro para lhes notar que as coisas não continuam simplesmente aí, como pedras; tenham sentido ou não, elas ainda podem ser boas, e aí está um exemplo adequado para o demonstrar. Amostra pequena em exibição, mas incomensurável no salto que permite ao casal dar, possibilitando-lhes o serem de novo capazes de ver que no mundo, ainda há motivos para sorrisos, por mais vãos ou transitórios. Vãos e efémeros os sorrisos, nem por isso menos valiosos, porque no escuro brilham.

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