Ácis, Galateia e Polifemo (Pompeo Batoni)
No Livro XIII das Metamorfoses, de Ovídio, Galateia fala da paixão que lhe tem o ciclope Polifemo, e de como este, esquecendo seus rebanhos e grutas, cuida do aspecto para se mostrar mais atraente para a nereide, penteando o cabelo com um ancinho e a barba com uma foice, e olvidando mesmo as emoções cruéis em geral. Senta-se depois numa colina e, tocando flauta, canta o seu amor pela ninfa.
Porque é Polifemo um monstro? Na tradição clássica, as suas feições são tão horrendas como os ímpetos e os gestos. Polifemo é terrível de olhar e de sofrer: tem gosto por matar e comer pessoas, é feroz e sádico. É também feio e assustador.
Mas os monstros também se apaixonam, e quando se enamora, Polifemo tem a preocupação, que só quem tem esperança pode sofrer, de se arranjar para a amada: espreita o reflexo na água e treina olhares, penteia-se e desbasta a barba. Parece ridícula, porque obviamente iludida, a sua pretensão de parecer bonito aos olhos de quem ama. Se se apaixonara por criatura similar, podíamos ver de fora e imaginá-los felizes, até compreendê-los, supondo-os iguais a ninfas e heróis, mas com outros rostos. Ele tem, contudo, o coração dos verdadeiros amantes – o que os leva a saltar limites –, e deseja não quem tem próximo, mas quem nunca pode alcançar: a ninfa que nunca o aceitará. Pelo contraste, surge disparatada a sua intenção, pois não nota a distância de opostos entre os desenhos da nereide e os rabiscos do seu rosto: dono de um só olho, conhece uma verdade apenas, a da beleza de Galateia, faltando-lhe o outro olho para se descobrir feio aos olhos dela. Não imaginando quão horrendo lhe aparece, supõe que ela o pode pensar bonito, talvez porque o amor é cego e não o deixa ver-se a si mesmo, ou porventura porque nos seus devaneios mora algo puro e inocente: a crença de que quem ama é bonito só por amar.
Galateia tem aversão imensa ao ciclope e despreza-o, mas que superioridade é a sua? Será ela bonita para todos os amantes – homens e monstros –, mas só o ciclope, dono de um único olho, vê mais além, porque só ele consegue ver como pode ser bonito o que é diferente. É ele cego quando deixa escapar o ser tão feio, mas igualmente cega é ela quando não vê como pode ele para outros olhos ser bonito. Nenhum rosto merece ser condenado, nem amor nenhum desprezado, porque para crescermos em desprezo e superioridade, é preciso diminuirmos, encolhermo-nos para cabermos nos apertados limites do pouco que conhecemos. O ciclope é inconsciente, mas de universo vasto, porque salta fronteiras, e amando sem conhecer diferenças, abre-se a tudo que ama. Galateia tem toda a noção e sentido do ridículo, mas é tacanha de sensibilidade e mesquinha de sentimentos, porque pensa só haver miséria para lá do seu jardim.
Verdadeiramente tudo vê o ciclope, ao ponto de podermos desconfiar se é mesmo amor que o move, pois na ninfa não descobre apenas a beleza dos atributos, senão igualmente os defeitos das inclinações: descreve-a casmurra, falsa, inconstante, soberba, espinhosa ou desapiedada. Porque em tudo isso fala a zanga de não a ter, mas também porque de tudo isso ela tem um pouco. Vê ainda a preferência por ela votada a Ácis, e dá largas a toda a violência bárbara do seu ciúme. Mas o canto pelo qual se declara amorosamente tem toda a riqueza possível de encontrar em qualquer coração humano: move-se pela adoração apalermada e embevecida dos normais apaixonados, chama cheio do desejo possessivo que faz os monstros, ameaça com a brutalidade dos gigantes. Mas na inocência da sua inconsciência tão ciente, na ousadia ridícula de falar à ninfa, na coragem desmesurada de mostrar o rosto aos olhos altivos mora também a fragilidade emocional dos donos de coração.
Polifemo tem um coração, algo que, provavelmente, Galateia não possui, pois só deseja à superfície, dona de apetites, caprichos, prazeres e incómodos, mais que de sentimentos e empatia. É bela a ninfa, e não destrói nada, nem animais nem plantas, não magoa nem sequer pisa, talvez. Mas só porque não está viva, está distante, demasiado etérea para incomodar as ervas sob os pés. Está vivo o ciclope, os seus sentimentos pesam muito, são densos por serem verdadeiros, e não lhe é possível mostrá-los e deixá-los saírem sem deixarem pegadas. Polifemo não pode caminhar sem destruir, porque imperturbado queda o mundo só depois de ninguém passar: somente os fantasmas deixam a natureza intocada. Polifemo é demasiado verdadeiro para ser delicado, e o seu coração enche-o em excesso impossível de conter. Porque é Galateia uma ninfa, criatura de maravilhas e adorada? Porque não tem peso nos gestos, nem gravidade nos actos: sem coração que lhe desequilibre os movimentos, pode passear e amar pelo mundo passando despercebida entre respirações. Não assim o terrível ciclope, monstro nas formas e nas pegadas: o seu coração pesa em demasia para não balançar, e, incapaz de mentir nos gestos como nas palavras, usa-o em tudo o que diz e faz. É esse ente maldito que Galateia não tem e a deixa tão leve, mas que em Polifemo o prende tanto à terra, que nos revela o segredo mais humano por detrás do horror que nos inspira: é o seu coração que o faz um monstro.
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