E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Toque proibido

  No livro Of mice and men, de John Steinbeck, dois trabalhadores migrantes, George e Lennie, são o inverso um do outro: George é pequeno, definido, esperto e decidido; Lennie é grande, muito forte, débil mental, com fraca vontade e autonomia. Amigos, vão juntos para todo o lado, sendo George o guardião de Lennie e a cabeça do par. Lennie, porém, com noção deficiente da própria força, frequentemente, acaba por lesar ou mesmo destruir sem intenção as coisas suaves de que gosta e que quer acariciar, sejam coelhos, cãezinhos ou até pessoas.

  Na figura de Lennie, o impacto advém de actuar uma força tão inocente quanto danosa. A tendência de Lennie é a da destruição, pois ele lesa ou mata tudo aquilo em que toca, sejam os ratos que vai apanhando, o cãozinho que lhe é oferecido, a mão do seu agressor Curley, ou, por fim, a mulher deste. Exceptuando em relação a Curley, no entanto, em todos esses casos, Lennie não queria agredir ou magoar, mas sim acarinhar, dar festas; e mesmo naquele caso excepcional, o intuito foi mais defensivo que ofensivo.
  Segundo critérios emocionais ou de consciência, Lennie é inocente: como George vai repetindo desalentado, ele age sem maldade, sem má intenção. Nunca quer causar dano a ninguém, nem a quem lhe faz mal – só ameaça zangar-se quando crê que George pode estar em perigo. Ainda assim, ninguém causa tantos estragos como ele: o seu desenho é o do desequilíbrio. Também George é desequilibrado nesta óptica, e, neste sentido, Steinbeck tem razão quando os explica por inversão, pois a nível mental e físico, estão ambos em extremos opostos. Se pensarmos, todavia, puramente no equilíbrio em si, o oposto de ambos é Slim, a personagem na qual encontramos a harmonia mais conseguida entre as possibilidades físicas e as capacidades intelectuais e relacionais. Todos os outros intervenientes sofrem de formas de desequilíbrio diversas – no caso de Lennie, ele extrema-se e assume contornos grotescos.
  Neste desequilíbrio acentuado assenta a ironia perversa do destino de Lennie: costumamos pensar na inocência como algo frágil e carente de protecção – mas aqui, em certa medida, encontramos o cenário inverso: é o mundo em redor – ou as criaturas vivas nas redondezas – que precisam, afinal, de protecção do gigante inocente. Pois se este monstro sem culpa é deixado à solta, é bem possível que destrua tudo.
  Lennie vai ansiando por coelhos, gosta da ideia de os acariciar, por lhe agradar sentir nas mãos coisas ou criaturas suaves, delicadas. Estranho encontro o que ele deseja, esse entre a inocência destruidora dele e a frágil dos coelhos. Parece buscar no mundo a mesma gracilidade que traz no coração. E iguais são os corações do colosso e dos pequenos bichos, morando em ambos a mesma inocência. O mesmo coração, mas diferentes tamanhos: uns são fracos, o outro é um portento de força; uns são inofensivos, o outro é tão perigoso quanto simples. Mas embora Lennie seja realmente uma força arrasadora, tal não nega a sua delicadeza interior: como se trouxesse no coração o corpo usado pelos coelhos, ele é realmente frágil por dentro, sendo fácil magoá-lo ou amedrontá-lo. Incapaz então de distinguir os planos interno e externo, Lennie procura um encontro impossível: o corpo frágil das criaturas doces é porta aberta para o seu coração simples; no caso dele, porém, em volta de um coração assim há um corpo demasiado sólido e pesado para que algum toque inócuo lhe seja possível.
  O toque deste homem grande parece divino. Tal como os deuses da mitologia antiga não podiam visitar o mundo humano sem assumirem formas terrenas – animais ou humanas –, e tal como nas religiões monoteístas a divindade não pode ser vista, ou sequer vislumbrada, ao menos directamente, também Lennie parece não poder tocar as criaturas frágeis que tanto busca sem as destruir inevitavelmente. Qualquer festa sua é fulminante, qualquer carícia é relâmpago. Embora humano em aparência, ele surge nas paisagens humanas como titã vindo de outras moradias, usando poder destruidor que não poupa nada neste mundo, impreparado como está para ver irromper energia tão arrasadora. Energia próxima a esta é a do fogo: só dá vida enquanto contido, dominado, restringido – e para tal, é mister guardar distância. Por muito benéfico possa ser o fogo, o seu toque mantém-se proibido: o contacto faz das coisas cinzas. Mas o fogo não aceita distâncias, quer sempre agarrar o que esteja à disposição para ser abraçado. Do mesmo modo, Lennie, qual fogo inconsciente com sentimentos e coração simples, procura agarrar tudo o que não pode tocar sem destruir. Por isso, é preciso matá-lo, por ser incomportável deixá-lo no mundo podendo a qualquer momento esmagar as coisas com o seu toque divino. Não é ele fogo, então, mas deus, porque não pode ser mantido à distância ou restringido. George, representante da sociedade piedosa, mas ameaçada, dá-lhe a morte, provando, podem alguns dizer, que afinal o gigante não é deus nenhum, pois morre às mãos de um homem. Mas talvez ele se mostre, no fim de contas, um deus por isso mesmo.

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