E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 31 de janeiro de 2021

Sair à rua por um dia

   No livro Notre-Dame de Paris. 1482, de Victor Hugo, celebra-se, em Paris, o Festival dos Tolos, onde concorrem diversos pretendentes ao trono de Papa dos Tolos, Para ganharem, exibem as caretas mais extremadas, as feições mais grotescas, os disfarces mais repulsivos de que são capazes. Apresenta-se, finalmente, Quasimodo, que impressiona todos pelo seu aspecto. O público dá conta de ser aquela a sua aparência de todos os dias e Quasimodo é finalmente eleito por unanimidade.

 

  Corcunda, com um olho escondido pelas deformidades, de proporções incomuns e grotescas, Quasimodo é uma aberração. Pela aparência, surge como vencedor natural do concurso: ninguém mais disforme que ele. Mas que concurso é este?

  O verdadeiro espectáculo aqui é o da humanidade, o da verdade humana, pelo visto só revelada quando exposta em público. A actuação dos concorrentes traduz-se, no fim de contas, na demonstração de todos os traços humanos, tão mais verdadeiros quanto exibidos a um auditório. Esforça-se cada participante por se transformar, acentuando traços, expressões ou imperfeições ao ponto do destroço (“chaque bouche était un cri, chaque œil un éclair, chaque face une grimace, chaque individu une posture”). Com atitude teatral, esforçam-se por representar papéis de aberrações, são pessoas a fazerem de criaturas. Mas deformamo-nos mais quando choramos ou quando rimos, quando nos exaltamos ou nos distraímos de nós mesmos – tudo momentos em que menos consciência temos de como aparecemos as olhos dos demais, e portanto em que menos representamos. Também representamos (porventura mais até) quando nos contemos, quando adoptamos comportamento pacato ou somos moderados nas expressões. Não somos necessariamente falsos quando estamos compostos, mas somos inevitavelmente verdadeiros quando perdemos a compostura. Algo de genuíno da nossa natureza nos leva a querermos parecer bonitos, mas dificilmente mentimos quando não evitamos ser feios. Representando a fealdade, os concorrentes querem negá-la às avessas. Exibem-na como máscara para afirmarem ter um rosto por trás: Quasimodo vive escondido na catedral, com medo da rejeição do seu rosto horrendo, demasiado verdadeiro para o negar sem esconder. Estes concorrentes, inversamente, mostram-se horrendos para provarem não precisar de esconder a fealdade que não é sua. Não percebem que por aí acabam negando a verdade da sua humanidade: porque não podemos ser humanos se não formos criaturas.  

  O espectáculo é tamm do próprio público, que actua trazendo e mesmo criando os rostos exibidos pelos participantes – convocando-os, esperando-os, atiçando o exagero da gracejo, alimentando a exibição pelo consumo dela; bem como reagindo rindo, gozando, ridicularizando, desprezando, rejeitando. Temos por inteiro a humanidade nesta simbiose de demonstração de si para si, e de ridicularização e recusa de si por si – tão humano é o feio como a sua rejeição.

  Neste quadro surge então Quasimodo, ponto culminante desta exibição de humanidade, tão mais verdadeiro quanto grotesco, tão mais desprezível e propenso a rejeição quanto trágico e patético. Igualmente tão mais distante de tudo isto quanto mais capaz de se identificar, pelos sentimentos, com o ambiente, sujeitando-se, por um lado, à rejeição do seu rosto, e, por outro, sendo muito capaz, porque não usa caretas, de sentir essa rejeiçãoEspécie de Cristo pode ele mostrar-se, tomando para si não propriamente os pecados, mas a vergonha dos outros: fá-lo usando uma careta não como máscara, mas como rosto, identificando-se com ela, tornando impossível distanciar-se dela. A impossibilidade de fugir da cruz é a cruz que carrega por detrás da cruz que carregaporque ao contrário dos outros concorrentes, ele é o seu rosto, as caretas não lhe são possíveis.

  Os demais pretendem viver somente no riso tranquilo de quem está seguro por não se identificar com máscaras. Inconscientes são, por não perceberem como se identificam com a máscara do seu riso, a única que lhes dá uma triste e afinal tão grotesca vida. Nada distorce mais um rosto do que a natureza, excepto nós mesmos quando choramos por fragilidade, ou quando rimos com crueldade.

  O público acolhe Quasimodo com entusiasmo antes ainda de perceber que ele não traz máscara de concurso. Dando tino de ser aquela a sua apresentação quotidiana, continuam a diversão e o gozo: as desproporções de Quasimodo dão-lhe força física e são propícias a torná-lo ameaçador, com suas mãos grandes e robustas, fazendo-o colosso por completar (un géant brisé et mal ressoudé). Ninguém, contudo, é tão anão como um gigante inacabado, e ele nunca deixa de ser pequeno o suficiente para merecer a troça de todos. Com efeito, agora o gozo é direccionado pessoalmente para o corcunda, e surge mesmo a aversão mais indignada, a repugnância mais sobranceira: as mulheres não querem ver (mas vêem, claro) e garantem que ele é mau, que é o diabo. Rejeitam, mas precisam de motivos para a rejeição, que não têm problemas em fabricar. Nesta encenação de condenação e ostracismo, afastam-se da possibilidade de se identificarem com o rosto grotesco que lhes é exibido, querem salvar-se de serem tão feiosSó tornando-se inumanos, todavia, se podem salvar, pois perdem humanidade quando condenam o humano que tanta aversão lhes provoca.

  Deixando Quasimodo a viver sozinho no pedestal do ridículo, à maneira da populaça que apontava e gozava os crucificados, querem viver exclusivamente sentados na plateia. Não percebem que quando forem embora, descobrirão que tamsentem e choram como qualquer actor. Estamos condenados a encontrar espelhos, e mais cedo ou mais tarde, algum há-de revelar-nos que também somos feios, como toda a gente.

  Quasimodo, ainda assim, não mostra sofrer por se ver neste papel: calmo, e a dado momento até orgulhoso (Quasimodo s'en laissa revêtir sans sourciller et avec une sorte de docilité orgueilleuse”), parece satisfeito por ser Papa dos Tolos. Certamente ajuda a surdez que não deixa os comentários maldosos chegarem-lhe aos ouvidos. Mas, sobretudo, contenta-o ver-se aceite por um dia, mesmo que o acolhimento traduza a mais vincada rejeição. A sua calma não será porventura sabedoria, mas podia, de todo o modo, revelar, se ele fora disso capaz, a consciência profunda de ser acolhido sem máscara, de aceitar ser verdadeiro sendo feio. Por um dia, Quasimodo pode sair à rua e seguir sendo o que é sem precisar de se esconder. Pode ser verdadeiro e acolhido: os outros terão de representar para o aceitarem – pois serão eles, na plateia, a usarem hoje as máscaras, enquanto ele, no palco, surgirá despido e sorridente. Não precisa de actuar nem de esconder, só de se mostrar despido, e terá cumprido o seu papel. Não podia desperdiçar oportunidade tão única de, sempre trágico, ser feliz.

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