E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Inevitável absurdo

  No conto “Lord Arthur Saville’s crime”, de Oscar Wilde, Arthur Saville é convencido pelo quiromante Septimus R. Podgers de que há um homicídio no seu futuro. Cuidando não ter o direito de casar com a sua noiva enquanto o espectro de tal evento pairar sobre os dois, resolve despachar o assunto antes do casamento, e, após várias tentativas frustradas, acaba por matar o próprio Podgers.

  Saville é um assassino? Não há dúvida de ter sido ele quem empurrou o quiromante para a morte, mas o acto foi verdadeiramente seu, objecto de uma decisão sua?
  Aceitando como verdadeira a palavra de Podgers, Saville está seguro de que vai matar alguém, restando apenas concretizar os dados do crime: a identidade da vítima, o modo, o lugar, a data. Resolve executar o homicídio não por desejo de tirar a vida a alguém em concreto, senão por pretender ultrapassar o assunto tão cedo quanto possível. Podemos duvidar de ser esta resolução verdadeiramente uma decisão, ou de ser ela suficientemente livre para descortinarmos liberdade de decidir de outro modo, e, com base nisso, de podermos responsabilizar este sujeito pela acção.
  Saville não vê alternativa à prática do delito, tomando por assente que as coisas não podem ser de outra maneira. Assim, de certo modo, ele não se vê sequer como decidindo praticar o acto, ao menos não se quisermos atribuir à decisão um poder de comando sobre a realização dos factos. A sua liberdade surge, por isso, ainda mais negada que a de Abraão quando a este foi pedido o sacrifício do filho Isaac (Gen 22). A Bíblia não dá conta de dúvidas, hesitações ou relutâncias de Abraão no cumprimento da anunciada vontade divina, mas se supusermos que a morte do filho lhe dá um desgosto do tamanho do amor verdadeiro que queremos pensar que ele sente por Isaac, faz sentido perguntar pela liberdade que lhe resta neste rito. Ora, por muito devoto seja o patriarca, não deixa de ser livre na sua resolução – essa liberdade, aliás, é pressuposto do comando divino, pois se Abraão prova a sua fé e a sua disponibilidade ao oferecer o filho é precisamente porque podia não tê-lo feito. Na base do cumprimento da vontade divina está a opção de ouvir Deus e de lhe responder sim – a história de Abraão mostra, destarte, que para lá do pedido, na verdadeira fé cabe ainda um decisivo momento de resposta. O verdadeiro crente pode pedir, mas também responde, e responde sim quando podia responder não.
  Não se passam assim as coisas na história de Wilde, pois se para Abraão a desobediência era possível, mas inaceitável, para Saville, a desobediência só é inaceitável por ser impossível. Há mesmo uma certa despersonalização, porquanto nele se esvazia a autonomia, ausentando-se o poder de decisão – na sua visão, as coisas, ao menos no seu rumo essencial, estão já decididas por ele. Torna-se então difícil condená-lo, ou mesmo julgá-lo, ao percebermos que pode não ser uma pessoa, enquanto ser autónomo que decide, o que temos pela frente. O que estamos exactamente a condenar se o condenamos? Não verdadeiramente a sua decisão, porque ele não decidiu; faltou à sua opção a liberdade que reconhecemos nele, mas ele não.
  A condenação que pretendamos impor-lhe pode ainda despersonalizá-lo noutro nível. Ao sentenciá-lo, aferimos uma correspondência entre ele e o modelo de uma pessoa livre, a quem podemos exigir que houvesse procedido de modo diverso. Pressupomos assim que ele podia (e só por isso devia) tê-lo feito – mas então esquecemos, porque escolhemos esquecer, que a explicação para o seu gesto reside justamente na sua certeza de não ter alternativa. Não compreendemos o que ele fez se lhe atribuirmos liberdade, e se lha tiramos, falham-nos as razões para o condenarmos. Se, ainda assim, insistimos em fazê-lo, é talvez por ser a pena para nós um destino tão absurdamente inevitável como para ele foi o seu crime. 

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