E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Direito a sonhar

  No livro Lolita, de Vladimir Nabokov, quando Humbert Humbert, ao fim de anos de desaparecimento de Dolores Haze, a reencontra já adulta, é assaltado pelo desejo que continua a sentir por ela. Apesar dos anos de abuso, ainda quer acreditar na hipótese de um futuro com a jovem, e antes de partir, depois de já ter sido rejeitado, pergunta-lhe se num futuro porventura longínquo ela não poderá ir ter com ele, ao que Lolita responde não.

  Para o leitor, a resposta da moça é óbvia, quase não era preciso dá-la. Foi um inferno a existência com aquele homem, e se não precisasse de lhe pedir ajuda, por sua vontade, nunca o voltaria a ver. O próprio Humbert não está tão longe de perceber isto como pode parecer, mas, ainda, assim, faz a pergunta. Vale a pena indagar o que o leva a fazê-la e, sobretudo, como é capaz de a fazer.
  Que sente este desconsolado pela moça que tão desesperadamente perseguiu meses a fio? Amor é palavra complicada por obrigar a encontrar definição satisfatória para o sentimento, mas aqui o problema situa-se logo em saber a quem dirige ele o seu. Humbert Humbert amou Lolita por inteiro desde o primeiro momento em que a viu, mas nunca conheceu Dolores Haze. O mundo da rapariga foi-lhe desconhecido, dedicado como esteve todo esse tempo à projecção idealizada que nela realizou dos seus desejos e devaneios, e, assim, também a identidade dela se manteve para ele uma irrealidade completa. Agora, porém, que a encontra, já não acha essa menina que prostituiu e de que abusou tanto tempo e tão descaradamente, mas sim a mulher que a vida e o tempo puseram no seu lugar. Segue, todavia, desesperado por ela, e ficamos com a dúvida sobre quem afinal deseja ele, pois nesta mulher já não pode projectar as suas fantasias por meninas e o que restou é uma pessoa que ele nunca chegou a conhecer.
  Mais espantosa é, todavia, a ousadia de imaginar um cenário em que um romance entre os dois poderia florescer, e mesmo de perguntar a Lolita se não está disposta fugir com ele. Para ela, a história deles foi a de se ver forçada a partilhar o mundo com um homem que a desejou e de que não pôde fugir durante muito tempo, por muito sonhasse fazê-lo. Para o observador externo, a relação foi de abuso entre um homem adulto e uma criança que não conhecia melhor, não tinha liberdade para escolher outra coisa, nem discernimento para avaliar a violência do que lhe era imposto. Mas na óptica de Humbert Humbert, o enredo foi o de um patético e trágico amor deixado por concretizar em definitivo. Por muito absurdo pareça o projecto de levar uma Lolita apaixonada dali para fora, nos seus sonhos (mais que nos seus cálculos), vê-o como um bonito romance prometendo eflúvios de beatitude. Dolores Haze nunca aceitaria, nem sequer conceberia a pergunta, de largar a sua vida plana, sem história nem expectativas, para se juntar à criatura que lhe perverteu a infância e esvaziou a inocência. Como ela diz, mais depressa voltaria para o pervertido Quilty, porque, como Humbert interpreta, Quilty partiu-lhe o coração, enquanto ele apenas lhe destruiu a vida ("He broke my heart. You merely broke my life"). Todo o amor que Humbert desesperadamente lhe lançou tornou-o um monstro que ela prefere não mais lembrar.
  Não tem lógica possível ou verosimilhança o projecto de Humbert? Não tem, excepto no lugar particular que guarda no seu coração, o único possível onde pode nascer, o único onde terá solo para ser enterrado, mas também aquele que lhe permite chegar a existir. Nesse ínfimo espaço encafuado no coração do monstro, a história macabra de maus tratos e pedofilia pode ser contada, por muito não o creia a cabeça, como uma bonita história de amor, tornada drama trágico de sentimentos e solidão pelo seu fracasso. Humbert não pode ser absolvido e tem de acabar encarcerado, porque aos monstros é preciso prender as garras. Mas nem por isso cabe negar-lhe a liberdade de se abrigar nessa distante moradia de devaneios absurdos e ilusões desconexas que ele traz no seu tão desvirtuado coração – porque também os monstros têm direito a sonhar.

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