E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 30 de outubro de 2021

Brincadeiras valiosas


  Na animação Karakai Jōsu no Takagi-san (Sōichirō Yamamoto), Takagi e Nishikata são dois colegas de escola na transição da infância para a adolescência. Os episódios consistem em vários segmentos de interacção entre os dois, que passam sempre por apostas e tentativas de deixar mal o outro. Takagi ganha sempre e diverte-se imenso com a frustração e o embaraço de Nishikata.

 

  Pode falar-se de amor entre os dois? Nishikata pensa em Takagi como impiedosa, com requintes de crueldade discreta, e uma adversária quase demasiado difícil de bater. Mas em momentos inesperados ou distraídos, não deixa de reparar nos seus encantos femininos, e reparar é ceder. De Takagi não ouvimos os pensamentos e ela nunca chega a dizer ao rapaz que gosta dele, mas deixa a sugestão várias vezes, tanto implícita como muito explicitamente. Di-lo uma vez directamente, para logo a seguir alegar que mentiu. Com esta e outras atitudes, Takagi provoca Nishikata, e pela provocação tortura-o, pois este tem claros problemas em descobrir-se envolvido em qualquer contacto próximo que traia intimidade. No ar fica sempre a dúvida entre pensarmos que só a move o prazer sádico de o ver ansioso e nervoso pela proximidade, e desanimado pelo embaraço e má figura, por um lado, e que vendo bem, não lhe daria tanto prazer  provocá-lo se não gostasse dele, por outro.

  Takagi gosta de expor Nishikata e ri-se sempre que o deixa embaraçado, mas nunca o expõe perante os outros, só perante ela (exceptuando alguns ralhetes ou chamadas de atenção do professor, inofensivos nesta óptica). Há nisso, talvez, não apenas mera decência, mas um gostar. É verdade que a simples decência ou personalidade boa não exporiam a fragilidade ou nudez do outro, enquanto o mero gozo egoísta não se importaria com a exposição de outrem perante os demais. E podem combinar-se, claro, mas não conseguimos pensar essa combinação sem ao menos vislumbrarmos a sugestão de que ela gosta dele. Takagi adopta uma atitude permanente de procurar aceder à vulnerabilidade de Nishikata, mas não para a tornar assunto público, antes mantendo-a consigo e tornando-a um assunto só deles. Este propósito recebe confirmação explícita nos constantes comentários de Takagi quando chama a atenção para o estarem os dois sozinhos. Servem os comentários, naturalmente, para o embaraçar, mas, além disso, marcam mais claramente esse estarem à parte: notando a separação dos demais, é como ela fizesse questão de erguer uma barreira que os aparta do resto do mundo.

  Esta técnica assume outros efeitos, ou ao menos mais perceptíveis, em ocasiões como a do segmento ai ai gasa. Ai ai gasa é o termo nipónico usado para o abrigar de duas pessoas sob o mesmo guarda-chuva, fenómeno comum no Japão em função de aguaceiros inesperados, ao qual se associam sugestões românticas. É Takagi quem chama a atenção para o encontrarem-se ambos nessa situação, e tenta fazê-lo nomear o fenómeno, tanto para o envergonhar como, suspeitamos, para tornar mais verdadeiro o significado da experiência. Se ela não dissesse nada, talvez as implicações românticas passassem ao lado, ou só fossem notadas por ele mais tarde, em retrospectiva. Uma vez feitas assunto de conversa, tornam-se actuais.

  Se nunca o expõe perante os outros, Takagi ri constantemente de Nishikata e dos seus embaraços. Só se pode ser a um tempo tão gentil e tão impiedosa estando segura da mesma gentileza do outro lado. Takagi sabe que por muito se sinta frustrado e queira vencê-la nas disputas que seguem travando, o rapaz seria absolutamente incapaz de a magoar, física, psíquica ou até simbolicamente – como comprovamos, aliás, pela prontidão dele em perguntar-se se foi longe demais a cada sinal mínimo de perturbação que pensa detectar no rosto dela. Suficientemente relaxada para entregar ao adversário todas as armas com que ele poderia magoá-la, por saber que isso nunca acontecerá, Takagi tem a segurança e a tranquilidade de uma criança que confia no monstro com quem brinca. Ciente disso mesmo e consciente que baste para observar o que se passa e jogar com Nishikata conforme lhe apetece, é ela afinal a adulta e ele a criança.

  Durante uma das apostas, Takagi promete que dará a Nishikata o seu primeiro beijo se ele ganhar. Claro que ele perde, mas não podemos deixar de encontrar nisto, da parte dela, o arrojo intrépido de deitar numa brincadeira algo pretensamente valioso, único até, porque o primeiro beijo não se repete. Ao apostá-lo assim, a rapariga sugere que talvez este não tenha tanta importância: é algo que pode ser jogado, objecto de aposta. Sabemos, naturalmente, que ela só o joga por se passar exactamente o contrário. Se não fora extremamente importante e significativo o que ela oferece, ou se não tivesse ao menos consciência de ser assim visto por ele, o efeito de embaraço pretendido não chegaria a nascer. Ainda assim, ela aposta-o e podemos pensar que está segura de vencer (pois vence sempre), por muito se apresente incerta quanto a isso, mas a verdade é que há sempre a hipótese, por muito inverosímil, de perder e ter de dar o beijo.

  Que é um beijo afinal? Talvez com o tempo e a repetição acabemos por despi-los de significado e ver neles somente a casualidade convencionada da expressão de um afecto tornado mecânico. O primeiro beijo, contudo, não teve oportunidade de perder nada, surge com toda a carga emotiva e simbólica, e estabelece a mais incerta, afastada e representada das uniões, mas, ao mesmo tempo, também a mais sentida, porque mais intensa. Quando Takagi larga no jogo esta experiência, parece querer reduzir-lhe a importância ao ponto de poder incluí-la nas brincadeiras deles. Não obstante, é inescapável a sugestão de orientação contrária: as brincadeiras são tão importantes para ela que valem bem o seu primeiro beijo. Feitas de nadas, competições sem prémios de exibir, disputas que nada provam no mundo real, enchem de significado, ainda assim, as suas vidas, porque lhes trazem sorrisos e dispensam histórias. O primeiro beijo é demasiado importante para se brincar com ele, mas pode brincar-se, porque na brincadeira é que Takagi e Nishikata, ainda crianças, deitam toda a verdade de que são capazes, e porque, no fim de contas, podem bem tanto dar um primeiro beijo como não dar, visto que o mais importante que há entre eles já o têm, e têm-no todos os dias: estão sempre lá para brincarem um com o outro.

sábado, 2 de outubro de 2021

Reunião de ausentes

   No livro The invisible life of Addie LaRue, de V. E. Schwab, a jovem Addie oferece a uma divindade a sua alma em troca de uma vida liberdade sem limites. Ganha a imortalidade, mas a liberdade concretiza-se em ser esquecida por toda a gente mal a perdem de vista. Conhece, séculos mais tarde, Henry, um jovem que, por sofrer demasiado com desencontros emocionais e amorosos, oferece a alma à mesma divindade em troca de ser suficiente para o amor dos outros. Ganha o dom de conseguir ser para todos os outros o que procuram mais desejam, mas queda com apenas um ano de vida. Henry consegue dar a Addie o que ela mais deseja: lembra-se dela mesmo depois de se separarem. Apaixonam-se e juntam-se durante o tempo acordado por Henry com a divindade.

  Addie ganha uma vida imortal deixando de viver. Porque não é uma máquina, não pode bastar-lhe conseguir comer, beber e satisfazer apetites sexuais. O olvido que descobre em todos os olhares mostra-lhe um espelho onde se descobre inexistente. Não é, portanto, senão um fantasma caminhando entre as pessoas vivas – a vida dos fantasmas não passa da descoberta de que não estão vivos. No mais, porém, inverte a posição do fantasma: os espectros ficam na memória de quem os veja, dão matéria para pesadelos vindouros, atemorizam recordações e recusam ir embora. Já Addie não assusta ninguém quando é vista, mas não aterra em memória nenhuma, não é sonhada por quem a encontra, não preenche lembranças, porque passa sem deixar sinais ou marcas: já partiu antes de ter chegado, porque dela nada fica, nem sequer as impressões. O fantasma não tem rosto consistente ou presente para oferecer, mas permanece, como se existisse atrás da imagem. Addie tem para oferecer a sua imagem, sempre fresca e nova, que nunca se gasta, mas só porque ela está condenada a recomeçar, e é como se ela não existisse atrás da imagem.
  Também Henry desaparece, conquanto de outro modo. Vendo nele sempre o que mais desejam ou procuram, os demais projectam nele as suas idealizações, de tal modo que Henry acaba sentindo que ninguém o vê verdadeiramente, nem ninguém o deseja por algo que sinta pertencer-lhe ou defini-lo. Desapareceu dos olhos dos outros, porque os outros só vêem o que já trazem nos olhos. Inversamente a Addie, Henry não perde a atenção dos circundantes; pelo contrário, torna-se o alvo inescapável dos seus percursos. Deixado no ponto de mira de uma multidão que aponta para ele a vista, mas vê tudo menos o que ele tem para mostrar, Henry descobre-se preso numa cela de atenção que o aprisiona fazendo-o invisível para quem só tem olhos para ele.
  Addie e Henry encontram-se e encaixam: Henry lembra-se de Addie e, no fim de contas, permite-lhe viver. Addie vê Henry como ele é e, assim, encontra-o no meio da invisibilidade a que ele parecia condenado. São dois ausentes que, reunindo-se, ganham e oferecem presença, como ganham e oferecem realidade. O seu encontro dura uns meses apenas, e depois voltariam às respectivas ausências – mas não é bem isso que sucede. Addie consegue que a entidade mística liberte Henry, pelo que podemos deduzir que ele volta a existir no meio dos outros. Mas também Addie, a final, ganha a vida que não tinha: Henry escreve um livro com a história dela e permanecem as pinturas que a tomaram por modelo. A presença de Addie inverte-se, tendo desaparecido no imediato e mantendo-se em ideia. Ausente e desaparecida do presente, ganha a posteridade. Já ninguém a conhece, mas todos a reconhecem. Tanto ela como Henry hão-de desaparecer de vez, como tudo desaparece, mas, no fim de contas, gozaram, como todas as pessoas, da única oportunidade disponível para nos sentirmos reais: a de um encontro.