Na animação Karakai Jōsu no Takagi-san (Sōichirō Yamamoto), Takagi e Nishikata são dois colegas de escola na transição da infância para a adolescência. Os episódios consistem em vários segmentos de interacção entre os dois, que passam sempre por apostas e tentativas de deixar mal o outro. Takagi ganha sempre e diverte-se imenso com a frustração e o embaraço de Nishikata.
Pode falar-se de amor entre os dois? Nishikata pensa em Takagi como impiedosa, com requintes de crueldade discreta, e uma adversária quase demasiado difícil de bater. Mas em momentos inesperados ou distraídos, não deixa de reparar nos seus encantos femininos, e reparar é ceder. De Takagi não ouvimos os pensamentos e ela nunca chega a dizer ao rapaz que gosta dele, mas deixa a sugestão várias vezes, tanto implícita como muito explicitamente. Di-lo uma vez directamente, para logo a seguir alegar que mentiu. Com esta e outras atitudes, Takagi provoca Nishikata, e pela provocação tortura-o, pois este tem claros problemas em descobrir-se envolvido em qualquer contacto próximo que traia intimidade. No ar fica sempre a dúvida entre pensarmos que só a move o prazer sádico de o ver ansioso e nervoso pela proximidade, e desanimado pelo embaraço e má figura, por um lado, e que vendo bem, não lhe daria tanto prazer provocá-lo se não gostasse dele, por outro.
Takagi gosta de expor Nishikata e ri-se sempre que o deixa embaraçado, mas nunca o expõe perante os outros, só perante ela (exceptuando alguns ralhetes ou chamadas de atenção do professor, inofensivos nesta óptica). Há nisso, talvez, não apenas mera decência, mas um gostar. É verdade que a simples decência ou personalidade boa não exporiam a fragilidade ou nudez do outro, enquanto o mero gozo egoísta não se importaria com a exposição de outrem perante os demais. E podem combinar-se, claro, mas não conseguimos pensar essa combinação sem ao menos vislumbrarmos a sugestão de que ela gosta dele. Takagi adopta uma atitude permanente de procurar aceder à vulnerabilidade de Nishikata, mas não para a tornar assunto público, antes mantendo-a consigo e tornando-a um assunto só deles. Este propósito recebe confirmação explícita nos constantes comentários de Takagi quando chama a atenção para o estarem os dois sozinhos. Servem os comentários, naturalmente, para o embaraçar, mas, além disso, marcam mais claramente esse estarem à parte: notando a separação dos demais, é como ela fizesse questão de erguer uma barreira que os aparta do resto do mundo.
Esta técnica assume outros efeitos, ou ao menos mais perceptíveis, em ocasiões como a do segmento ai ai gasa. Ai ai gasa é o termo nipónico usado para o abrigar de duas pessoas sob o mesmo guarda-chuva, fenómeno comum no Japão em função de aguaceiros inesperados, ao qual se associam sugestões românticas. É Takagi quem chama a atenção para o encontrarem-se ambos nessa situação, e tenta fazê-lo nomear o fenómeno, tanto para o envergonhar como, suspeitamos, para tornar mais verdadeiro o significado da experiência. Se ela não dissesse nada, talvez as implicações românticas passassem ao lado, ou só fossem notadas por ele mais tarde, em retrospectiva. Uma vez feitas assunto de conversa, tornam-se actuais.
Se nunca o expõe perante os outros, Takagi ri constantemente de Nishikata e dos seus embaraços. Só se pode ser a um tempo tão gentil e tão impiedosa estando segura da mesma gentileza do outro lado. Takagi sabe que por muito se sinta frustrado e queira vencê-la nas disputas que seguem travando, o rapaz seria absolutamente incapaz de a magoar, física, psíquica ou até simbolicamente – como comprovamos, aliás, pela prontidão dele em perguntar-se se foi longe demais a cada sinal mínimo de perturbação que pensa detectar no rosto dela. Suficientemente relaxada para entregar ao adversário todas as armas com que ele poderia magoá-la, por saber que isso nunca acontecerá, Takagi tem a segurança e a tranquilidade de uma criança que confia no monstro com quem brinca. Ciente disso mesmo e consciente que baste para observar o que se passa e jogar com Nishikata conforme lhe apetece, é ela afinal a adulta e ele a criança.
Durante uma das apostas, Takagi promete que dará a Nishikata o seu primeiro beijo se ele ganhar. Claro que ele perde, mas não podemos deixar de encontrar nisto, da parte dela, o arrojo intrépido de deitar numa brincadeira algo pretensamente valioso, único até, porque o primeiro beijo não se repete. Ao apostá-lo assim, a rapariga sugere que talvez este não tenha tanta importância: é algo que pode ser jogado, objecto de aposta. Sabemos, naturalmente, que ela só o joga por se passar exactamente o contrário. Se não fora extremamente importante e significativo o que ela oferece, ou se não tivesse ao menos consciência de ser assim visto por ele, o efeito de embaraço pretendido não chegaria a nascer. Ainda assim, ela aposta-o e podemos pensar que está segura de vencer (pois vence sempre), por muito se apresente incerta quanto a isso, mas a verdade é que há sempre a hipótese, por muito inverosímil, de perder e ter de dar o beijo.
Que é um beijo afinal? Talvez com o tempo e a repetição acabemos por despi-los de significado e ver neles somente a casualidade convencionada da expressão de um afecto tornado mecânico. O primeiro beijo, contudo, não teve oportunidade de perder nada, surge com toda a carga emotiva e simbólica, e estabelece a mais incerta, afastada e representada das uniões, mas, ao mesmo tempo, também a mais sentida, porque mais intensa. Quando Takagi larga no jogo esta experiência, parece querer reduzir-lhe a importância ao ponto de poder incluí-la nas brincadeiras deles. Não obstante, é inescapável a sugestão de orientação contrária: as brincadeiras são tão importantes para ela que valem bem o seu primeiro beijo. Feitas de nadas, competições sem prémios de exibir, disputas que nada provam no mundo real, enchem de significado, ainda assim, as suas vidas, porque lhes trazem sorrisos e dispensam histórias. O primeiro beijo é demasiado importante para se brincar com ele, mas pode brincar-se, porque na brincadeira é que Takagi e Nishikata, ainda crianças, deitam toda a verdade de que são capazes, e porque, no fim de contas, podem bem tanto dar um primeiro beijo como não dar, visto que o mais importante que há entre eles já o têm, e têm-no todos os dias: estão sempre lá para brincarem um com o outro.
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