E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 2 de outubro de 2021

Reunião de ausentes

   No livro The invisible life of Addie LaRue, de V. E. Schwab, a jovem Addie oferece a uma divindade a sua alma em troca de uma vida liberdade sem limites. Ganha a imortalidade, mas a liberdade concretiza-se em ser esquecida por toda a gente mal a perdem de vista. Conhece, séculos mais tarde, Henry, um jovem que, por sofrer demasiado com desencontros emocionais e amorosos, oferece a alma à mesma divindade em troca de ser suficiente para o amor dos outros. Ganha o dom de conseguir ser para todos os outros o que procuram mais desejam, mas queda com apenas um ano de vida. Henry consegue dar a Addie o que ela mais deseja: lembra-se dela mesmo depois de se separarem. Apaixonam-se e juntam-se durante o tempo acordado por Henry com a divindade.

  Addie ganha uma vida imortal deixando de viver. Porque não é uma máquina, não pode bastar-lhe conseguir comer, beber e satisfazer apetites sexuais. O olvido que descobre em todos os olhares mostra-lhe um espelho onde se descobre inexistente. Não é, portanto, senão um fantasma caminhando entre as pessoas vivas – a vida dos fantasmas não passa da descoberta de que não estão vivos. No mais, porém, inverte a posição do fantasma: os espectros ficam na memória de quem os veja, dão matéria para pesadelos vindouros, atemorizam recordações e recusam ir embora. Já Addie não assusta ninguém quando é vista, mas não aterra em memória nenhuma, não é sonhada por quem a encontra, não preenche lembranças, porque passa sem deixar sinais ou marcas: já partiu antes de ter chegado, porque dela nada fica, nem sequer as impressões. O fantasma não tem rosto consistente ou presente para oferecer, mas permanece, como se existisse atrás da imagem. Addie tem para oferecer a sua imagem, sempre fresca e nova, que nunca se gasta, mas só porque ela está condenada a recomeçar, e é como se ela não existisse atrás da imagem.
  Também Henry desaparece, conquanto de outro modo. Vendo nele sempre o que mais desejam ou procuram, os demais projectam nele as suas idealizações, de tal modo que Henry acaba sentindo que ninguém o vê verdadeiramente, nem ninguém o deseja por algo que sinta pertencer-lhe ou defini-lo. Desapareceu dos olhos dos outros, porque os outros só vêem o que já trazem nos olhos. Inversamente a Addie, Henry não perde a atenção dos circundantes; pelo contrário, torna-se o alvo inescapável dos seus percursos. Deixado no ponto de mira de uma multidão que aponta para ele a vista, mas vê tudo menos o que ele tem para mostrar, Henry descobre-se preso numa cela de atenção que o aprisiona fazendo-o invisível para quem só tem olhos para ele.
  Addie e Henry encontram-se e encaixam: Henry lembra-se de Addie e, no fim de contas, permite-lhe viver. Addie vê Henry como ele é e, assim, encontra-o no meio da invisibilidade a que ele parecia condenado. São dois ausentes que, reunindo-se, ganham e oferecem presença, como ganham e oferecem realidade. O seu encontro dura uns meses apenas, e depois voltariam às respectivas ausências – mas não é bem isso que sucede. Addie consegue que a entidade mística liberte Henry, pelo que podemos deduzir que ele volta a existir no meio dos outros. Mas também Addie, a final, ganha a vida que não tinha: Henry escreve um livro com a história dela e permanecem as pinturas que a tomaram por modelo. A presença de Addie inverte-se, tendo desaparecido no imediato e mantendo-se em ideia. Ausente e desaparecida do presente, ganha a posteridade. Já ninguém a conhece, mas todos a reconhecem. Tanto ela como Henry hão-de desaparecer de vez, como tudo desaparece, mas, no fim de contas, gozaram, como todas as pessoas, da única oportunidade disponível para nos sentirmos reais: a de um encontro.

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