E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 4 de março de 2016

O rei que ninguém é – "The Prince and the Pauper" (Mark Twain)


Frank T. Merrill

  No livro "The Prince and the Pauper" (Mark Twain), no dia da coroação, Edward (o príncipe original) reaparece em plena cerimónia para reclamar o seu lugar e Tom (o pobre original) dá-lhe razão imediatamente. Mas perante o insólito da situação e as roupas que parecem desmenti-lo, o público continua inseguro e é preciso uma prova. É perguntado então a Edward onde está o selo real, pois, supostamente, só o verdadeiro príncipe pode sabê-lo. Edward responde e Lord St. John é enviado para ir procurar o selo. Antes de partir, Lord St. John quer fazer uma vénia ao rei, mas, não sabendo qual dos rapazes é o verdadeiro, acaba por fazer uma vénia ao espaço entre os dois (“The Lord St. John made a deep obeisance — and it was observed that it was a significantly cautious and noncommittal one, it not being delivered at either of the kings but at the neutral ground about half-way between the two — and took his leave.”).

  Quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la a ambos os príncipes, i. e., ao príncipe que cada um deles possivelmente é. Ao mesmo tempo, podemos dizer que não a dirige a nenhum deles, ou seja, ele não a quer dirigir ao possível pobre que ambos também são, cada um a sua vez. Esta indefinição – dirigir a vénia para o meio dos destinatários, pela incerteza quanto ao destinatário correcto – pode assim ser o reflexo de um desejo de dirigir a vénia a ambos, mas condicionalmente, sem um compromisso definitivo; bem como, reversamente, de um propósito de não a dirigir a nenhum deles, com a ressalva da possibilidade, porém, de ainda o fazer uma vez descoberta a verdade.
  Há, todavia, uma outra possibilidade: a de a vénia ser afinal dirigida a um terceiro rei, encontrado ali entre os dois rapazes. Neste momento em que não está decidido qual dos dois é o rei, temos um rapaz que reclama ser o monarca, mas não aparenta sê-lo e por isso não foi ainda reconhecido como tal (e, portanto, não o é ainda verdadeiramente); temos outro rapaz, que, ao invés, parece ser o rei, mas garante que na verdade o rei não é ele, e sim o outro. No espaço entre eles surge então, por assim dizer, o rei que existe em ambos em diferentes momentos: o rei que Tom foi e vai deixar agora de ser; que é igualmente aquele que Edward não foi ainda, mas será no futuro. Não há nada, fisicamente, a ocupar o espaço entre os rapazes, mas isso é apenas a confirmação do modo de (não) ser deste rei: Tom foi-o, mas já não é, Edward vai sê-lo, mas não o é ainda. Um rei que ninguém é e, por isso, não pode ser visto, eis o monarca entre os dois rapazes a quem Lord St. John faz a vénia. Monarca que, de um modo curioso, consegue cumprir às avessas aquele estranho desejo que Bernardo Soares manifesta no seu Livro do Desassossego: "Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas".
  Este rei que ninguém é surge na confrontação entre Tom e Edward. O processo que então tem lugar ajuda-nos a perceber melhor o surgimento do terceiro rei.
  Com base numa leitura de "The story of an hour" (Kate Chopin), podemos perceber que o eu só existe na medida em que é sustentado por um outro. É o estranho que em mim mora que me sustém. Isto pode ser entendido também a partir da história "The Prince and the Pauper".
  Relembremos a cena em que Tom e Edward trocam de roupa pela primeira vez e percebem que são iguais. É muito significativo que eles só se apercebam de que são idênticos quando trocam de lugar. Só vendo-se vestidos com a roupa um do outro conseguem perceber que, se andassem nus, ninguém os distinguiria. E isto vai conduzir-nos ao ponto referido. A troca de roupa é, afinal – mais ainda do que eles próprios desejavam – uma troca de lugares. O que significa uma lição muito simples para os dois rapazes: pondo-me no lugar do outro (e assim tornando-me no outro), eu posso perceber que ele é idêntico a mim. Esta identidade só aparece agora com a troca de lugares, mas ela já existia (escondida) antes disso. O outro já vivia em mim antes de eu me pôr no seu lugar. E é esse outro, que em mim vive, que verdadeiramente me sustém, como Louise ou Narciso tiveram de aprender com a morte, e como é ilustrado também no livro de Mark Twain, em dois outros momentos muito significativos que também não devem passar despercebidos.
  O primeiro desses momentos é aquele em que Tom ajuda Edward a lembrar-se de onde está o selo real. Como Edward tinha problemas em recordar-se, Tom – que claramente sabe onde ele está, mas não o diz, sob pena de ser tomado como o verdadeiro rei – ajuda Edward, recapitulando os acontecimentos do dia em que se conheceram, até Edward finalmente se lembrar, dar a resposta correcta e, enfim, ser reconhecido como rei. Ora, todos tinham antes aceitado que só o verdadeiro rei poderia saber onde estava o selo real (“Where lieth the Great Seal? Answer me this truly, and the riddle is unriddled; for only he that was Prince of Wales can so answer!") e é mostrando que o sabe que Edward prova ser rei. Mas tem de ser óbvio para todos que Tom também sabe onde está o objecto – de facto, ele sabe-o ainda melhor do que Edward, já que é ele quem o ajuda a lembrar-se. E, ainda assim, todos aceitam Edward como rei por o saber. O que só podemos perceber se aceitarmos definitivamente a identidade entre os dois rapazes: não há, de facto, contradição em reconhecer Edward como rei quando é Tom quem melhor sabe onde está o selo, atendendo à identidade entre ambos. Nesta cena, Tom é, de facto, o outro que mora em Edward, o estranho que o sustém. E muito claramente mostra isso quando, por um lado, recusa a hipótese de se tornar definitivamente rei (poderia ter dito ele mesmo onde estava o selo, mas não chega a fazê-lo), visto que assim tomaria definitivamente o lugar de Edward e deixaria de ser um outro para este; mantém-se, deste modo, um estranho. Por outro lado, ajuda Edward a lembrar-se, quando até o próprio Edward se preparava já para desistir (e, assim, é pela sua ajuda que Edward se mantém rei), mostrando-se um estranho que sustém o rei.
  Esta posição de Tom como o estranho que sustém Edward é sugerida ainda noutro momento por um pormenor, a um tempo mais subtil e a outro mais directo. Quando Edward veste o manto real que Tom lhe devolve, veste-o por cima das roupas de pobre que pertencem a Tom. Seria difícil uma sugestão mais evidente de como o pobre (Tom) é o estranho que mora em Edward (escondido sob a aparência do manto real – “the sumptuous robe of state had been removed from Tom’s shoulders to the king’s, whose rags were effectually hidden from sight under it.”) e o sustém.
  Quem é afinal o terceiro rei a quem Lord St. John dirige a sua vénia? Começa por ser, precisamente, um rei, e, da perspectiva de Tom, é o estranho que o sustenta. Com efeito, para Edward o estranho é Tom, o pobre. Mas para Tom o estranho é Edward, o rei. E também este estranho mora em Tom e segura-o, mantém-no e permite-lhe ser Tom. E isto confirma-se pelo que nos é relatado no princípio do livro: nas suas brincadeiras, Tom fazia o papel de monarca e todos notavam mesmo quão bem ele desempenhava o papel. É esta máscara que Tom punha que, como todas as verdadeiras máscaras, mostram mais do que escondem: mostram, precisamente, o estranho que mora em nós.
  Como já podemos perceber, no entanto, na figura do rei (do rei enquanto tal, não Edward ou Tom em concreto) mora a figura de um estranho que segura aquela: e esta figura só pode ser a de um pobre. Por isso, quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la tanto ao rei como ao estranho que no rei mora. E uma vénia merecida – porque sem o pobre que o segura, rei nenhum encontraria trono.

  

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