Frank T. Merrill
No livro "The Prince and the Pauper" (Mark Twain), no dia da coroação, Edward (o príncipe original) reaparece em plena cerimónia para reclamar o seu lugar e Tom (o pobre original) dá-lhe razão imediatamente. Mas perante o insólito da situação e as roupas que parecem desmenti-lo, o público continua inseguro e é preciso uma prova. É perguntado então a Edward onde está o selo real, pois, supostamente, só o verdadeiro príncipe pode sabê-lo. Edward responde e Lord St. John é enviado para ir procurar o selo. Antes de partir, Lord St. John quer fazer uma vénia ao rei, mas, não sabendo qual dos rapazes é o verdadeiro, acaba por fazer uma vénia ao espaço entre os dois (“The Lord St. John made a deep obeisance — and it was observed that it was a significantly cautious and noncommittal one, it not being delivered at either of the kings but at the neutral ground about half-way between the two — and took his leave.”).
Quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la a ambos os príncipes, i. e., ao príncipe que cada um deles possivelmente é. Ao mesmo tempo, podemos dizer que não a dirige a nenhum deles, ou seja, ele não a quer dirigir ao possível pobre que ambos também são, cada um a sua vez. Esta indefinição – dirigir a vénia para o meio dos destinatários, pela incerteza quanto ao destinatário correcto – pode assim ser o reflexo de um desejo de dirigir a vénia a ambos, mas condicionalmente, sem um compromisso definitivo; bem como, reversamente, de um propósito de não a dirigir a nenhum deles, com a ressalva da possibilidade, porém, de ainda o fazer uma vez descoberta a verdade.
Há, todavia, uma outra possibilidade: a de a vénia ser afinal dirigida a um terceiro rei, encontrado ali entre os dois rapazes. Neste momento em que não está decidido qual dos dois é o rei, temos um rapaz que reclama ser o monarca, mas não aparenta sê-lo e por isso não foi ainda reconhecido como tal (e, portanto, não o é ainda verdadeiramente); temos outro rapaz, que, ao invés, parece ser o rei, mas garante que na verdade o rei não é ele, e sim o outro. No espaço entre eles surge então, por assim dizer, o rei que existe em ambos em diferentes momentos: o rei que Tom foi e vai deixar agora de ser; que é igualmente aquele que Edward não foi ainda, mas será no futuro. Não há nada, fisicamente, a ocupar o espaço entre os rapazes, mas isso é apenas a confirmação do modo de (não) ser deste rei: Tom foi-o, mas já não é, Edward vai sê-lo, mas não o é ainda. Um rei que ninguém é e, por isso, não pode ser visto, eis o monarca entre os dois rapazes a quem Lord St. John faz a vénia. Monarca que, de um modo curioso, consegue cumprir às avessas aquele estranho desejo que Bernardo Soares manifesta no seu Livro do Desassossego: "Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas".
Este rei que ninguém é surge na confrontação entre Tom e Edward. O processo que então tem lugar ajuda-nos a perceber melhor o surgimento do terceiro rei.
Com base numa leitura de "The story of an hour" (Kate Chopin), podemos perceber que o eu só existe na medida em que é sustentado por um outro. É o estranho que em mim mora que me sustém. Isto pode ser entendido também a partir da história "The Prince and the Pauper".
Relembremos a cena em que Tom e Edward trocam de roupa pela primeira vez e percebem que são iguais. É muito significativo que eles só se apercebam de que são idênticos quando trocam de lugar. Só vendo-se vestidos com a roupa um do outro conseguem perceber que, se andassem nus, ninguém os distinguiria. E isto vai conduzir-nos ao ponto referido. A troca de roupa é, afinal – mais ainda do que eles próprios desejavam – uma troca de lugares. O que significa uma lição muito simples para os dois rapazes: pondo-me no lugar do outro (e assim tornando-me no outro), eu posso perceber que ele é idêntico a mim. Esta identidade só aparece agora com a troca de lugares, mas ela já existia (escondida) antes disso. O outro já vivia em mim antes de eu me pôr no seu lugar. E é esse outro, que em mim vive, que verdadeiramente me sustém, como Louise ou Narciso tiveram de aprender com a morte, e como é ilustrado também no livro de Mark Twain, em dois outros momentos muito significativos que também não devem passar despercebidos.
O primeiro desses momentos é aquele em que Tom ajuda Edward a lembrar-se de onde está o selo real. Como Edward tinha problemas em recordar-se, Tom – que claramente sabe onde ele está, mas não o diz, sob pena de ser tomado como o verdadeiro rei – ajuda Edward, recapitulando os acontecimentos do dia em que se conheceram, até Edward finalmente se lembrar, dar a resposta correcta e, enfim, ser reconhecido como rei. Ora, todos tinham antes aceitado que só o verdadeiro rei poderia saber onde estava o selo real (“Where lieth the Great Seal? Answer me this truly, and the riddle is unriddled; for only he that was Prince of Wales can so answer!") e é mostrando que o sabe que Edward prova ser rei. Mas tem de ser óbvio para todos que Tom também sabe onde está o objecto – de facto, ele sabe-o ainda melhor do que Edward, já que é ele quem o ajuda a lembrar-se. E, ainda assim, todos aceitam Edward como rei por o saber. O que só podemos perceber se aceitarmos definitivamente a identidade entre os dois rapazes: não há, de facto, contradição em reconhecer Edward como rei quando é Tom quem melhor sabe onde está o selo, atendendo à identidade entre ambos. Nesta cena, Tom é, de facto, o outro que mora em Edward, o estranho que o sustém. E muito claramente mostra isso quando, por um lado, recusa a hipótese de se tornar definitivamente rei (poderia ter dito ele mesmo onde estava o selo, mas não chega a fazê-lo), visto que assim tomaria definitivamente o lugar de Edward e deixaria de ser um outro para este; mantém-se, deste modo, um estranho. Por outro lado, ajuda Edward a lembrar-se, quando até o próprio Edward se preparava já para desistir (e, assim, é pela sua ajuda que Edward se mantém rei), mostrando-se um estranho que sustém o rei.
Esta posição de Tom como o estranho que sustém Edward é sugerida ainda noutro momento por um pormenor, a um tempo mais subtil e a outro mais directo. Quando Edward veste o manto real que Tom lhe devolve, veste-o por cima das roupas de pobre que pertencem a Tom. Seria difícil uma sugestão mais evidente de como o pobre (Tom) é o estranho que mora em Edward (escondido sob a aparência do manto real – “the sumptuous robe of state had been removed from Tom’s shoulders to the king’s, whose rags were effectually hidden from sight under it.”) e o sustém.
Quem é afinal o terceiro rei a quem Lord St. John dirige a sua vénia? Começa por ser, precisamente, um rei, e, da perspectiva de Tom, é o estranho que o sustenta. Com efeito, para Edward o estranho é Tom, o pobre. Mas para Tom o estranho é Edward, o rei. E também este estranho mora em Tom e segura-o, mantém-no e permite-lhe ser Tom. E isto confirma-se pelo que nos é relatado no princípio do livro: nas suas brincadeiras, Tom fazia o papel de monarca e todos notavam mesmo quão bem ele desempenhava o papel. É esta máscara que Tom punha que, como todas as verdadeiras máscaras, mostram mais do que escondem: mostram, precisamente, o estranho que mora em nós.
Como já podemos perceber, no entanto, na figura do rei (do rei enquanto tal, não Edward ou Tom em concreto) mora a figura de um estranho que segura aquela: e esta figura só pode ser a de um pobre. Por isso, quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la tanto ao rei como ao estranho que no rei mora. E uma vénia merecida – porque sem o pobre que o segura, rei nenhum encontraria trono.
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