E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 30 de março de 2016

Atrás da máscara a escuridão – Joker e Gwynplaine



  Joker, um dos mais conhecidos inimigos do super-herói da DC Comics Batman, tem um sorriso inscrito no rosto, um sorriso gravado, terrível, que nunca desaparece. Bob Kane e Bill Finger, criadores da figura (a intervenção de Jerry Robinson é mais discutida), reconheceram terem-se inspirado em Gwynplaine, personagem de L’homme qui rit (Victor Hugo), interpretada por Conrad Veidt no filme The Man who Laughs (Paul Leni), que está sujeita à mesma condição. As versões sobre a origem do sorriso do Joker variam, mas no filme Batman (Tim Burton), esse sorriso é-lhe imposto, não é escolha sua, tal como sucede com Gwynplaine.
  Analisando aquele filme (no livro Movie Love – Complete Reviews), no entanto, Pauline Kael distingue os dois sorrisos. Embora Jack Napier – o Joker de Jack Nicholson no filme de Tim Burton – seja uma criatura malvada e Gwynplaine uma pessoa triste, mas bondosa – ou talvez precisamente por isso –, Kael vê no sorriso de Gwynplaine algo de muito mais terrível: "the grin carved into the Joker's face doesn't have the horror of the one on Conrad Veidt's face in the 1927 The Man Who Laughs (...). Veidt played a man who never forgot his mutilation. Nicholson's Jack Napier is too garish to suffer from having been turned into a clown; the mutilation doesn't cripple him, it fulfills him. (...) The Joker (...) isn’t human: he's all entertainer, a glinting-eyed cartoon”.
  Aqui fica sugerido, todavia, o motivo do verdadeiro terror que o Joker de Jack Nicholson inspira: ele abraça o seu sorriso, aceita-o, torna-se esse sorriso, identifica-se com ele. É por isso que ele, de facto, não é humano. Verdadeiramente humano é apenas Gwynplaine – é com este que nos podemos identificar, porque Gwynplaine tem horror ao seu sorriso; não só está longe de se identificar com ele, como o rejeita.
  A perturbação que nos inspira Gwynplaine assenta na possibilidade de nos identificarmos com ele, de nos vermos no seu lugar – ou, mais concretamente, de nos identificarmos com o seu não-lugar, com a repulsa que ele sente pelo seu sorriso. É uma identificação que corre nos dois sentidos, tal como todas as verdadeiras identificações: é apenas na medida em que nos repugna o seu sorriso que conseguimos identificar-nos com a repugnância que ele próprio sente. Ou seja, a possibilidade de nos identificarmos com o outro (Gwynplaine) pressupõe a hipótese prévia de ele poder ser identificado connosco. E esta experiência de identificação, de pormos os sapatos do outro (ou o seu sorriso) perturba-nos inevitavelmente, do mesmo modo que o perturba a ele. Tal como o próprio Gwynplaine só pode ficar verdadeiramente perturbado através de um processo de identificação similar: é só na medida em que se coloca no nosso lugar (despindo o seu inalienável sorriso para se tornar um outro para si mesmo, vendo-se a si mesmo como um outro o vê) que ele pode sentir o horror da sua imagem; só aí pode experienciar a perturbação que nós mesmos vivemos perante o seu rosto e sentir, finalmente, horror de si mesmo.
  O terror do espectador perante o sorriso do Joker procede no sentido inverso. Como Kael sugere, ele não rejeita o seu sorriso – bem pelo contrário, o sorriso “preenche-o”. Jack Napier identifica-se com ele. Aceita-o como seu, como aquilo que ele é. E é com esta identificação que não nos podemos identificar, porque ela é tudo menos humana. Verdadeiramente humana é antes a experiência da não identificação connosco mesmos: mesmo quando nos aceitamos como somos, nunca há coincidência total entre nós e nós próprios – daí que Sartre (L’être et le néant) tenha afirmado que o ser-para-si é aquilo que não é e não é aquilo que é. O drama de Gwynplaine é precisamente o de se ver obrigado a usar um rosto que rejeita – com o qual, portanto, não se quer identificar. É com essa alienação que podemos empatizar, pois ela ecoa a alienação mais primária que começa por ter lugar dentro de nós. Ora, perante o Joker de Nicholson, esta experiência de identificação não é possível, visto que o seu pressuposto – a alienação por parte do Joker em relação ao seu sorriso – não ocorre. Ao invés, o Joker aceita o seu sorriso, identifica-se plenamente com ele.
  Lembremos a cena em que Jack Napier se torna definitivamente o Joker: ele começa por aparecer visivelmente nervoso, ansioso, irritado. Pede um espelho, olha a sua imagem e, então sim, é o Joker: o nervosismo desapareceu, agora apenas ri diabolicamente enquanto parte o espelho e vai embora. É muito significativo o modo como ocorre esta transformação: é ao espelho que Jack Napier vai buscar o Joker em que se torna. Ao invés de no espelho surgir o reflexo da identidade que colocamos diante dele, é no reflexo que Jack vai recolher a sua identidade. E isto percebe-se facilmente: é que a imagem, a máscara que usamos perante os outros, é-nos mostrada no espelho. E essa máscara é aquela com que nos cobrimos perante os olhos dos outros. O espelho veste-nos a máscara. O Joker, porém, identifica-se com o seu sorriso, com a máscara que traz vestida. O que significa que não há ninguém por baixo da máscara. Por outras palavras, de certo modo, se Jack nos surge de costas (na cena referida), sem que lhe consigamos ver o rosto, e se é vendo-se ao espelho que a transformação se consuma, é porque não existe ninguém deste lado do espelho. Há apenas a máscara, i. e., a imagem reflectida.
  Kael tem razão quando chama (ainda que em tom redutor) mero cartoon a este Joker: é que ele, afinal, ao aceitar deste modo o seu rosto, acaba por se identificar com a sua personagem, por se tornar um ser-em-si, ou algo parecido. Deixa, assim, de ser humano. Esta identificação do Joker com o seu sorriso torna-se, deste modo, algo de aterrador, na medida em que ficamos perante um outro impossível, um outro que encontramos num lugar que nunca poderemos ocupar.
  Isto é bem exemplificado quando pensamos que o desconforto na presença deste Joker tem muito daquela insegurança que nos assalta quando alguém se ri olhando para nós sem que consigamos perceber o motivo. Por não percebermos a piada e suspeitarmos que ela se refere a nós, queremos imediatamente saber o que há em nós de errado que faz rir o outro. Basta lembrar um dos momentos finais do filme, em que o Joker já está morto, mas mantém o sorriso e continuamos a ouvir a sua gargalhada. Quando já tudo terminou, o Joker continua a rir-se e ainda não percebemos do quê. Este desconforto explica-se se nos lembrarmos de que, quando nos descobrimos como objectos do olhar do outro, damo-nos conta de uma dimensão em nós que não dominamos: o nosso ser-para-outrem. Queremos imediatamente “recuperar” este nosso ser, trazê-lo para o nosso domínio (o que, em rigor, será sempre impossível). Mas essa recuperação, a ser atingida alguma vez, só poderia sê-lo por meio de identificação com o outro que nos vê – só, portanto, se nos conseguíssemos ver a nós mesmos com os olhos do outro. Todavia, enquanto não descobrirmos o motivo que, provindo de nós, provoca no outro o riso, a impossibilidade dessa identificação fica nua, impossível de disfarçar. É precisamente através desta impossibilidade de identificação que funciona o terror que este Joker instiga.


  Com a cara branca, os lábios vermelhos e o cabelo verde, a figura do Joker aproxima-se da do palhaço. Referindo-se aos palhaços, Kael diz que “they’re like kids made hideous and laughed at”. Gwynplaine é isso mesmo: foi tornado horrível para que as pessoas rissem dele. A ironia do seu caso, aliás, é grotesca: o sorriso que usa é, afinal, o dos outros. O sorriso que traz no rosto pertence a todos os outros que o olham, não a ele.
  A expressão de Kael, conjugada com o que desenvolvemos antes, sugere uma ideia interessante: o medo do palhaço pode explicar-se pela nossa identificação com ele. É precisamente na medida em que nos podemos pôr no lugar do palhaço – ou seja, é na medida em que, ao olhar aquele rosto, nos vemos a nós mesmos tornados horrendos e gozados pelos outros – que o nosso medo do palhaço surge. No fundo, nesta hipótese, o medo do palhaço nasce do medo de sermos o palhaço. Este medo só funciona porque olhamos o palhaço com os olhos do outro: nós somos o outro quando o olhamos e o medo surge quando a hipótese de nos identificarmos com ele aparece.
  Gwynplaine não pode rir-se do palhaço. Ele rejeita a identificação com o seu sorriso, mas, ao mesmo tempo, não pode nunca verdadeiramente libertar-se dele. A um tempo, ele identifica-se com o seu sorriso (porque este é o seu rosto); a outro, ele não se identifica (porque o rejeita, porque aquele é afinal o sorriso dos outros e nunca o seu). Na medida em que está preso à sua máscara e, desse modo, a máscara é o seu rosto, Gwynplaine nunca pode olhá-la verdadeiramente da perspectiva do outro que põe a máscara ao sujeito. Por isso, o título do livro de Victor Hugo (e do filme de Paul Leni) aparece tão ironicamente trágico: na verdade, Gwynplaine nunca pode ser aquele que ri. Nesta relação entre o palhaço e o espectador, o homem que não consegue deixar de sorrir conhece afinal apenas o lado do medo, nunca o do riso.
  O Joker de Nicholson, ao invés, identifica-se com o seu sorriso e deleita-se com isso: ele é o outro lado do palhaço. Se Gwynplaine é o palhaço trágico, o Joker é o palhaço terrível. Perante o Joker, o medo de nos identificarmos com o seu rosto é esgotante, não deixando qualquer espaço para o riso. O deleite, neste caso, fica todo do lado do palhaço: só o Joker pode verdadeiramente rir-se de si mesmo, e, por isso, só ele consegue rir-se de nós (de facto, não pode deixar de o fazer); nunca conseguimos ser nós a rir dele. Não há talvez nada mais perturbador do que o encontro com alguém que se identifica voluntariamente com a sua máscara – porque é atrás da máscara deste alguém que mora a escuridão. No fim de contas, só o Joker não precisa do sorriso dos outros: o sorriso que usa é verdadeiramente seu.

sexta-feira, 25 de março de 2016

O presente eterno – "The Fly" (Katherine Mansfield), "Her First Ball" (Katherine Mansfield) e "The Story of an Hour" (Kate Chopin)

  Como explica Byung-Chul Han (Duft der Zeit: Ein philosophischer Essay zur Kunst des Verweilens), a aceleração geral no ritmo de vida das pessoas, hoje tão notória, não é tanto um processo primário que importa consequências no mundo da vida, mas antes um efeito, um sintoma daquilo a que ele chama a atomização do tempo.
  Na falta de qualquer gravitação que reja o tempo, nada aparece para o guiar, desaparecem os diques que o poderiam deter e sustentar. Sem ritmo, o tempo passa a fluir sem rumo e sem paragens – enfim, sem sentido. Neste ambiente, não pode surgir qualquer tensão temporal que confira rumo ao tempo e o carregue de sentido. O tempo fica des-orientado e atomizado, fragmentado.
  Ainda seguindo Byung-Chul Han, num tempo assim atomizado e fragmentado, na falta de um sentido orientador, "todos os momentos são iguais entre si. Nada há que distinga um momento do outro" (In einer atomisierten Zeit gleichen die Zeitpunkte einander. Nichts zeichnet einen Zeitpunkt vor den anderen aus). "Morrer a tempo", como propunha Zaratustra (Nietzsche, Also sprach Zarathustra), torna-se impossível: "como há-de morrer a tempo quem nunca viveu a tempo?" (wer nie zur rechten Zeit lebt, wie sollte der je zur rechten Zeit sterben?). Morrer a tempo (no momento certo) é o que acontece apenas quando a morte surge como o natural fim da vida, como o termo que, em vez de pôr fim ao percurso, surge como a conclusão lógica deste. Diferentemente, num tempo atomizado, a morte aparece como um "finar a destempo" (Verenden zur Unzeit). Nesta morte a destempo, a morte é uma violência que, de fora, corta a vida. Aqui, a vida não chegou a ser vivida até ao fim – e não o foi porque não o pôde ser, pela falta de uma qualquer forma de fim que conferisse um sentido ao tempo da vida.


  No conto "The Fly", de Katherine Mansfield, durante uma conversa casual com Woodifield, o protagonista é levado a recordar-se do seu filho, morto na guerra há 6 anos. A perda afectou-o muito na altura e a referência agora feita perturba-o claramente. Ele quer chorar, mas, diferentemente do que antes acontecia, não consegue. Descobre então uma mosca a debater-se no frasco da tinta. Ajuda-a a sair, mas, quando a mosca está finalmente seca e pronta para seguir a sua vida, ele deita-lhe um pouco de tinta em cima. A mosca debate-se e consegue secar as asas de novo, mas ele repete o processo, admirando a tenacidade da mosca em recuperar sempre novamente. Finalmente, a mosca acaba por sucumbir aos ataques e ele deita-a fora, juntamente com o papel cheio de tinta. Sente uma maldade em si que o assusta e chama um empregado para lhe trazer mais papel. Finalmente, não consegue lembrar-se do que o preocupava antes de descobrir a mosca.

  Uma gravitação que regia o tempo do protagonista de "The Fly" – eis o que o seu filho lhe oferecia. A tarefa de construir o futuro do seu herdeiro conferia o rumo que orientava a duração da sua vida. A morte do filho representa assim o desvanecer daquele caminho de sentido para as suas acções. A partir daí, o protagonista começa (nos primeiros anos) por orientar inversamente o seu percurso: já não numa perspectiva de futuro, mas de passado. Um percurso de sofrimento, de luto pela morte do filho. Obviamente, esse não é um verdadeiro caminho – trata-se de uma ilusão, e é uma ilusão que não o pode aguentar muito tempo. Por isso, o protagonista acaba por se deixar perder num limbo. E fá-lo apagando da memória (da consciência) o evento destruidor.  Este apagamento não tem lugar apenas com o aparecimento da mosca. Podemos adivinhar que este episódio não é mais que uma ilustração do que ele vinha já fazendo há anos; com efeito, a referência ao filho morto parece acolhida quase com surpresa – como seria recebido o ressurgir de um evento traumático enterrado há tanto tempo que o sujeito já não o recordava. O acontecimento luta então para voltar a assombrar o protagonista, como a mosca para se libertar da tinta. Mas tal como ele sucede em matar a mosca, consegue também erradicar – por agora – o evento traumático. E a vergonha de si mesmo faz sentido tanto no que respeita à morte do insecto como ao apagamento do filho.
  Porque é preciso apagar o filho da consciência? A tarefa de construir o futuro do rapaz carregava de sentido o tempo do protagonista. O seu desaparecimento traduz a destruição desse sentido, o dissolver de todos os momentos que ele terá a partir daí. Na realidade estilhaçada do protagonista, perante a morte do filho, é também o seu tempo que surge desfeito em pedaços que não podem ser organizados. O apagamento do filho não vai resolver esse problema. Mas é, ainda assim, necessário. Porque se o sentido desapareceu do tempo do protagonista, a consciência da morte do filho é o apontar dos olhos para esse desaparecimento. A morte do filho torna-se o vértice de um tornado que desarruma todos os momentos, todas as experiências da vida do protagonista, destruindo qualquer possibilidade de sentido. Claro que apagar o filho não resolve e nada é dito no conto sobre qualquer elemento que o possa substituir nas funções de gravitação. Mas só depois do tornado passar se pode erguer uma nova casa.

  Uma experiência de algum modo similar é a de Leila, a protagonista de um outro conto de Katherine Mansfield, "Her first ball".
  No seu primeiro baile, Leila está maravilhada com tudo. Mesmo aquilo que, pelas reacções dos outros, não parece merecer atenção ou elogio, impressiona-a. Não distingue nada de entre as coisas, pessoas e lugares que vai vendo. Vem então a dança com o homem gordo que a convidara com sobranceria: o homem é claramente bastante mais velho e ele mesmo assume que faz aquilo há trinta anos ("'Thirty years!', cried Leila. 'Twelve years before she was born!'"). Dá-lhe então uma perspectiva do que será o seu futuro: ela não pode ter a esperança de dançar por tanto tempo como ele. Brevemente, limitar-se-á a assistir de fora com rancor e inveja a sua filha a dançar e a ser cortejada por outros homens. Leila fica bastante perturbada com isto e parece só agora perceber que aquilo não pode durar para sempre – perante isto, tudo muda a seus olhos. A música parece-lhe agora triste e não quer dançar mais. Na dança seguinte, apenas aceita por delicadeza o convite de um rapaz. Mas rapidamente ganha alegria de novo e quando, momentos depois, embate por acidente contra o homem gordo, sorri-lhe radiante sem já sequer o reconhecer.

  É com a perturbação de Leila perante o que lhe diz o homem gordo que percebemos o carácter decisivo do modo como a temporalidade que impregna a sua visão das coisas actua também sobre os seus sentimentos. Se tudo lhe é igualmente maravilhoso, é também porque nada daquilo tem um futuro. Todas as coisas são ali presente. O paradoxo do homem gordo, pelo qual ele vem perturbar a experiência de Leila, é o de que, sendo ele quem há mais tempo dura nos bailes, quem verdadeiramente se eterniza nestes eventos, é também ele a única e decisiva evidência de que eles não durarão para sempre.
  O discurso do homem gordo obriga Leila a adoptar um novo modo de ver as coisas, porque incute nela um diferente modo de viver o tempo. Os momentos já não podem equivaler-se, não são já todos iguais e maravilhosos. Agora sucedem-se no tempo, de tal modo que um dia terão um fim. O homem gordo, no fundo, puxa Leila para mais perto de uma narrativa. É porque um dia terão fim, porque têm de ser vividos agora, que os momentos de Leila se impregnam de uma tristeza trágica que os distingue entre si. Leila já não pode ver tudo com olhos cegos à diferença; tem de distinguir, tem de valorar, tem até de rejeitar, porque tudo se insere numa história – a sua história –, que um dia, fatalmente, irá acabar. E mais ainda do que a inevitabilidade de uma história, é a inevitabilidade da trama o que verdadeiramente a deprime: porque a história de Leila já está escrita pelo homem gordo. Terrível não é um presente eterno, o tempo de um movimento petrificado, condenado a prolongar-se sem limites – o tempo do mundo em que Leila vivia até à conversa. Verdadeiramente terrível é o futuro já escrito.
  Tal como o protagonista de "The Fly", no entanto, também Leila consegue voltar ao seu presente, em que tudo se equivale a seus olhos. Porque também ela consegue asfixiar a sua mosca: quando revê o homem gordo, já nem o reconhece.

  Observemos, por fim, à luz da mesma teorização sobre o tempo, o conto "The Story of an Hour", de Kate Chopin (resumido aqui).
  Também Louise Mallard vive o seu casamento num presente de momentos indistintos. Também ela é arrancada bruscamente desse presente eterno. Onde antes surgiram Woodifield e o homem gordo, surge agora a morte do marido a acordar Louise do presente eterno. Ao invés do que acontece com os anteriores protagonistas, porém, este despertar é a fuga de um pesadelo. A seguinte passagem, referindo os seus sentimentos pelo marido, ilustra na perfeição esta libertação do terrível presente: “And yet she had loved him — sometimes. Often she had not. What did it matter! What could love, the unsolved mystery, count for in face of this possession of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her being!”.
  A posição de Louise parece então a inversa da dos outros dois. Porque o reaparecer do marido traz-lhe a morte. O que significa, no fundo, o seguinte: tanto o protagonista de "The Fly" como Leila precisam de sufocar o elemento perturbador que ameaça despertá-los do seu presente de sonho – como se disso dependesse continuarem a viver. Com Louise, ao invés, é ela quem morre sufocada nesse mesmo presente eterno. O que ela queria era libertar-se, e não voltar a ele, como os outros dois.

  Louise acaba morta e os outros dois sobrevivem. Mas se nos detivermos um pouco a estudar com mais atenção a temporalidade da sua experiência de vida talvez possamos perceber a ilusão que temos de evitar. Porque um presente eterno, um presente feito de momentos indistintos, de faces sem rosto e beleza sem diferença – um presente sem narrativa ou sentido, onde tudo vagueia sem orientação – é uma morte fabricada com imagens.
  Uma morte feita de ilusões é preferível a uma morte de escuridão? Não para Louise, porque, se o seu coração era frágil, os seus olhos eram de pedra e não podiam ser assaltados por mentiras. Morrer sem ilusões: eis a única possibilidade, para Louise, de morrer livre.

segunda-feira, 14 de março de 2016

O outro que me trai – Peter Pan e o "marinheiro perdido"


Laurent Durieux

  No livro Peter and Wendy (J. M. Barrie), Peter Pan tem um momento de terror, o único de que Barrie tem conhecimento, segundo narra o próprio (For almost the only time in his life that I know of, Peter was afraid”): aquele em que percebe que Wendy envelheceu.
 O choque de Peter só se percebe conhecendo o funcionamento da sua memória. Peter esquece-se constantemente de tudo. Não recorda coisas acabadas de acontecer e tem mesmo dificuldade em lembrar-se de pessoas – inclusive Wendy e os meninos perdidos. Quando volta, após muitos anos, para vir buscar Wendy, Peter não se dá conta do tempo que passou. Pensa que decorreu apenas um ano desde a sua última visita e que é tempo de Wendy partir com ele, segundo o que combinaram fazer todos os anos. Mas Wendy cresceu, é agora adulta e tem uma filha, Jane.
  O “marinheiro perdido” Jimmie G., cuja história é relatada no livro The Man who Mistook his Wife for a Hat (Oliver Sacks), é um Peter Pan da vida real. Jimmie também estava parado no tempo (se bem que apenas mentalmente) e por isso não recordava nada do que lhe acontecia desde uma certa data. E também ele passa por um momento de terror devido à sua memória: aquele em que é confrontado com um espelho. É aí que dá conta do tempo que passou. No filme The Straight Story (David Lynch), Alvin Straight diz que a pior parte de sermos velhos é lembrarmo-nos de quando éramos novos. O terror de Jimmie G. é outro: não se lembra de ser velho.
   Jimmie G. fica aterrorizado ao perceber que envelheceu. A sua surpresa é a de constatar que não é verdadeiramente Peter Pan. Já o próprio Peter fica também chocado ao compreender que alguém não é Peter Pan, mas agora esse alguém não é ele mesmo, e sim Wendy. E isto permite perceber que o terror de ambos tem uma estrutura inversa (e, por isso, simétrica).
  Quando se vê no espelho, Jimmie não se vê no espelho. Daí a surpresa. Porque Jimmie vê no espelho um outro. Mas aquele não é o seu outro. É um outro, mas não o seu. Ao ver-se ao espelho, descobre, no fundo, que o seu outro já não lhe pertence, ele e o seu outro estão desalinhados. Por isso podemos sentir o seu choque e quase ouvi-lo dizer: “este não é o meu outro!”.
   Peter sabe que não vai crescer e que a velhice de Wendy não o obriga a fazê-lo. Por isso, o seu terror só pode ser apreendido se entendermos que Wendy é o outro de Peter. E assim o seu terror, tal como o do marinheiro, é o de ver-se alienado do seu outro; o de descobrir que, no lugar onde sempre encontrara o outro que lhe pertencia, surge agora um outro que não pode ser (o) seu. Só que Peter consegue sobreviver a isto do modo que conhecemos: Wendy será substituída por Jane, esta será substituída por Margaret, etc. E cada nova moça substitui a anterior no lugar do outro de Peter. Deste modo, Peter nunca chega a perder o seu outro definitivamente. É de um simbolismo óbvio, assim, que Peter perca a sua sombra (o seu outro) em casa de Wendy e que esta lha devolva na noite em que se junta a ele. Por outro lado, o seu terror voltará de todas as vezes que perceber que a sua "mãe" envelheceu. Por isso também o próprio Barrie, que aparentemente se esquece disso, tem uma memória de Peter Pan, ao julgar que o terror assalta Peter num único momento da sua vida. Na verdade, esse pânico voltará de todas as vezes que Peter tornar à casa anos depois, sem se dar conta de que, enquanto ele estava fora, as pessoas envelheceram. Mas em todas essas ocasiões há-de lá estar uma Wendy, uma Jane ou uma Margaret para lhe perguntar porque chora e para lhe coser a sombra que ele perdeu.
  Como vemos, tanto o marinheiro perdido como Peter têm o terror de descobrir a alienação do seu outro. E o remédio é o mesmo para ambos: o do esquecimento. Ambos vão esquecer o outro que perderam. Só que Jimmie, ao contrário de Peter, não pode substituir o seu outro. Está preso a um outro que não reconhece como o seu. Assim, aquele terror, embora simétrico, tem um significado inverso para os dois: no caso de Peter, é o de ver o seu outro, agora um estranho, alienado em definitivo – Wendy nunca mais poderá preencher esse lugar. No caso do marinheiro, ao invés, o seu terror é o de ver-se preso em definitivo ao seu outro, mesmo sendo ele um estranho que Jimmie não reconhece.
 Tanto Jimmie como Peter sofrem com a traição do seu outro. Mas Peter sofre com a traição de um outro que o abandonou: Wendy prometeu não crescer, mas cresceu. Nunca mais poderá voar com ele, pois esqueceu-se de como o fazer. Já não é uma rapariga, é uma mulher. Jimmie, ao invés, sofre com a traição de um outro que não o deixou nem nunca o deixará, por mais que ele o remeta para a maior de todas as distâncias – a do esquecimento.

sexta-feira, 4 de março de 2016

O rei que ninguém é – "The Prince and the Pauper" (Mark Twain)


Frank T. Merrill

  No livro "The Prince and the Pauper" (Mark Twain), no dia da coroação, Edward (o príncipe original) reaparece em plena cerimónia para reclamar o seu lugar e Tom (o pobre original) dá-lhe razão imediatamente. Mas perante o insólito da situação e as roupas que parecem desmenti-lo, o público continua inseguro e é preciso uma prova. É perguntado então a Edward onde está o selo real, pois, supostamente, só o verdadeiro príncipe pode sabê-lo. Edward responde e Lord St. John é enviado para ir procurar o selo. Antes de partir, Lord St. John quer fazer uma vénia ao rei, mas, não sabendo qual dos rapazes é o verdadeiro, acaba por fazer uma vénia ao espaço entre os dois (“The Lord St. John made a deep obeisance — and it was observed that it was a significantly cautious and noncommittal one, it not being delivered at either of the kings but at the neutral ground about half-way between the two — and took his leave.”).

  Quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la a ambos os príncipes, i. e., ao príncipe que cada um deles possivelmente é. Ao mesmo tempo, podemos dizer que não a dirige a nenhum deles, ou seja, ele não a quer dirigir ao possível pobre que ambos também são, cada um a sua vez. Esta indefinição – dirigir a vénia para o meio dos destinatários, pela incerteza quanto ao destinatário correcto – pode assim ser o reflexo de um desejo de dirigir a vénia a ambos, mas condicionalmente, sem um compromisso definitivo; bem como, reversamente, de um propósito de não a dirigir a nenhum deles, com a ressalva da possibilidade, porém, de ainda o fazer uma vez descoberta a verdade.
  Há, todavia, uma outra possibilidade: a de a vénia ser afinal dirigida a um terceiro rei, encontrado ali entre os dois rapazes. Neste momento em que não está decidido qual dos dois é o rei, temos um rapaz que reclama ser o monarca, mas não aparenta sê-lo e por isso não foi ainda reconhecido como tal (e, portanto, não o é ainda verdadeiramente); temos outro rapaz, que, ao invés, parece ser o rei, mas garante que na verdade o rei não é ele, e sim o outro. No espaço entre eles surge então, por assim dizer, o rei que existe em ambos em diferentes momentos: o rei que Tom foi e vai deixar agora de ser; que é igualmente aquele que Edward não foi ainda, mas será no futuro. Não há nada, fisicamente, a ocupar o espaço entre os rapazes, mas isso é apenas a confirmação do modo de (não) ser deste rei: Tom foi-o, mas já não é, Edward vai sê-lo, mas não o é ainda. Um rei que ninguém é e, por isso, não pode ser visto, eis o monarca entre os dois rapazes a quem Lord St. John faz a vénia. Monarca que, de um modo curioso, consegue cumprir às avessas aquele estranho desejo que Bernardo Soares manifesta no seu Livro do Desassossego: "Seria interessante poder ser dois reis ao mesmo tempo: ser não a uma alma de eles dois, mas as duas almas".
  Este rei que ninguém é surge na confrontação entre Tom e Edward. O processo que então tem lugar ajuda-nos a perceber melhor o surgimento do terceiro rei.
  Com base numa leitura de "The story of an hour" (Kate Chopin), podemos perceber que o eu só existe na medida em que é sustentado por um outro. É o estranho que em mim mora que me sustém. Isto pode ser entendido também a partir da história "The Prince and the Pauper".
  Relembremos a cena em que Tom e Edward trocam de roupa pela primeira vez e percebem que são iguais. É muito significativo que eles só se apercebam de que são idênticos quando trocam de lugar. Só vendo-se vestidos com a roupa um do outro conseguem perceber que, se andassem nus, ninguém os distinguiria. E isto vai conduzir-nos ao ponto referido. A troca de roupa é, afinal – mais ainda do que eles próprios desejavam – uma troca de lugares. O que significa uma lição muito simples para os dois rapazes: pondo-me no lugar do outro (e assim tornando-me no outro), eu posso perceber que ele é idêntico a mim. Esta identidade só aparece agora com a troca de lugares, mas ela já existia (escondida) antes disso. O outro já vivia em mim antes de eu me pôr no seu lugar. E é esse outro, que em mim vive, que verdadeiramente me sustém, como Louise ou Narciso tiveram de aprender com a morte, e como é ilustrado também no livro de Mark Twain, em dois outros momentos muito significativos que também não devem passar despercebidos.
  O primeiro desses momentos é aquele em que Tom ajuda Edward a lembrar-se de onde está o selo real. Como Edward tinha problemas em recordar-se, Tom – que claramente sabe onde ele está, mas não o diz, sob pena de ser tomado como o verdadeiro rei – ajuda Edward, recapitulando os acontecimentos do dia em que se conheceram, até Edward finalmente se lembrar, dar a resposta correcta e, enfim, ser reconhecido como rei. Ora, todos tinham antes aceitado que só o verdadeiro rei poderia saber onde estava o selo real (“Where lieth the Great Seal? Answer me this truly, and the riddle is unriddled; for only he that was Prince of Wales can so answer!") e é mostrando que o sabe que Edward prova ser rei. Mas tem de ser óbvio para todos que Tom também sabe onde está o objecto – de facto, ele sabe-o ainda melhor do que Edward, já que é ele quem o ajuda a lembrar-se. E, ainda assim, todos aceitam Edward como rei por o saber. O que só podemos perceber se aceitarmos definitivamente a identidade entre os dois rapazes: não há, de facto, contradição em reconhecer Edward como rei quando é Tom quem melhor sabe onde está o selo, atendendo à identidade entre ambos. Nesta cena, Tom é, de facto, o outro que mora em Edward, o estranho que o sustém. E muito claramente mostra isso quando, por um lado, recusa a hipótese de se tornar definitivamente rei (poderia ter dito ele mesmo onde estava o selo, mas não chega a fazê-lo), visto que assim tomaria definitivamente o lugar de Edward e deixaria de ser um outro para este; mantém-se, deste modo, um estranho. Por outro lado, ajuda Edward a lembrar-se, quando até o próprio Edward se preparava já para desistir (e, assim, é pela sua ajuda que Edward se mantém rei), mostrando-se um estranho que sustém o rei.
  Esta posição de Tom como o estranho que sustém Edward é sugerida ainda noutro momento por um pormenor, a um tempo mais subtil e a outro mais directo. Quando Edward veste o manto real que Tom lhe devolve, veste-o por cima das roupas de pobre que pertencem a Tom. Seria difícil uma sugestão mais evidente de como o pobre (Tom) é o estranho que mora em Edward (escondido sob a aparência do manto real – “the sumptuous robe of state had been removed from Tom’s shoulders to the king’s, whose rags were effectually hidden from sight under it.”) e o sustém.
  Quem é afinal o terceiro rei a quem Lord St. John dirige a sua vénia? Começa por ser, precisamente, um rei, e, da perspectiva de Tom, é o estranho que o sustenta. Com efeito, para Edward o estranho é Tom, o pobre. Mas para Tom o estranho é Edward, o rei. E também este estranho mora em Tom e segura-o, mantém-no e permite-lhe ser Tom. E isto confirma-se pelo que nos é relatado no princípio do livro: nas suas brincadeiras, Tom fazia o papel de monarca e todos notavam mesmo quão bem ele desempenhava o papel. É esta máscara que Tom punha que, como todas as verdadeiras máscaras, mostram mais do que escondem: mostram, precisamente, o estranho que mora em nós.
  Como já podemos perceber, no entanto, na figura do rei (do rei enquanto tal, não Edward ou Tom em concreto) mora a figura de um estranho que segura aquela: e esta figura só pode ser a de um pobre. Por isso, quando Lord St. John faz a sua vénia, ele fá-la tanto ao rei como ao estranho que no rei mora. E uma vénia merecida – porque sem o pobre que o segura, rei nenhum encontraria trono.