Joker, um dos mais conhecidos inimigos do super-herói da DC Comics Batman, tem um sorriso inscrito no rosto, um sorriso gravado, terrível, que nunca desaparece. Bob Kane e Bill Finger, criadores da figura (a intervenção de Jerry Robinson é mais discutida), reconheceram terem-se inspirado em Gwynplaine, personagem de L’homme qui rit (Victor Hugo), interpretada por Conrad Veidt no filme The Man who Laughs (Paul Leni), que está sujeita à mesma condição. As versões sobre a origem do sorriso do Joker variam, mas no filme Batman (Tim Burton), esse sorriso é-lhe imposto, não é escolha sua, tal como sucede com Gwynplaine.
Analisando aquele filme (no livro Movie Love – Complete Reviews), no entanto, Pauline Kael distingue os dois sorrisos. Embora Jack Napier – o Joker de Jack Nicholson no filme de Tim Burton – seja uma criatura malvada e Gwynplaine uma pessoa triste, mas bondosa – ou talvez precisamente por isso –, Kael vê no sorriso de Gwynplaine algo de muito mais terrível: "the grin carved into the Joker's face doesn't have the horror of the one on Conrad Veidt's face in the 1927 The Man Who Laughs (...). Veidt played a man who never forgot his mutilation. Nicholson's Jack Napier is too garish to suffer from having been turned into a clown; the mutilation doesn't cripple him, it fulfills him. (...) The Joker (...) isn’t human: he's all entertainer, a glinting-eyed cartoon”.
Aqui fica sugerido, todavia, o motivo do verdadeiro terror que o Joker de Jack Nicholson inspira: ele abraça o seu sorriso, aceita-o, torna-se esse sorriso, identifica-se com ele. É por isso que ele, de facto, não é humano. Verdadeiramente humano é apenas Gwynplaine – é com este que nos podemos identificar, porque Gwynplaine tem horror ao seu sorriso; não só está longe de se identificar com ele, como o rejeita.
A perturbação que nos inspira Gwynplaine assenta na possibilidade de nos identificarmos com ele, de nos vermos no seu lugar – ou, mais concretamente, de nos identificarmos com o seu não-lugar, com a repulsa que ele sente pelo seu sorriso. É uma identificação que corre nos dois sentidos, tal como todas as verdadeiras identificações: é apenas na medida em que nos repugna o seu sorriso que conseguimos identificar-nos com a repugnância que ele próprio sente. Ou seja, a possibilidade de nos identificarmos com o outro (Gwynplaine) pressupõe a hipótese prévia de ele poder ser identificado connosco. E esta experiência de identificação, de pormos os sapatos do outro (ou o seu sorriso) perturba-nos inevitavelmente, do mesmo modo que o perturba a ele. Tal como o próprio Gwynplaine só pode ficar verdadeiramente perturbado através de um processo de identificação similar: é só na medida em que se coloca no nosso lugar (despindo o seu inalienável sorriso para se tornar um outro para si mesmo, vendo-se a si mesmo como um outro o vê) que ele pode sentir o horror da sua imagem; só aí pode experienciar a perturbação que nós mesmos vivemos perante o seu rosto e sentir, finalmente, horror de si mesmo.
O terror do espectador perante o sorriso do Joker procede no sentido inverso. Como Kael sugere, ele não rejeita o seu sorriso – bem pelo contrário, o sorriso “preenche-o”. Jack Napier identifica-se com ele. Aceita-o como seu, como aquilo que ele é. E é com esta identificação que não nos podemos identificar, porque ela é tudo menos humana. Verdadeiramente humana é antes a experiência da não identificação connosco mesmos: mesmo quando nos aceitamos como somos, nunca há coincidência total entre nós e nós próprios – daí que Sartre (L’être et le néant) tenha afirmado que o ser-para-si é aquilo que não é e não é aquilo que é. O drama de Gwynplaine é precisamente o de se ver obrigado a usar um rosto que rejeita – com o qual, portanto, não se quer identificar. É com essa alienação que podemos empatizar, pois ela ecoa a alienação mais primária que começa por ter lugar dentro de nós. Ora, perante o Joker de Nicholson, esta experiência de identificação não é possível, visto que o seu pressuposto – a alienação por parte do Joker em relação ao seu sorriso – não ocorre. Ao invés, o Joker aceita o seu sorriso, identifica-se plenamente com ele.
Lembremos a cena em que Jack Napier se torna definitivamente o Joker: ele começa por aparecer visivelmente nervoso, ansioso, irritado. Pede um espelho, olha a sua imagem e, então sim, é o Joker: o nervosismo desapareceu, agora apenas ri diabolicamente enquanto parte o espelho e vai embora. É muito significativo o modo como ocorre esta transformação: é ao espelho que Jack Napier vai buscar o Joker em que se torna. Ao invés de no espelho surgir o reflexo da identidade que colocamos diante dele, é no reflexo que Jack vai recolher a sua identidade. E isto percebe-se facilmente: é que a imagem, a máscara que usamos perante os outros, é-nos mostrada no espelho. E essa máscara é aquela com que nos cobrimos perante os olhos dos outros. O espelho veste-nos a máscara. O Joker, porém, identifica-se com o seu sorriso, com a máscara que traz vestida. O que significa que não há ninguém por baixo da máscara. Por outras palavras, de certo modo, se Jack nos surge de costas (na cena referida), sem que lhe consigamos ver o rosto, e se é vendo-se ao espelho que a transformação se consuma, é porque não existe ninguém deste lado do espelho. Há apenas a máscara, i. e., a imagem reflectida.
Kael tem razão quando chama (ainda que em tom redutor) mero cartoon a este Joker: é que ele, afinal, ao aceitar deste modo o seu rosto, acaba por se identificar com a sua personagem, por se tornar um ser-em-si, ou algo parecido. Deixa, assim, de ser humano. Esta identificação do Joker com o seu sorriso torna-se, deste modo, algo de aterrador, na medida em que ficamos perante um outro impossível, um outro que encontramos num lugar que nunca poderemos ocupar.
Lembremos a cena em que Jack Napier se torna definitivamente o Joker: ele começa por aparecer visivelmente nervoso, ansioso, irritado. Pede um espelho, olha a sua imagem e, então sim, é o Joker: o nervosismo desapareceu, agora apenas ri diabolicamente enquanto parte o espelho e vai embora. É muito significativo o modo como ocorre esta transformação: é ao espelho que Jack Napier vai buscar o Joker em que se torna. Ao invés de no espelho surgir o reflexo da identidade que colocamos diante dele, é no reflexo que Jack vai recolher a sua identidade. E isto percebe-se facilmente: é que a imagem, a máscara que usamos perante os outros, é-nos mostrada no espelho. E essa máscara é aquela com que nos cobrimos perante os olhos dos outros. O espelho veste-nos a máscara. O Joker, porém, identifica-se com o seu sorriso, com a máscara que traz vestida. O que significa que não há ninguém por baixo da máscara. Por outras palavras, de certo modo, se Jack nos surge de costas (na cena referida), sem que lhe consigamos ver o rosto, e se é vendo-se ao espelho que a transformação se consuma, é porque não existe ninguém deste lado do espelho. Há apenas a máscara, i. e., a imagem reflectida.
Kael tem razão quando chama (ainda que em tom redutor) mero cartoon a este Joker: é que ele, afinal, ao aceitar deste modo o seu rosto, acaba por se identificar com a sua personagem, por se tornar um ser-em-si, ou algo parecido. Deixa, assim, de ser humano. Esta identificação do Joker com o seu sorriso torna-se, deste modo, algo de aterrador, na medida em que ficamos perante um outro impossível, um outro que encontramos num lugar que nunca poderemos ocupar.
Isto é bem exemplificado quando pensamos que o desconforto na presença deste Joker tem muito daquela insegurança que nos assalta quando alguém se ri olhando para nós sem que consigamos perceber o motivo. Por não percebermos a piada e suspeitarmos que ela se refere a nós, queremos imediatamente saber o que há em nós de errado que faz rir o outro. Basta lembrar um dos momentos finais do filme, em que o Joker já está morto, mas mantém o sorriso e continuamos a ouvir a sua gargalhada. Quando já tudo terminou, o Joker continua a rir-se e ainda não percebemos do quê. Este desconforto explica-se se nos lembrarmos de que, quando nos descobrimos como objectos do olhar do outro, damo-nos conta de uma dimensão em nós que não dominamos: o nosso ser-para-outrem. Queremos imediatamente “recuperar” este nosso ser, trazê-lo para o nosso domínio (o que, em rigor, será sempre impossível). Mas essa recuperação, a ser atingida alguma vez, só poderia sê-lo por meio de identificação com o outro que nos vê – só, portanto, se nos conseguíssemos ver a nós mesmos com os olhos do outro. Todavia, enquanto não descobrirmos o motivo que, provindo de nós, provoca no outro o riso, a impossibilidade dessa identificação fica nua, impossível de disfarçar. É precisamente através desta impossibilidade de identificação que funciona o terror que este Joker instiga.
A expressão de Kael, conjugada com o que desenvolvemos antes, sugere uma ideia interessante: o medo do palhaço pode explicar-se pela nossa identificação com ele. É precisamente na medida em que nos podemos pôr no lugar do palhaço – ou seja, é na medida em que, ao olhar aquele rosto, nos vemos a nós mesmos tornados horrendos e gozados pelos outros – que o nosso medo do palhaço surge. No fundo, nesta hipótese, o medo do palhaço nasce do medo de sermos o palhaço. Este medo só funciona porque olhamos o palhaço com os olhos do outro: nós somos o outro quando o olhamos e o medo surge quando a hipótese de nos identificarmos com ele aparece.
Gwynplaine não pode rir-se do palhaço. Ele rejeita a identificação com o seu sorriso, mas, ao mesmo tempo, não pode nunca verdadeiramente libertar-se dele. A um tempo, ele identifica-se com o seu sorriso (porque este é o seu rosto); a outro, ele não se identifica (porque o rejeita, porque aquele é afinal o sorriso dos outros e nunca o seu). Na medida em que está preso à sua máscara e, desse modo, a máscara é o seu rosto, Gwynplaine nunca pode olhá-la verdadeiramente da perspectiva do outro que põe a máscara ao sujeito. Por isso, o título do livro de Victor Hugo (e do filme de Paul Leni) aparece tão ironicamente trágico: na verdade, Gwynplaine nunca pode ser aquele que ri. Nesta relação entre o palhaço e o espectador, o homem que não consegue deixar de sorrir conhece afinal apenas o lado do medo, nunca o do riso.
O Joker de Nicholson, ao invés, identifica-se com o seu sorriso e deleita-se com isso: ele é o outro lado do palhaço. Se Gwynplaine é o palhaço trágico, o Joker é o palhaço terrível. Perante o Joker, o medo de nos identificarmos com o seu rosto é esgotante, não deixando qualquer espaço para o riso. O deleite, neste caso, fica todo do lado do palhaço: só o Joker pode verdadeiramente rir-se de si mesmo, e, por isso, só ele consegue rir-se de nós (de facto, não pode deixar de o fazer); nunca conseguimos ser nós a rir dele. Não há talvez nada mais perturbador do que o encontro com alguém que se identifica voluntariamente com a sua máscara – porque é atrás da máscara deste alguém que mora a escuridão. No fim de contas, só o Joker não precisa do sorriso dos outros: o sorriso que usa é verdadeiramente seu.