Como explica Byung-Chul Han (Duft der Zeit: Ein philosophischer Essay zur Kunst des Verweilens), a aceleração geral no ritmo de vida das pessoas, hoje tão notória, não é tanto um processo primário que importa consequências no mundo da vida, mas antes um efeito, um sintoma daquilo a que ele chama a atomização do tempo.
Na falta de qualquer gravitação que reja o tempo, nada aparece para o guiar, desaparecem os diques que o poderiam deter e sustentar. Sem ritmo, o tempo passa a fluir sem rumo e sem paragens – enfim, sem sentido. Neste ambiente, não pode surgir qualquer tensão temporal que confira rumo ao tempo e o carregue de sentido. O tempo fica des-orientado e atomizado, fragmentado.
Ainda seguindo Byung-Chul Han, num tempo assim atomizado e fragmentado, na falta de um sentido orientador, "todos os momentos são iguais entre si. Nada há que distinga um momento do outro" (In einer atomisierten Zeit gleichen die Zeitpunkte einander. Nichts zeichnet einen Zeitpunkt vor den anderen aus). "Morrer a tempo", como propunha Zaratustra (Nietzsche, Also sprach Zarathustra), torna-se impossível: "como há-de morrer a tempo quem nunca viveu a tempo?" (wer nie zur rechten Zeit lebt, wie sollte der je zur rechten Zeit sterben?). Morrer a tempo (no momento certo) é o que acontece apenas quando a morte surge como o natural fim da vida, como o termo que, em vez de pôr fim ao percurso, surge como a conclusão lógica deste. Diferentemente, num tempo atomizado, a morte aparece como um "finar a destempo" (Verenden zur Unzeit). Nesta morte a destempo, a morte é uma violência que, de fora, corta a vida. Aqui, a vida não chegou a ser vivida até ao fim – e não o foi porque não o pôde ser, pela falta de uma qualquer forma de fim que conferisse um sentido ao tempo da vida.
No conto "The Fly", de Katherine Mansfield, durante uma conversa casual com Woodifield, o protagonista é levado a recordar-se do seu filho, morto na guerra há 6 anos. A perda afectou-o muito na altura e a referência agora feita perturba-o claramente. Ele quer chorar, mas, diferentemente do que antes acontecia, não consegue. Descobre então uma mosca a debater-se no frasco da tinta. Ajuda-a a sair, mas, quando a mosca está finalmente seca e pronta para seguir a sua vida, ele deita-lhe um pouco de tinta em cima. A mosca debate-se e consegue secar as asas de novo, mas ele repete o processo, admirando a tenacidade da mosca em recuperar sempre novamente. Finalmente, a mosca acaba por sucumbir aos ataques e ele deita-a fora, juntamente com o papel cheio de tinta. Sente uma maldade em si que o assusta e chama um empregado para lhe trazer mais papel. Finalmente, não consegue lembrar-se do que o preocupava antes de descobrir a mosca.
Uma gravitação que regia o tempo do protagonista de "The Fly" – eis o que o seu filho lhe oferecia. A tarefa de construir o futuro do seu herdeiro conferia o rumo que orientava a duração da sua vida. A morte do filho representa assim o desvanecer daquele caminho de sentido para as suas acções. A partir daí, o protagonista começa (nos primeiros anos) por orientar inversamente o seu percurso: já não numa perspectiva de futuro, mas de passado. Um percurso de sofrimento, de luto pela morte do filho. Obviamente, esse não é um verdadeiro caminho – trata-se de uma ilusão, e é uma ilusão que não o pode aguentar muito tempo. Por isso, o protagonista acaba por se deixar perder num limbo. E fá-lo apagando da memória (da consciência) o evento destruidor. Este apagamento não tem lugar apenas com o aparecimento da mosca. Podemos adivinhar que este episódio não é mais que uma ilustração do que ele vinha já fazendo há anos; com efeito, a referência ao filho morto parece acolhida quase com surpresa – como seria recebido o ressurgir de um evento traumático enterrado há tanto tempo que o sujeito já não o recordava. O acontecimento luta então para voltar a assombrar o protagonista, como a mosca para se libertar da tinta. Mas tal como ele sucede em matar a mosca, consegue também erradicar – por agora – o evento traumático. E a vergonha de si mesmo faz sentido tanto no que respeita à morte do insecto como ao apagamento do filho.
Porque é preciso apagar o filho da consciência? A tarefa de construir o futuro do rapaz carregava de sentido o tempo do protagonista. O seu desaparecimento traduz a destruição desse sentido, o dissolver de todos os momentos que ele terá a partir daí. Na realidade estilhaçada do protagonista, perante a morte do filho, é também o seu tempo que surge desfeito em pedaços que não podem ser organizados. O apagamento do filho não vai resolver esse problema. Mas é, ainda assim, necessário. Porque se o sentido desapareceu do tempo do protagonista, a consciência da morte do filho é o apontar dos olhos para esse desaparecimento. A morte do filho torna-se o vértice de um tornado que desarruma todos os momentos, todas as experiências da vida do protagonista, destruindo qualquer possibilidade de sentido. Claro que apagar o filho não resolve e nada é dito no conto sobre qualquer elemento que o possa substituir nas funções de gravitação. Mas só depois do tornado passar se pode erguer uma nova casa.
Uma experiência de algum modo similar é a de Leila, a protagonista de um outro conto de Katherine Mansfield, "Her first ball".
No seu primeiro baile, Leila está maravilhada com tudo. Mesmo aquilo que, pelas reacções dos outros, não parece merecer atenção ou elogio, impressiona-a. Não distingue nada de entre as coisas, pessoas e lugares que vai vendo. Vem então a dança com o homem gordo que a convidara com sobranceria: o homem é claramente bastante mais velho e ele mesmo assume que faz aquilo há trinta anos ("'Thirty years!', cried Leila. 'Twelve years before she was born!'"). Dá-lhe então uma perspectiva do que será o seu futuro: ela não pode ter a esperança de dançar por tanto tempo como ele. Brevemente, limitar-se-á a assistir de fora com rancor e inveja a sua filha a dançar e a ser cortejada por outros homens. Leila fica bastante perturbada com isto e parece só agora perceber que aquilo não pode durar para sempre – perante isto, tudo muda a seus olhos. A música parece-lhe agora triste e não quer dançar mais. Na dança seguinte, apenas aceita por delicadeza o convite de um rapaz. Mas rapidamente ganha alegria de novo e quando, momentos depois, embate por acidente contra o homem gordo, sorri-lhe radiante sem já sequer o reconhecer.
É com a perturbação de Leila perante o que lhe diz o homem gordo que percebemos o carácter decisivo do modo como a temporalidade que impregna a sua visão das coisas actua também sobre os seus sentimentos. Se tudo lhe é igualmente maravilhoso, é também porque nada daquilo tem um futuro. Todas as coisas são ali presente. O paradoxo do homem gordo, pelo qual ele vem perturbar a experiência de Leila, é o de que, sendo ele quem há mais tempo dura nos bailes, quem verdadeiramente se eterniza nestes eventos, é também ele a única e decisiva evidência de que eles não durarão para sempre.
O discurso do homem gordo obriga Leila a adoptar um novo modo de ver as coisas, porque incute nela um diferente modo de viver o tempo. Os momentos já não podem equivaler-se, não são já todos iguais e maravilhosos. Agora sucedem-se no tempo, de tal modo que um dia terão um fim. O homem gordo, no fundo, puxa Leila para mais perto de uma narrativa. É porque um dia terão fim, porque têm de ser vividos agora, que os momentos de Leila se impregnam de uma tristeza trágica que os distingue entre si. Leila já não pode ver tudo com olhos cegos à diferença; tem de distinguir, tem de valorar, tem até de rejeitar, porque tudo se insere numa história – a sua história –, que um dia, fatalmente, irá acabar. E mais ainda do que a inevitabilidade de uma história, é a inevitabilidade da trama o que verdadeiramente a deprime: porque a história de Leila já está escrita pelo homem gordo. Terrível não é um presente eterno, o tempo de um movimento petrificado, condenado a prolongar-se sem limites – o tempo do mundo em que Leila vivia até à conversa. Verdadeiramente terrível é o futuro já escrito.
Tal como o protagonista de "The Fly", no entanto, também Leila consegue voltar ao seu presente, em que tudo se equivale a seus olhos. Porque também ela consegue asfixiar a sua mosca: quando revê o homem gordo, já nem o reconhece.
Observemos, por fim, à luz da mesma teorização sobre o tempo, o conto "The Story of an Hour", de Kate Chopin (resumido aqui).
Também Louise Mallard vive o seu casamento num presente de momentos indistintos. Também ela é arrancada bruscamente desse presente eterno. Onde antes surgiram Woodifield e o homem gordo, surge agora a morte do marido a acordar Louise do presente eterno. Ao invés do que acontece com os anteriores protagonistas, porém, este despertar é a fuga de um pesadelo. A seguinte passagem, referindo os seus sentimentos pelo marido, ilustra na perfeição esta libertação do terrível presente: “And yet she had loved him — sometimes. Often she had not. What did it matter! What could love, the unsolved mystery, count for in face of this possession of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her being!”.
A posição de Louise parece então a inversa da dos outros dois. Porque o reaparecer do marido traz-lhe a morte. O que significa, no fundo, o seguinte: tanto o protagonista de "The Fly" como Leila precisam de sufocar o elemento perturbador que ameaça despertá-los do seu presente de sonho – como se disso dependesse continuarem a viver. Com Louise, ao invés, é ela quem morre sufocada nesse mesmo presente eterno. O que ela queria era libertar-se, e não voltar a ele, como os outros dois.
Louise acaba morta e os outros dois sobrevivem. Mas se nos detivermos um pouco a estudar com mais atenção a temporalidade da sua experiência de vida talvez possamos perceber a ilusão que temos de evitar. Porque um presente eterno, um presente feito de momentos indistintos, de faces sem rosto e beleza sem diferença – um presente sem narrativa ou sentido, onde tudo vagueia sem orientação – é uma morte fabricada com imagens.
Uma morte feita de ilusões é preferível a uma morte de escuridão? Não para Louise, porque, se o seu coração era frágil, os seus olhos eram de pedra e não podiam ser assaltados por mentiras. Morrer sem ilusões: eis a única possibilidade, para Louise, de morrer livre.
Também Louise Mallard vive o seu casamento num presente de momentos indistintos. Também ela é arrancada bruscamente desse presente eterno. Onde antes surgiram Woodifield e o homem gordo, surge agora a morte do marido a acordar Louise do presente eterno. Ao invés do que acontece com os anteriores protagonistas, porém, este despertar é a fuga de um pesadelo. A seguinte passagem, referindo os seus sentimentos pelo marido, ilustra na perfeição esta libertação do terrível presente: “And yet she had loved him — sometimes. Often she had not. What did it matter! What could love, the unsolved mystery, count for in face of this possession of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her being!”.
A posição de Louise parece então a inversa da dos outros dois. Porque o reaparecer do marido traz-lhe a morte. O que significa, no fundo, o seguinte: tanto o protagonista de "The Fly" como Leila precisam de sufocar o elemento perturbador que ameaça despertá-los do seu presente de sonho – como se disso dependesse continuarem a viver. Com Louise, ao invés, é ela quem morre sufocada nesse mesmo presente eterno. O que ela queria era libertar-se, e não voltar a ele, como os outros dois.
Louise acaba morta e os outros dois sobrevivem. Mas se nos detivermos um pouco a estudar com mais atenção a temporalidade da sua experiência de vida talvez possamos perceber a ilusão que temos de evitar. Porque um presente eterno, um presente feito de momentos indistintos, de faces sem rosto e beleza sem diferença – um presente sem narrativa ou sentido, onde tudo vagueia sem orientação – é uma morte fabricada com imagens.
Uma morte feita de ilusões é preferível a uma morte de escuridão? Não para Louise, porque, se o seu coração era frágil, os seus olhos eram de pedra e não podiam ser assaltados por mentiras. Morrer sem ilusões: eis a única possibilidade, para Louise, de morrer livre.
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