E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 10 de julho de 2016

O espelho em que posso confiar

  No conto "Round the Circle" (O. Henry), Sam Webber monta o seu cavalo e parte numa viagem para comprar ovelhas para o seu rancho. Antes de sair, menospreza Martha, a sua mulher, e o seu prazer pela leitura, dizendo que ela devia antes cuidar melhor das roupas que ele veste – respondendo assim aos comentários dela sobre ao seu mau arranjo. Sam vem a perder-se durante a viagem e, sozinho à noite, sente a falta do rancho, da mulher e do filho. Arrepende-se de todas as ocasiões em que desdenhou Martha e os seus afazeres, prometendo que daí em diante será um pai e marido muito mais atento e carinhoso. Mas depois de encontrar o caminho de volta lança mais um comentário depreciativo à mulher mal a vê.

  Conta Séneca que "[h]ouve uma vez um homem que se queixou a Sócrates de nunca ter tirado proveito das suas viagens. 'Não admira!' — respondeu o filósofo. 'Viajaste sempre na companhia de ti próprio!'" (Cartas a Lucílio, XVII-III. 104.7-8). Essa não é a viagem de Sam Webber. O conto termina com a ideia de que "Sam had traveled round the circle and was himself again." Porque afinal Sam viajou para longe de si mesmo. A casa que ele deixou não foi apenas o lugar que ele habita, mas também a pessoa que ele é. Sam foi ser outro para longe dali. Ao contrário daquele homem que Sócrates repreendeu, Sam abandonou-se a si próprio quando saiu de casa.
  É esta separação de si mesmo que permite a Sam ver-se com outros olhos – os olhos de um outro. A viagem de Sam é assim verdadeiramente extraordinária: é como se ele tivesse passado para o outro lado do espelho, como se se tivesse colocado no lugar do seu reflexo, e, ao olhar de volta para onde estava, se descobrisse a si mesmo ali ainda, no lugar original.
  Ao regressar ao seu lugar de origem, contudo, Sam não pode trazer consigo os olhos estrangeiros que utilizou para se ver a si mesmo quando se afastou de si próprio. Parece ser essa a sua tragédia. Mas há também uma outra, mais profunda: agora que está de volta, ele não sabe sequer que já não tem esses olhos. Já não se lembra deles. Porque só sabemos verdadeiramente que estamos a ver as coisas com outros olhos enquanto o fazemos. Sem nos colocarmos no lugar de um ponto de vista, não o podemos conhecer. Todo o ponto de vista que não ocupamos é um ponto cego para nós. Por isso, quando Sam torna a casa, quando volta a este lado do espelho, ele já não se vê com aqueles outros olhos; e já esqueceu o que viu com eles.
  Assim, a lição deste conto poderia ser a de que se é verdade que, separando-nos de nós mesmos, podemos ver-nos com os olhos de um outro, com todas as vantagens que daí podem decorrer, é também verdade que acabamos sempre por voltar a nós próprios e, nesse momento, estamos iguais ao que éramos no início. A armadilha do ponto de vista é afinal essa: não tanto a de que nunca podemos abandonar o nosso ponto de vista, o nosso lugar; mas sobretudo a de que, mesmo quando conseguimos abandoná-lo por um tempo, ao voltarmos a ele, é como se nunca o tivéssemos deixado. Por isso, no fim de contas, nunca o deixamos verdadeiramente. Porque uma viagem só é real se dela regressarmos estrangeiros. Se ao tornarmos ao lugar do nosso ponto de vista, porém, é tudo tão familiar como no início – então tudo se passa como se não tivéssemos chegado a partir.
  Talvez por isso precisemos dos olhos de um verdadeiro outro, i. e., de alguém que é sempre um outro para nós, que ocupa sempre o lugar do nosso ponto cego, o lugar onde os nossos olhos nunca estão e que, por isso, consegue a perspectiva que nós nunca poderemos conseguir: só esses nos podem mudar verdadeiramente.
  Se assim é, porque não conseguiram os olhos de Martha mudar Sam? Provavelmente porque Martha é já um outro demasiado próximo – tão próximo que deixou de ser um outro verdadeiro. Um outro deixa de o ser verdadeiramente quando se torna familiar. Assim, é natural que Sam tenha precisado de se afastar. E não apenas de se afastar, mas até mesmo de se perder, i. e., de sair de todo e qualquer lugar situado, de todo e qualquer lugar que ele pudesse arrumar. Quando sai de casa, ele passa a estar fora de tudo isso, está no estrangeiro da sua existência, pelo simples facto de não saber onde está. E teve de se afastar assim porque só deste modo poderia chegar a colocar os olhos de um outro.
  Os olhos de Martha já não lhe oferecem esse lugar estrangeiro. Porque embora ela veja Sam com olhos estrangeiros, ele não consegue ver-se assim através dos olhos dela. Martha é-lhe já demasiado familiar, a ponto de podermos dizer que ela é como um espelho para Sam. Porque perante um espelho, nós temos a oportunidade de nos vermos a nós mesmos como um outro nos vê. Um espelho é a oportunidade de nos tornarmos um estrangeiro a olhar-nos. Mas os espelhos não nos são todos iguais. Na nossa relação com um espelho, nós moldamo-lo, adaptamo-lo ao nosso gosto. A história do que a Rainha Má (madrasta da Branca-de-Neve) faz com o seu espelho não é senão uma representação disso mesmo. E quando isto acontece, aquela oportunidade de nos vermos com olhos estrangeiros morre, deixa de ser real: porque, mais ou menos inconscientemente, nós seleccionamos o que vemos no espelho, do mesmo modo que (ou precisamente quando) escolhemos como nos apresentamos diante dele. Nunca aparecemos nus diante de um espelho. Rectius: Mesmo quando aparecemos nus diante do espelho, ele devolve-nos vestidos (como acontece no conto "As Novas Roupas do Imperador", de Andersen). Oferecemos a nossa nudez, e, em troca, pedimos que ele nos vista. Mas somos nós mesmos que assim nos traímos. Porque espreitamos através de olhos estrangeiros, mas continuamos a ver com os nossos – como se apenas tivéssemos colocado uns óculos sem lentes. Como se vestíssemos a máscara de um estranho, continuando a espreitar por detrás dela com os nossos olhos.
  Martha tornou-se para Sam um espelho desse género. Porque ela olha-o com olhos estrangeiros, mas ele não se vê a si mesmo através dos olhos dela. Ela é já um espelho demasiado familiar para ele. Por isso, indirectamente, podemos retirar uma recomendação final muito prática deste conto: devemos renovar os nossos espelhos periodicamente, de modo a evitar que eles se tornem demasiado familiares para nós. Porque só poderei verdadeiramente confiar num espelho que no lugar do meu reflexo me mostre um estranho.

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