No conto "Round the Circle" (O. Henry), Sam Webber monta o seu cavalo e parte numa viagem para comprar ovelhas para o seu rancho. Antes de sair, menospreza Martha, a sua mulher, e o seu prazer pela leitura, dizendo que ela devia antes cuidar melhor das roupas que ele veste – respondendo assim aos comentários dela sobre ao seu mau arranjo. Sam vem a perder-se durante a viagem e, sozinho à noite, sente a falta do rancho, da mulher e do filho. Arrepende-se de todas as ocasiões em que desdenhou Martha e os seus afazeres, prometendo que daí em diante será um pai e marido muito mais atento e carinhoso. Mas depois de encontrar o caminho de volta lança mais um comentário depreciativo à mulher mal a vê.
Conta Séneca que "[h]ouve uma vez um homem que se queixou a Sócrates de nunca ter tirado proveito das suas viagens. 'Não admira!' — respondeu o filósofo. 'Viajaste sempre na companhia de ti próprio!'" (Cartas a Lucílio, XVII-III. 104.7-8). Essa não é a viagem de Sam Webber. O conto termina com a ideia de que "Sam had traveled round the circle and was himself again." Porque afinal Sam viajou para longe de si mesmo. A casa que ele deixou não foi apenas o lugar que ele habita, mas também a pessoa que ele é. Sam foi ser outro para longe dali. Ao contrário daquele homem que Sócrates repreendeu, Sam abandonou-se a si próprio quando saiu de casa.
É esta separação de si mesmo que permite a Sam ver-se com outros olhos – os olhos de um outro. A viagem de Sam é assim verdadeiramente extraordinária: é como se ele tivesse passado para o outro lado do espelho, como se se tivesse colocado no lugar do seu reflexo, e, ao olhar de volta para onde estava, se descobrisse a si mesmo ali ainda, no lugar original.
Ao regressar ao seu lugar de origem, contudo, Sam não pode trazer consigo os olhos estrangeiros que utilizou para se ver a si mesmo quando se afastou de si próprio. Parece ser essa a sua tragédia. Mas há também uma outra, mais profunda: agora que está de volta, ele não sabe sequer que já não tem esses olhos. Já não se lembra deles. Porque só sabemos verdadeiramente que estamos a ver as coisas com outros olhos enquanto o fazemos. Sem nos colocarmos no lugar de um ponto de vista, não o podemos conhecer. Todo o ponto de vista que não ocupamos é um ponto cego para nós. Por isso, quando Sam torna a casa, quando volta a este lado do espelho, ele já não se vê com aqueles outros olhos; e já esqueceu o que viu com eles.
Ao regressar ao seu lugar de origem, contudo, Sam não pode trazer consigo os olhos estrangeiros que utilizou para se ver a si mesmo quando se afastou de si próprio. Parece ser essa a sua tragédia. Mas há também uma outra, mais profunda: agora que está de volta, ele não sabe sequer que já não tem esses olhos. Já não se lembra deles. Porque só sabemos verdadeiramente que estamos a ver as coisas com outros olhos enquanto o fazemos. Sem nos colocarmos no lugar de um ponto de vista, não o podemos conhecer. Todo o ponto de vista que não ocupamos é um ponto cego para nós. Por isso, quando Sam torna a casa, quando volta a este lado do espelho, ele já não se vê com aqueles outros olhos; e já esqueceu o que viu com eles.
Assim, a lição deste conto poderia ser a de que se é verdade que, separando-nos de nós mesmos, podemos ver-nos com os olhos de um outro, com todas as vantagens que daí podem decorrer, é também verdade que acabamos sempre por voltar a nós próprios e, nesse momento, estamos iguais ao que éramos no início. A armadilha do ponto de vista é afinal essa: não tanto a de que nunca podemos abandonar o nosso ponto de vista, o nosso lugar; mas sobretudo a de que, mesmo quando conseguimos abandoná-lo por um tempo, ao voltarmos a ele, é como se nunca o tivéssemos deixado. Por isso, no fim de contas, nunca o deixamos verdadeiramente. Porque uma viagem só é real se dela regressarmos estrangeiros. Se ao tornarmos ao lugar do nosso ponto de vista, porém, é tudo tão familiar como no início – então tudo se passa como se não tivéssemos chegado a partir.
Talvez por isso precisemos dos olhos de um verdadeiro outro, i. e., de alguém que é sempre um outro para nós, que ocupa sempre o lugar do nosso ponto cego, o lugar onde os nossos olhos nunca estão e que, por isso, consegue a perspectiva que nós nunca poderemos conseguir: só esses nos podem mudar verdadeiramente.
Se assim é, porque não conseguiram os olhos de Martha mudar Sam? Provavelmente porque Martha é já um outro demasiado próximo – tão próximo que deixou de ser um outro verdadeiro. Um outro deixa de o ser verdadeiramente quando se torna familiar. Assim, é natural que Sam tenha precisado de se afastar. E não apenas de se afastar, mas até mesmo de se perder, i. e., de sair de todo e qualquer lugar situado, de todo e qualquer lugar que ele pudesse arrumar. Quando sai de casa, ele passa a estar fora de tudo isso, está no estrangeiro da sua existência, pelo simples facto de não saber onde está. E teve de se afastar assim porque só deste modo poderia chegar a colocar os olhos de um outro.
Os olhos de Martha já não lhe oferecem esse lugar estrangeiro. Porque embora ela veja Sam com olhos estrangeiros, ele não consegue ver-se assim através dos olhos dela. Martha é-lhe já demasiado familiar, a ponto de podermos dizer que ela é como um espelho para Sam. Porque perante um espelho, nós temos a oportunidade de nos vermos a nós mesmos como um outro nos vê. Um espelho é a oportunidade de nos tornarmos um estrangeiro a olhar-nos. Mas os espelhos não nos são todos iguais. Na nossa relação com um espelho, nós moldamo-lo, adaptamo-lo ao nosso gosto. A história do que a Rainha Má (madrasta da Branca-de-Neve) faz com o seu espelho não é senão uma representação disso mesmo. E quando isto acontece, aquela oportunidade de nos vermos com olhos estrangeiros morre, deixa de ser real: porque, mais ou menos inconscientemente, nós seleccionamos o que vemos no espelho, do mesmo modo que (ou precisamente quando) escolhemos como nos apresentamos diante dele. Nunca aparecemos nus diante de um espelho. Rectius: Mesmo quando aparecemos nus diante do espelho, ele devolve-nos vestidos (como acontece no conto "As Novas Roupas do Imperador", de Andersen). Oferecemos a nossa nudez, e, em troca, pedimos que ele nos vista. Mas somos nós mesmos que assim nos traímos. Porque espreitamos através de olhos estrangeiros, mas continuamos a ver com os nossos – como se apenas tivéssemos colocado uns óculos sem lentes. Como se vestíssemos a máscara de um estranho, continuando a espreitar por detrás dela com os nossos olhos.
Martha tornou-se para Sam um espelho desse género. Porque ela olha-o com olhos estrangeiros, mas ele não se vê a si mesmo através dos olhos dela. Ela é já um espelho demasiado familiar para ele. Por isso, indirectamente, podemos retirar uma recomendação final muito prática deste conto: devemos renovar os nossos espelhos periodicamente, de modo a evitar que eles se tornem demasiado familiares para nós. Porque só poderei verdadeiramente confiar num espelho que no lugar do meu reflexo me mostre um estranho.
Se assim é, porque não conseguiram os olhos de Martha mudar Sam? Provavelmente porque Martha é já um outro demasiado próximo – tão próximo que deixou de ser um outro verdadeiro. Um outro deixa de o ser verdadeiramente quando se torna familiar. Assim, é natural que Sam tenha precisado de se afastar. E não apenas de se afastar, mas até mesmo de se perder, i. e., de sair de todo e qualquer lugar situado, de todo e qualquer lugar que ele pudesse arrumar. Quando sai de casa, ele passa a estar fora de tudo isso, está no estrangeiro da sua existência, pelo simples facto de não saber onde está. E teve de se afastar assim porque só deste modo poderia chegar a colocar os olhos de um outro.
Os olhos de Martha já não lhe oferecem esse lugar estrangeiro. Porque embora ela veja Sam com olhos estrangeiros, ele não consegue ver-se assim através dos olhos dela. Martha é-lhe já demasiado familiar, a ponto de podermos dizer que ela é como um espelho para Sam. Porque perante um espelho, nós temos a oportunidade de nos vermos a nós mesmos como um outro nos vê. Um espelho é a oportunidade de nos tornarmos um estrangeiro a olhar-nos. Mas os espelhos não nos são todos iguais. Na nossa relação com um espelho, nós moldamo-lo, adaptamo-lo ao nosso gosto. A história do que a Rainha Má (madrasta da Branca-de-Neve) faz com o seu espelho não é senão uma representação disso mesmo. E quando isto acontece, aquela oportunidade de nos vermos com olhos estrangeiros morre, deixa de ser real: porque, mais ou menos inconscientemente, nós seleccionamos o que vemos no espelho, do mesmo modo que (ou precisamente quando) escolhemos como nos apresentamos diante dele. Nunca aparecemos nus diante de um espelho. Rectius: Mesmo quando aparecemos nus diante do espelho, ele devolve-nos vestidos (como acontece no conto "As Novas Roupas do Imperador", de Andersen). Oferecemos a nossa nudez, e, em troca, pedimos que ele nos vista. Mas somos nós mesmos que assim nos traímos. Porque espreitamos através de olhos estrangeiros, mas continuamos a ver com os nossos – como se apenas tivéssemos colocado uns óculos sem lentes. Como se vestíssemos a máscara de um estranho, continuando a espreitar por detrás dela com os nossos olhos.
Martha tornou-se para Sam um espelho desse género. Porque ela olha-o com olhos estrangeiros, mas ele não se vê a si mesmo através dos olhos dela. Ela é já um espelho demasiado familiar para ele. Por isso, indirectamente, podemos retirar uma recomendação final muito prática deste conto: devemos renovar os nossos espelhos periodicamente, de modo a evitar que eles se tornem demasiado familiares para nós. Porque só poderei verdadeiramente confiar num espelho que no lugar do meu reflexo me mostre um estranho.
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