E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 28 de julho de 2016

A ilusão dos espelhos

  No conto curto “El cojo contrariado” (Juan José Millás), o narrador quer ir ao hipermercado, mas não consegue arranjar lugar para estacionar e acaba por deixar o carro num lugar para deficientes. Há um guarda, porém, a observar, pelo que ele finge ser coxo, para evitar problemas. Mantém depois o fingimento e até compra uma bengala. Dá-se bem com o coxear, de tal modo que se sente mesmo melhor a fazê-lo. Descobre que é um verdadeiro coxo e que os pais sempre lhe haviam escondido essa realidade, por não agradar à sua mãe. A partir daí, passa a coxear no seu quotidiano e apenas finge não ser coxo em ocasiões em que a mãe lho pede. Uma delas é o casamento da sua prima, onde vem a encontrar o guarda do hipermercado. Uma vez que o guarda agora não o vê coxear, o narrador explica-lhe a situação; aquele, todavia, não parece acreditar na sua história e no dia seguinte não o deixa sequer estacionar no lugar para deficientes.

  Há uma ilusão associada aos espelhos: a de que o reflexo que neles encontramos é a imagem que lhes entregámos e que eles nos devolvem. Será realmente assim que o espelhamento funciona? Talvez a história deste coxo sugira o processo inverso.

  Como se tornou o narrador no coxo que sempre foi? Ele nunca o teria podido fazer sozinho. Nunca se teria lembrado de começar a coxear espontaneamente. Se começou a fazê-lo, foi por efeito do olhar de um terceiro: o guarda. O coxear é uma resposta ao olhar do guarda, uma resposta ao que esse olhar exigia do narrador.
  O narrador coxeia por resposta ao olhar de um terceiro – trata-se de um exemplo muito claro da força constitutiva do olhar do outro: ao recair sobre mim, esse olhar faz nascer em mim um ser que antes não existia. Parece assim que o coxo é, no fundo, uma espécie de ser-para-outrem do narrador, o ser que nele nasce por efeito do olhar do guarda. Segundo Sartre (L'être et le néant), é o surgimento do olhar do outro que faz nascer este modo de ser. Assim que o narrador se descobre observado, sente-se a si mesmo como objecto, como um qualquer objecto entre outros, sujeito ao olhar do terceiro. E nunca podemos recuperar esse nosso ser que o olhar do outro constitui em nós, o nosso ser-para-outrem, pois este, em rigor, pertence ao outro.
  Todavia, dá-se a seguir algo de extraordinário: o narrador passa a ser coxo. Rectius: ele passa a ter sido sempre coxo: o seu passado de coxo – as dores que sentia, o segredo dos pais... – só aparece depois de ele experimentar coxear para enganar o vigilante. O seu ser-coxo, o seu ser-deficiente, é obviamente uma adaptação ao que o olhar do outro lhe exigia. Mas ele não se limita a mostrar-se como sendo essa pessoa, a oferecer essa imagem ou a sentir-se visto desse modo. Em vez disso, ele passa efectivamente a ser essa pessoa. E desta maneira, ele sucede em identificar-se com o objecto em que o olhar do outro o transformou. Porque ele é agora a pessoa-que-esse-objecto-é. E assim o narrador consegue aquilo que, à partida, nos é impossível: apropria-se dessa pessoa que ele (agora) também é e, portanto, do seu ser-para-outrem. O narrador apropriou-se daquela imagem que apenas nascera para o terceiro, e fê-lo do único modo que isso poderia ser feito: fez sua a história dela; passou a ter sido sempre aquela pessoa.

  Como explicar esta tão surpreendente apropriação do meu ser-para-outrem?
  À partida, há um processo relativamente simples de descobrirmos como aparecemos para outrem: olharmo-nos ao espelho. O espelho, todavia, não nos exibe como objectos perante nós mesmos, pois ele nunca substitui verdadeiramente os olhos do outro. Eu não sinto vergonha diante do olhar que o espelho me devolve (pelo menos, não a mesma vergonha que sentirei diante do olhar de um terceiro).
  O que falta então ao espelho? Os olhos do outro. Mas esta ausência do objecto procurado pode ser afinal indício de que a nossa procura está mal guiada. Eis a inversão que sugere a história do coxo contrariado: em vez de procurar os olhos do outro no espelho, vou antes procurar o espelho nos olhos do outro. É isso que fez o narrador.
  No olhar do terceiro encontrou o narrador a pessoa – o coxo – que o guarda esperava dele. Supondo aí um espelho, o narrador tomou essa imagem como a sua, i. e., como um seu reflexo, e, desse modo, pôde identificar-se com ela. Ou seja, o narrador aceitou a pessoa que o outro lhe oferecia, tomando-a assim como a sua. E assim se consuma a inversão sugerida atrás, quando foi mencionada a ilusão dos espelhos: nem sempre é claro que o espelho nos devolva a imagem que nós lhe oferecemos no início. Pode em vez disso ocorrer que afinal somos nós a receber a imagem que o espelho começou por nos propor. É isso mesmo que acontece com o coxo contrariado.
  
  O narrador acaba, no entanto, por falhar a aceitação do vigilante. Pode parecer estranho, dado que ele, afinal, tornou-se precisamente aquilo que o outro lhe exigia que fosse. E até parece irónico o seu destino: conseguiu ter o carro estacionado no lugar para deficientes quando ainda não era coxo. Quando já o era verdadeiramente, o vigilante não o deixou estacionar.
  Talvez devamos tomar a sério aquilo que a conduta do vigilante parece sugerir. Quando o narrador fingiu ser coxo foi aceite. Já quando o era verdadeiramente, foi rejeitado. Não nos apressemos a julgar erróneo o comportamento do vigilante. Partamos do princípio de que, pelo contrário, ele agiu acertadamente. Que justificação poderia haver para o afirmar?
  Lembremos o modo como o narrador veio a tornar-se coxo: ele identificou-se com a imagem que o espelho encontrado nos olhos do outro lhe ofereceu. Ora, que identificação é essa que há entre nós e o nosso reflexo no espelho? O espelho oferece-nos o nosso outro: o outro que nós somos. O espelho oferece-nos o papel que representaremos perante o olhar de terceiros. A representação implica sempre um fingimento: para sermos verdadeiramente aquilo que o espelho exibe, temos, no fundo, de fingir sê-lo.
  Quando fingiu ser aquilo que o vigilante esperava dele, o narrador tomou a atitude correcta perante o reflexo encontrado no espelho dos olhos do outro. Fingindo ser o coxo que descobriu nos olhos do guarda, ele pôde sê-lo verdadeiramente e, por isso, foi aceite naquele momento. Já quando se apresentou verdadeiramente coxo perante o vigilante, aquele fingimento cessou e, por isso, o guarda não pôde mais aceitá-lo. Explicado de outro modo: ao apropriar-se da imagem que o espelho nos olhos do outro lhe oferecia, o narrador levou essa imagem consigo – para passar a sê-la verdadeiramente, sem fingimento –, e, assim, ela desapareceu do espelho onde nascera. Aquilo que o narrador era já tinha deixado de ser, portanto, aquilo que os olhos do vigilante lhe exigiam que fosse. Deste modo, se o narrador perdeu o lugar de estacionamento, deveu-se isso a um erro seu, não do guarda: porque foi ele quem deixou de fingir ser o coxo que era.

terça-feira, 19 de julho de 2016

A máscara e o sorriso - Joker e o louco do manuscrito

  

  O que é um louco? A loucura implica sempre algum tipo de desajustamento. O louco não se guia pelas regras seguidas pelos restantes jogadores. Diz-se correntemente de um louco que "não joga com o baralho todo", mas talvez fosse mais acertado dizer que joga com cartas diferentes. No teatro da vida, cada pessoa desempenha o seu papel em articulação com as personagens do seu quotidiano. O aparecimento do louco traz o inesperado, o inoportuno: as outras personagens não estão preparadas para responder ao que diz ou reagir ao que faz. Os papéis não foram pensados para uma interacção com este jogador, ele parece mesmo vir de outra peça, parece ter surgido aqui por engano. Ou rebeldia: o louco joga com uma carta especial, uma "carta selvagem", como se chama ao Joker em certos jogos. E a figura da DC Comics com esse nome surge precisamente (não por acaso) como paradigma da loucura.

  No livro Pickwick Papers (Charles Dickens), a dada altura, o sr. Pickwick lê um texto intitulado "A Madman's Manuscript". Trata-se da história, contada na primeira pessoa, de um auto-intitulado louco. Ora, durante boa parte do relato, o narrador, depois de aceitar a sua dita loucura, esconde-a dos seus conhecidos, sentindo uma estranha alegria com o segredo da mesma: “I knew I was mad, but they did not even suspect it. (...) And how I used to laugh for joy, when I was alone, and thought how well I kept my secret, and how quickly my kind friends would have fallen from me, if they had known the truth."
  Partindo da definição enciclopédica de loucura, Shoshana Felman ("Madness and Philosophy, or Literature's Reason") toma por base a ideia de que esta implica uma cegueira em relação a si mesma, traduzida numa "ilusão de razão": o louco acredita na racionalidade do que diz. Não é esse o caso, porém, do narrador daquele manuscrito – quer isso dizer que a sua loucura é falsa, ele é na verdade um homem são? Não parece ser essa a solução correcta, que poderá ser encontrada se atentarmos antes no seguinte: se o louco sofre de uma ilusão de razão, a ilusão da loucura aparece como a condição simétrica daquela. Pelo que o narrador do manuscrito não é bem um louco, mas sim o reflexo de um louco, é a imagem – simetricamente inversa – que o louco encontra reflectida no espelho.
  Este louco goza a alegria de guardar um segredo – o da sua loucura. Mas essa alegria só tem sentido no pressuposto de ele acreditar que os outros não escondem igualmente um psicopata por detrás das suas máscaras, i. e., que os outros são verdadeiramente (e apenas) quem dizem ser. Não podemos presumir que compreendemos por completo o seu contentamento, mas pelo menos isto é seguro: se ele suspeitasse que todos os outros têm o mesmo segredo, a sua alegria desapareceria. Porque é o segredo da sua loucura que o extasia, não o ser louco em si. E como a sua demência é secreta e é isto que o faz sorrir, o seu riso é também secreto – ele nunca o exibe, apenas o liberta quando não há olhos estranhos: “I went into the open fields where none could hear me, and laughed till the air resounded with my shouts!
  O riso do louco do manuscrito está escondido. Ele não o mostra, não quer revelar que está louco. Esta atitude é a inversa da do Joker. O sorriso do Joker é permanente: exibe-o sempre que surge em público. É, aliás, a única imagem que ele mostra. Por outro lado, o Joker identifica-se plenamente com a máscara que apresenta. Pelo que não há ninguém atrás do sorriso, ninguém para o fingir ou para se esconder atrás dele. Temos assim uma inversão plena de posições: enquanto o louco do manuscrito esconde o seu riso atrás de uma máscara, de modo que ninguém o descubra, o Joker usa como máscara o seu sorriso, exibindo-o perante toda a gente.
  O Joker e o louco do manuscrito são o público ideal um do outro. Este último acredita que os outros se identificam com as suas máscaras, não são mais do que aquilo que mostram. É nesse pressuposto que a sua alegria funciona, já que a sua loucura mora no seu segredo. É escondendo o riso do público que este louco mantém viva a sua loucura. Ora, o Joker é precisamente o espectador para quem actua o louco do manuscrito. Porque a loucura do Joker passa precisamente por se identificar com a sua máscara. O Joker não mora atrás do seu sorriso: é aqui mesmo que ele vive. Graças a essa identificação, é precisamente de um espectador assim que o louco do manuscrito se ri. Comparando este caso com o do Joker na versão apresentada no filme The Dark Knight (Christopher Nolan), a posição inverte-se: o Joker de Heath Ledger ri da máscara do seu público. Ele é apenas aquilo que mostra, enquanto o seu público se esconde atrás de máscaras. Exibindo a arrogância despudorada de se assumir como a máscara de si mesmo, ele rejeita a vergonha daqueles que não se identificam com as suas máscaras, e ousa sorrir na luz que ofusca os seus espectadores (aqueles que escondem o riso na escuridão da solidão).
  De certo modo, há uma lucidez que ilumina o caminho de ambos. O louco do manuscrito, consciente de que é louco, é afinal lúcido, porque cego: ele não vê a loucura que se esconde (ou exibe...) nas máscaras dos outros. É esta cegueira que confirma a sua lucidez, quando se afirma louco. Já o Joker conhece perfeitamente a duplicidade do seu público, a fraqueza de quem só vive por detrás de máscaras, de quem só consegue rir quando ninguém olha. Mas, por isso, mesmo, ele rejeita jogar esse jogo. O jogo da sua razão é outro. É demasiado lúcido para este. Tão lúcido que é louco: condenado (por si próprio) a viver afastado do baralho.

  Num diálogo com Protarco (Platão, Filebo), Sócrates explica o riso como reacção ao ridículo de uma ilusão: a da ignorância de quem forma uma imagem errada de si mesmo. Ridículo, segundo o Sócrates platónico, é aquele que se pensa mais rico, mais bonito ou mais sábio do que é na realidade. E quem ri é o outro, aquele que vê o ignorante e percebe o desfasamento entre a imagem que este percebe de si mesmo e aquilo que ele é na realidade. A esta luz, o riso do louco do manuscrito aparece eivado de ironia: ele não se ri dos outros por não haver coincidência entre o que mostram e o que são, mas sim por essa discordância se verificar em si mesmo: ele próprio não é aquilo que mostra.
  Note-se que no Filebo está implícita uma clara identificação entre a imagem que fazemos de nós mesmos e a que projectamos para os outros. Porque, se nos rimos da projecção de si próprio que o ignorante nos oferece, isso deve-se, como referido, a que essa imagem é aquela que ele tem de si, mas não é concordante com a que lhe atribuímos. O problema do ignorante é afinal um de cegueira: ele não consegue ver o seu reflexo no espelho. Porque a imagem que o espelho nos mostra é a do nosso outro, aquele que nasce no olhar que recai sobre nós, que descobre em nós uma imagem que nunca conseguimos recuperar, por ser acessível apenas a quem nos vê de fora. O único vislumbre que temos dessa imagem dá-se quando nos vemos ao espelho. O ignorante, porém, falha até esse vislumbre, pois forma uma imagem errada de si mesmo: ele não discerne correctamente o reflexo que o espelho lhe devolve.
  O riso do louco do manuscrito está afinal preenchido de lucidez: quando se vê ao espelho, vê perfeitamente o reflexo que este lhe oferece. Mas não comete o erro de se identificar com ele: sabe que essa imagem nunca será verdadeiramente sua. É talvez esta lucidez que torna o narrador do manuscrito no maior de todos os loucos. Chesterton defendia que um louco sofre de excesso de racionalismo (Othodoxy). É este o caso: ele é tão esclarecido que nunca cai na ilusão das pessoas mentalmente sãs: a de se confundirem com as suas máscaras.
  É também dessa confusão que se ri o Joker do filme de Nolan. Ou seja, ele não ri apenas daqueles que usam máscaras tentando enganar os outros, mas também (e talvez sobretudo) daqueles que com as suas máscaras se enganam a si mesmos, confundido-se com elas, numa atitude de má-fé. E ri-se desta confusão como ri um palhaço: imitando-a, reproduzindo-a caricaturalmente. O Joker é, de facto, uma caricatura, mas é uma caricatura do seu público – todos nós –, da nossa má-fé, da nossa atitude louca de nos tomarmos pelos papéis que representamos. Ele exibe o resultado dessa identificação realizada em pleno, dessa coincidência tomada a sério. Se, no filme, ele dá várias explicações diversas para a sua máscara (i. e., para as suas cicatrizes), é precisamente porque não há qualquer história sólida por detrás da sua imagem; não pode haver, visto que ele é apenas a sua máscara, não uma pessoa escondida atrás dela. Imitando exageradamente a nossa má-fé, o Joker ri-se da nossa cegueira e ridiculiza a nossa pretensão, o nosso fingimento.

  Chegados a este ponto, parece que somos obrigados a negar o que antes dissemos: o Joker e o louco do manuscrito não podem ser o público um do outro. São ambos demasiado lúcidos: este não pode rir do Joker, que vê através das máscaras. O Joker também não pode rir do narrador do manuscrito, pois não é ele o alvo da sua caricatura (ele é louco precisamente por ter consciência plena de que não é a sua máscara). Há um encontro impossível entre o riso de ambos. Mas talvez não nos devamos apressar a rejeitar a ideia de que eles actuam um diante do outro. Será porventura mais interessante aceitar a sugestão que parece resultar de tudo o que vimos: que o encontro impossível entre estes dois loucos sorridentes pode ser afinal o mesmo que se repete sempre que alguém encara o seu reflexo. Porque o espelho que os une é sempre também aquilo que os separa.

domingo, 10 de julho de 2016

O espelho em que posso confiar

  No conto "Round the Circle" (O. Henry), Sam Webber monta o seu cavalo e parte numa viagem para comprar ovelhas para o seu rancho. Antes de sair, menospreza Martha, a sua mulher, e o seu prazer pela leitura, dizendo que ela devia antes cuidar melhor das roupas que ele veste – respondendo assim aos comentários dela sobre ao seu mau arranjo. Sam vem a perder-se durante a viagem e, sozinho à noite, sente a falta do rancho, da mulher e do filho. Arrepende-se de todas as ocasiões em que desdenhou Martha e os seus afazeres, prometendo que daí em diante será um pai e marido muito mais atento e carinhoso. Mas depois de encontrar o caminho de volta lança mais um comentário depreciativo à mulher mal a vê.

  Conta Séneca que "[h]ouve uma vez um homem que se queixou a Sócrates de nunca ter tirado proveito das suas viagens. 'Não admira!' — respondeu o filósofo. 'Viajaste sempre na companhia de ti próprio!'" (Cartas a Lucílio, XVII-III. 104.7-8). Essa não é a viagem de Sam Webber. O conto termina com a ideia de que "Sam had traveled round the circle and was himself again." Porque afinal Sam viajou para longe de si mesmo. A casa que ele deixou não foi apenas o lugar que ele habita, mas também a pessoa que ele é. Sam foi ser outro para longe dali. Ao contrário daquele homem que Sócrates repreendeu, Sam abandonou-se a si próprio quando saiu de casa.
  É esta separação de si mesmo que permite a Sam ver-se com outros olhos – os olhos de um outro. A viagem de Sam é assim verdadeiramente extraordinária: é como se ele tivesse passado para o outro lado do espelho, como se se tivesse colocado no lugar do seu reflexo, e, ao olhar de volta para onde estava, se descobrisse a si mesmo ali ainda, no lugar original.
  Ao regressar ao seu lugar de origem, contudo, Sam não pode trazer consigo os olhos estrangeiros que utilizou para se ver a si mesmo quando se afastou de si próprio. Parece ser essa a sua tragédia. Mas há também uma outra, mais profunda: agora que está de volta, ele não sabe sequer que já não tem esses olhos. Já não se lembra deles. Porque só sabemos verdadeiramente que estamos a ver as coisas com outros olhos enquanto o fazemos. Sem nos colocarmos no lugar de um ponto de vista, não o podemos conhecer. Todo o ponto de vista que não ocupamos é um ponto cego para nós. Por isso, quando Sam torna a casa, quando volta a este lado do espelho, ele já não se vê com aqueles outros olhos; e já esqueceu o que viu com eles.
  Assim, a lição deste conto poderia ser a de que se é verdade que, separando-nos de nós mesmos, podemos ver-nos com os olhos de um outro, com todas as vantagens que daí podem decorrer, é também verdade que acabamos sempre por voltar a nós próprios e, nesse momento, estamos iguais ao que éramos no início. A armadilha do ponto de vista é afinal essa: não tanto a de que nunca podemos abandonar o nosso ponto de vista, o nosso lugar; mas sobretudo a de que, mesmo quando conseguimos abandoná-lo por um tempo, ao voltarmos a ele, é como se nunca o tivéssemos deixado. Por isso, no fim de contas, nunca o deixamos verdadeiramente. Porque uma viagem só é real se dela regressarmos estrangeiros. Se ao tornarmos ao lugar do nosso ponto de vista, porém, é tudo tão familiar como no início – então tudo se passa como se não tivéssemos chegado a partir.
  Talvez por isso precisemos dos olhos de um verdadeiro outro, i. e., de alguém que é sempre um outro para nós, que ocupa sempre o lugar do nosso ponto cego, o lugar onde os nossos olhos nunca estão e que, por isso, consegue a perspectiva que nós nunca poderemos conseguir: só esses nos podem mudar verdadeiramente.
  Se assim é, porque não conseguiram os olhos de Martha mudar Sam? Provavelmente porque Martha é já um outro demasiado próximo – tão próximo que deixou de ser um outro verdadeiro. Um outro deixa de o ser verdadeiramente quando se torna familiar. Assim, é natural que Sam tenha precisado de se afastar. E não apenas de se afastar, mas até mesmo de se perder, i. e., de sair de todo e qualquer lugar situado, de todo e qualquer lugar que ele pudesse arrumar. Quando sai de casa, ele passa a estar fora de tudo isso, está no estrangeiro da sua existência, pelo simples facto de não saber onde está. E teve de se afastar assim porque só deste modo poderia chegar a colocar os olhos de um outro.
  Os olhos de Martha já não lhe oferecem esse lugar estrangeiro. Porque embora ela veja Sam com olhos estrangeiros, ele não consegue ver-se assim através dos olhos dela. Martha é-lhe já demasiado familiar, a ponto de podermos dizer que ela é como um espelho para Sam. Porque perante um espelho, nós temos a oportunidade de nos vermos a nós mesmos como um outro nos vê. Um espelho é a oportunidade de nos tornarmos um estrangeiro a olhar-nos. Mas os espelhos não nos são todos iguais. Na nossa relação com um espelho, nós moldamo-lo, adaptamo-lo ao nosso gosto. A história do que a Rainha Má (madrasta da Branca-de-Neve) faz com o seu espelho não é senão uma representação disso mesmo. E quando isto acontece, aquela oportunidade de nos vermos com olhos estrangeiros morre, deixa de ser real: porque, mais ou menos inconscientemente, nós seleccionamos o que vemos no espelho, do mesmo modo que (ou precisamente quando) escolhemos como nos apresentamos diante dele. Nunca aparecemos nus diante de um espelho. Rectius: Mesmo quando aparecemos nus diante do espelho, ele devolve-nos vestidos (como acontece no conto "As Novas Roupas do Imperador", de Andersen). Oferecemos a nossa nudez, e, em troca, pedimos que ele nos vista. Mas somos nós mesmos que assim nos traímos. Porque espreitamos através de olhos estrangeiros, mas continuamos a ver com os nossos – como se apenas tivéssemos colocado uns óculos sem lentes. Como se vestíssemos a máscara de um estranho, continuando a espreitar por detrás dela com os nossos olhos.
  Martha tornou-se para Sam um espelho desse género. Porque ela olha-o com olhos estrangeiros, mas ele não se vê a si mesmo através dos olhos dela. Ela é já um espelho demasiado familiar para ele. Por isso, indirectamente, podemos retirar uma recomendação final muito prática deste conto: devemos renovar os nossos espelhos periodicamente, de modo a evitar que eles se tornem demasiado familiares para nós. Porque só poderei verdadeiramente confiar num espelho que no lugar do meu reflexo me mostre um estranho.