No conto curto “El cojo contrariado” (Juan José Millás), o narrador quer ir ao hipermercado, mas não consegue arranjar lugar para estacionar e acaba por deixar o carro num lugar para deficientes. Há um guarda, porém, a observar, pelo que ele finge ser coxo, para evitar problemas. Mantém depois o fingimento e até compra uma bengala. Dá-se bem com o coxear, de tal modo que se sente mesmo melhor a fazê-lo. Descobre que é um verdadeiro coxo e que os pais sempre lhe haviam escondido essa realidade, por não agradar à sua mãe. A partir daí, passa a coxear no seu quotidiano e apenas finge não ser coxo em ocasiões em que a mãe lho pede. Uma delas é o casamento da sua prima, onde vem a encontrar o guarda do hipermercado. Uma vez que o guarda agora não o vê coxear, o narrador explica-lhe a situação; aquele, todavia, não parece acreditar na sua história e no dia seguinte não o deixa sequer estacionar no lugar para deficientes.
Há uma ilusão associada aos espelhos: a de que o reflexo que neles encontramos é a imagem que lhes entregámos e que eles nos devolvem. Será realmente assim que o espelhamento funciona? Talvez a história deste coxo sugira o processo inverso.
Como se tornou o narrador no coxo que sempre foi? Ele nunca o teria podido fazer sozinho. Nunca se teria lembrado de começar a coxear espontaneamente. Se começou a fazê-lo, foi por efeito do olhar de um terceiro: o guarda. O coxear é uma resposta ao olhar do guarda, uma resposta ao que esse olhar exigia do narrador.
O narrador coxeia por resposta ao olhar de um terceiro – trata-se de um exemplo muito claro da força constitutiva do olhar do outro: ao recair sobre mim, esse olhar faz nascer em mim um ser que antes não existia. Parece assim que o coxo é, no fundo, uma espécie de ser-para-outrem do narrador, o ser que nele nasce por efeito do olhar do guarda. Segundo Sartre (L'être et le néant), é o surgimento do olhar do outro que faz nascer este modo de ser. Assim que o narrador se descobre observado, sente-se a si mesmo como objecto, como um qualquer objecto entre outros, sujeito ao olhar do terceiro. E nunca podemos recuperar esse nosso ser que o olhar do outro constitui em nós, o nosso ser-para-outrem, pois este, em rigor, pertence ao outro.
Todavia, dá-se a seguir algo de extraordinário: o narrador passa a ser coxo. Rectius: ele passa a ter sido sempre coxo: o seu passado de coxo – as dores que sentia, o segredo dos pais... – só aparece depois de ele experimentar coxear para enganar o vigilante. O seu ser-coxo, o seu ser-deficiente, é obviamente uma adaptação ao que o olhar do outro lhe exigia. Mas ele não se limita a mostrar-se como sendo essa pessoa, a oferecer essa imagem ou a sentir-se visto desse modo. Em vez disso, ele passa efectivamente a ser essa pessoa. E desta maneira, ele sucede em identificar-se com o objecto em que o olhar do outro o transformou. Porque ele é agora a pessoa-que-esse-objecto-é. E assim o narrador consegue aquilo que, à partida, nos é impossível: apropria-se dessa pessoa que ele (agora) também é e, portanto, do seu ser-para-outrem. O narrador apropriou-se daquela imagem que apenas nascera para o terceiro, e fê-lo do único modo que isso poderia ser feito: fez sua a história dela; passou a ter sido sempre aquela pessoa.
Como explicar esta tão surpreendente apropriação do meu ser-para-outrem?
À partida, há um processo relativamente simples de descobrirmos como aparecemos para outrem: olharmo-nos ao espelho. O espelho, todavia, não nos exibe como objectos perante nós mesmos, pois ele nunca substitui verdadeiramente os olhos do outro. Eu não sinto vergonha diante do olhar que o espelho me devolve (pelo menos, não a mesma vergonha que sentirei diante do olhar de um terceiro).
O que falta então ao espelho? Os olhos do outro. Mas esta ausência do objecto procurado pode ser afinal indício de que a nossa procura está mal guiada. Eis a inversão que sugere a história do coxo contrariado: em vez de procurar os olhos do outro no espelho, vou antes procurar o espelho nos olhos do outro. É isso que fez o narrador.
No olhar do terceiro encontrou o narrador a pessoa – o coxo – que o guarda esperava dele. Supondo aí um espelho, o narrador tomou essa imagem como a sua, i. e., como um seu reflexo, e, desse modo, pôde identificar-se com ela. Ou seja, o narrador aceitou a pessoa que o outro lhe oferecia, tomando-a assim como a sua. E assim se consuma a inversão sugerida atrás, quando foi mencionada a ilusão dos espelhos: nem sempre é claro que o espelho nos devolva a imagem que nós lhe oferecemos no início. Pode em vez disso ocorrer que afinal somos nós a receber a imagem que o espelho começou por nos propor. É isso mesmo que acontece com o coxo contrariado.
O narrador coxeia por resposta ao olhar de um terceiro – trata-se de um exemplo muito claro da força constitutiva do olhar do outro: ao recair sobre mim, esse olhar faz nascer em mim um ser que antes não existia. Parece assim que o coxo é, no fundo, uma espécie de ser-para-outrem do narrador, o ser que nele nasce por efeito do olhar do guarda. Segundo Sartre (L'être et le néant), é o surgimento do olhar do outro que faz nascer este modo de ser. Assim que o narrador se descobre observado, sente-se a si mesmo como objecto, como um qualquer objecto entre outros, sujeito ao olhar do terceiro. E nunca podemos recuperar esse nosso ser que o olhar do outro constitui em nós, o nosso ser-para-outrem, pois este, em rigor, pertence ao outro.
Todavia, dá-se a seguir algo de extraordinário: o narrador passa a ser coxo. Rectius: ele passa a ter sido sempre coxo: o seu passado de coxo – as dores que sentia, o segredo dos pais... – só aparece depois de ele experimentar coxear para enganar o vigilante. O seu ser-coxo, o seu ser-deficiente, é obviamente uma adaptação ao que o olhar do outro lhe exigia. Mas ele não se limita a mostrar-se como sendo essa pessoa, a oferecer essa imagem ou a sentir-se visto desse modo. Em vez disso, ele passa efectivamente a ser essa pessoa. E desta maneira, ele sucede em identificar-se com o objecto em que o olhar do outro o transformou. Porque ele é agora a pessoa-que-esse-objecto-é. E assim o narrador consegue aquilo que, à partida, nos é impossível: apropria-se dessa pessoa que ele (agora) também é e, portanto, do seu ser-para-outrem. O narrador apropriou-se daquela imagem que apenas nascera para o terceiro, e fê-lo do único modo que isso poderia ser feito: fez sua a história dela; passou a ter sido sempre aquela pessoa.
Como explicar esta tão surpreendente apropriação do meu ser-para-outrem?
À partida, há um processo relativamente simples de descobrirmos como aparecemos para outrem: olharmo-nos ao espelho. O espelho, todavia, não nos exibe como objectos perante nós mesmos, pois ele nunca substitui verdadeiramente os olhos do outro. Eu não sinto vergonha diante do olhar que o espelho me devolve (pelo menos, não a mesma vergonha que sentirei diante do olhar de um terceiro).
O que falta então ao espelho? Os olhos do outro. Mas esta ausência do objecto procurado pode ser afinal indício de que a nossa procura está mal guiada. Eis a inversão que sugere a história do coxo contrariado: em vez de procurar os olhos do outro no espelho, vou antes procurar o espelho nos olhos do outro. É isso que fez o narrador.
No olhar do terceiro encontrou o narrador a pessoa – o coxo – que o guarda esperava dele. Supondo aí um espelho, o narrador tomou essa imagem como a sua, i. e., como um seu reflexo, e, desse modo, pôde identificar-se com ela. Ou seja, o narrador aceitou a pessoa que o outro lhe oferecia, tomando-a assim como a sua. E assim se consuma a inversão sugerida atrás, quando foi mencionada a ilusão dos espelhos: nem sempre é claro que o espelho nos devolva a imagem que nós lhe oferecemos no início. Pode em vez disso ocorrer que afinal somos nós a receber a imagem que o espelho começou por nos propor. É isso mesmo que acontece com o coxo contrariado.
O narrador acaba, no entanto, por falhar a aceitação do vigilante. Pode parecer estranho, dado que ele, afinal, tornou-se precisamente aquilo que o outro lhe exigia que fosse. E até parece irónico o seu destino: conseguiu ter o carro estacionado no lugar para deficientes quando ainda não era coxo. Quando já o era verdadeiramente, o vigilante não o deixou estacionar.
Talvez devamos tomar a sério aquilo que a conduta do vigilante parece sugerir. Quando o narrador fingiu ser coxo foi aceite. Já quando o era verdadeiramente, foi rejeitado. Não nos apressemos a julgar erróneo o comportamento do vigilante. Partamos do princípio de que, pelo contrário, ele agiu acertadamente. Que justificação poderia haver para o afirmar?
Lembremos o modo como o narrador veio a tornar-se coxo: ele identificou-se com a imagem que o espelho encontrado nos olhos do outro lhe ofereceu. Ora, que identificação é essa que há entre nós e o nosso reflexo no espelho? O espelho oferece-nos o nosso outro: o outro que nós somos. O espelho oferece-nos o papel que representaremos perante o olhar de terceiros. A representação implica sempre um fingimento: para sermos verdadeiramente aquilo que o espelho exibe, temos, no fundo, de fingir sê-lo.
Quando fingiu ser aquilo que o vigilante esperava dele, o narrador tomou a atitude correcta perante o reflexo encontrado no espelho dos olhos do outro. Fingindo ser o coxo que descobriu nos olhos do guarda, ele pôde sê-lo verdadeiramente e, por isso, foi aceite naquele momento. Já quando se apresentou verdadeiramente coxo perante o vigilante, aquele fingimento cessou e, por isso, o guarda não pôde mais aceitá-lo. Explicado de outro modo: ao apropriar-se da imagem que o espelho nos olhos do outro lhe oferecia, o narrador levou essa imagem consigo – para passar a sê-la verdadeiramente, sem fingimento –, e, assim, ela desapareceu do espelho onde nascera. Aquilo que o narrador era já tinha deixado de ser, portanto, aquilo que os olhos do vigilante lhe exigiam que fosse. Deste modo, se o narrador perdeu o lugar de estacionamento, deveu-se isso a um erro seu, não do guarda: porque foi ele quem deixou de fingir ser o coxo que era.
Talvez devamos tomar a sério aquilo que a conduta do vigilante parece sugerir. Quando o narrador fingiu ser coxo foi aceite. Já quando o era verdadeiramente, foi rejeitado. Não nos apressemos a julgar erróneo o comportamento do vigilante. Partamos do princípio de que, pelo contrário, ele agiu acertadamente. Que justificação poderia haver para o afirmar?
Lembremos o modo como o narrador veio a tornar-se coxo: ele identificou-se com a imagem que o espelho encontrado nos olhos do outro lhe ofereceu. Ora, que identificação é essa que há entre nós e o nosso reflexo no espelho? O espelho oferece-nos o nosso outro: o outro que nós somos. O espelho oferece-nos o papel que representaremos perante o olhar de terceiros. A representação implica sempre um fingimento: para sermos verdadeiramente aquilo que o espelho exibe, temos, no fundo, de fingir sê-lo.
Quando fingiu ser aquilo que o vigilante esperava dele, o narrador tomou a atitude correcta perante o reflexo encontrado no espelho dos olhos do outro. Fingindo ser o coxo que descobriu nos olhos do guarda, ele pôde sê-lo verdadeiramente e, por isso, foi aceite naquele momento. Já quando se apresentou verdadeiramente coxo perante o vigilante, aquele fingimento cessou e, por isso, o guarda não pôde mais aceitá-lo. Explicado de outro modo: ao apropriar-se da imagem que o espelho nos olhos do outro lhe oferecia, o narrador levou essa imagem consigo – para passar a sê-la verdadeiramente, sem fingimento –, e, assim, ela desapareceu do espelho onde nascera. Aquilo que o narrador era já tinha deixado de ser, portanto, aquilo que os olhos do vigilante lhe exigiam que fosse. Deste modo, se o narrador perdeu o lugar de estacionamento, deveu-se isso a um erro seu, não do guarda: porque foi ele quem deixou de fingir ser o coxo que era.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.