E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 19 de julho de 2016

A máscara e o sorriso - Joker e o louco do manuscrito

  

  O que é um louco? A loucura implica sempre algum tipo de desajustamento. O louco não se guia pelas regras seguidas pelos restantes jogadores. Diz-se correntemente de um louco que "não joga com o baralho todo", mas talvez fosse mais acertado dizer que joga com cartas diferentes. No teatro da vida, cada pessoa desempenha o seu papel em articulação com as personagens do seu quotidiano. O aparecimento do louco traz o inesperado, o inoportuno: as outras personagens não estão preparadas para responder ao que diz ou reagir ao que faz. Os papéis não foram pensados para uma interacção com este jogador, ele parece mesmo vir de outra peça, parece ter surgido aqui por engano. Ou rebeldia: o louco joga com uma carta especial, uma "carta selvagem", como se chama ao Joker em certos jogos. E a figura da DC Comics com esse nome surge precisamente (não por acaso) como paradigma da loucura.

  No livro Pickwick Papers (Charles Dickens), a dada altura, o sr. Pickwick lê um texto intitulado "A Madman's Manuscript". Trata-se da história, contada na primeira pessoa, de um auto-intitulado louco. Ora, durante boa parte do relato, o narrador, depois de aceitar a sua dita loucura, esconde-a dos seus conhecidos, sentindo uma estranha alegria com o segredo da mesma: “I knew I was mad, but they did not even suspect it. (...) And how I used to laugh for joy, when I was alone, and thought how well I kept my secret, and how quickly my kind friends would have fallen from me, if they had known the truth."
  Partindo da definição enciclopédica de loucura, Shoshana Felman ("Madness and Philosophy, or Literature's Reason") toma por base a ideia de que esta implica uma cegueira em relação a si mesma, traduzida numa "ilusão de razão": o louco acredita na racionalidade do que diz. Não é esse o caso, porém, do narrador daquele manuscrito – quer isso dizer que a sua loucura é falsa, ele é na verdade um homem são? Não parece ser essa a solução correcta, que poderá ser encontrada se atentarmos antes no seguinte: se o louco sofre de uma ilusão de razão, a ilusão da loucura aparece como a condição simétrica daquela. Pelo que o narrador do manuscrito não é bem um louco, mas sim o reflexo de um louco, é a imagem – simetricamente inversa – que o louco encontra reflectida no espelho.
  Este louco goza a alegria de guardar um segredo – o da sua loucura. Mas essa alegria só tem sentido no pressuposto de ele acreditar que os outros não escondem igualmente um psicopata por detrás das suas máscaras, i. e., que os outros são verdadeiramente (e apenas) quem dizem ser. Não podemos presumir que compreendemos por completo o seu contentamento, mas pelo menos isto é seguro: se ele suspeitasse que todos os outros têm o mesmo segredo, a sua alegria desapareceria. Porque é o segredo da sua loucura que o extasia, não o ser louco em si. E como a sua demência é secreta e é isto que o faz sorrir, o seu riso é também secreto – ele nunca o exibe, apenas o liberta quando não há olhos estranhos: “I went into the open fields where none could hear me, and laughed till the air resounded with my shouts!
  O riso do louco do manuscrito está escondido. Ele não o mostra, não quer revelar que está louco. Esta atitude é a inversa da do Joker. O sorriso do Joker é permanente: exibe-o sempre que surge em público. É, aliás, a única imagem que ele mostra. Por outro lado, o Joker identifica-se plenamente com a máscara que apresenta. Pelo que não há ninguém atrás do sorriso, ninguém para o fingir ou para se esconder atrás dele. Temos assim uma inversão plena de posições: enquanto o louco do manuscrito esconde o seu riso atrás de uma máscara, de modo que ninguém o descubra, o Joker usa como máscara o seu sorriso, exibindo-o perante toda a gente.
  O Joker e o louco do manuscrito são o público ideal um do outro. Este último acredita que os outros se identificam com as suas máscaras, não são mais do que aquilo que mostram. É nesse pressuposto que a sua alegria funciona, já que a sua loucura mora no seu segredo. É escondendo o riso do público que este louco mantém viva a sua loucura. Ora, o Joker é precisamente o espectador para quem actua o louco do manuscrito. Porque a loucura do Joker passa precisamente por se identificar com a sua máscara. O Joker não mora atrás do seu sorriso: é aqui mesmo que ele vive. Graças a essa identificação, é precisamente de um espectador assim que o louco do manuscrito se ri. Comparando este caso com o do Joker na versão apresentada no filme The Dark Knight (Christopher Nolan), a posição inverte-se: o Joker de Heath Ledger ri da máscara do seu público. Ele é apenas aquilo que mostra, enquanto o seu público se esconde atrás de máscaras. Exibindo a arrogância despudorada de se assumir como a máscara de si mesmo, ele rejeita a vergonha daqueles que não se identificam com as suas máscaras, e ousa sorrir na luz que ofusca os seus espectadores (aqueles que escondem o riso na escuridão da solidão).
  De certo modo, há uma lucidez que ilumina o caminho de ambos. O louco do manuscrito, consciente de que é louco, é afinal lúcido, porque cego: ele não vê a loucura que se esconde (ou exibe...) nas máscaras dos outros. É esta cegueira que confirma a sua lucidez, quando se afirma louco. Já o Joker conhece perfeitamente a duplicidade do seu público, a fraqueza de quem só vive por detrás de máscaras, de quem só consegue rir quando ninguém olha. Mas, por isso, mesmo, ele rejeita jogar esse jogo. O jogo da sua razão é outro. É demasiado lúcido para este. Tão lúcido que é louco: condenado (por si próprio) a viver afastado do baralho.

  Num diálogo com Protarco (Platão, Filebo), Sócrates explica o riso como reacção ao ridículo de uma ilusão: a da ignorância de quem forma uma imagem errada de si mesmo. Ridículo, segundo o Sócrates platónico, é aquele que se pensa mais rico, mais bonito ou mais sábio do que é na realidade. E quem ri é o outro, aquele que vê o ignorante e percebe o desfasamento entre a imagem que este percebe de si mesmo e aquilo que ele é na realidade. A esta luz, o riso do louco do manuscrito aparece eivado de ironia: ele não se ri dos outros por não haver coincidência entre o que mostram e o que são, mas sim por essa discordância se verificar em si mesmo: ele próprio não é aquilo que mostra.
  Note-se que no Filebo está implícita uma clara identificação entre a imagem que fazemos de nós mesmos e a que projectamos para os outros. Porque, se nos rimos da projecção de si próprio que o ignorante nos oferece, isso deve-se, como referido, a que essa imagem é aquela que ele tem de si, mas não é concordante com a que lhe atribuímos. O problema do ignorante é afinal um de cegueira: ele não consegue ver o seu reflexo no espelho. Porque a imagem que o espelho nos mostra é a do nosso outro, aquele que nasce no olhar que recai sobre nós, que descobre em nós uma imagem que nunca conseguimos recuperar, por ser acessível apenas a quem nos vê de fora. O único vislumbre que temos dessa imagem dá-se quando nos vemos ao espelho. O ignorante, porém, falha até esse vislumbre, pois forma uma imagem errada de si mesmo: ele não discerne correctamente o reflexo que o espelho lhe devolve.
  O riso do louco do manuscrito está afinal preenchido de lucidez: quando se vê ao espelho, vê perfeitamente o reflexo que este lhe oferece. Mas não comete o erro de se identificar com ele: sabe que essa imagem nunca será verdadeiramente sua. É talvez esta lucidez que torna o narrador do manuscrito no maior de todos os loucos. Chesterton defendia que um louco sofre de excesso de racionalismo (Othodoxy). É este o caso: ele é tão esclarecido que nunca cai na ilusão das pessoas mentalmente sãs: a de se confundirem com as suas máscaras.
  É também dessa confusão que se ri o Joker do filme de Nolan. Ou seja, ele não ri apenas daqueles que usam máscaras tentando enganar os outros, mas também (e talvez sobretudo) daqueles que com as suas máscaras se enganam a si mesmos, confundido-se com elas, numa atitude de má-fé. E ri-se desta confusão como ri um palhaço: imitando-a, reproduzindo-a caricaturalmente. O Joker é, de facto, uma caricatura, mas é uma caricatura do seu público – todos nós –, da nossa má-fé, da nossa atitude louca de nos tomarmos pelos papéis que representamos. Ele exibe o resultado dessa identificação realizada em pleno, dessa coincidência tomada a sério. Se, no filme, ele dá várias explicações diversas para a sua máscara (i. e., para as suas cicatrizes), é precisamente porque não há qualquer história sólida por detrás da sua imagem; não pode haver, visto que ele é apenas a sua máscara, não uma pessoa escondida atrás dela. Imitando exageradamente a nossa má-fé, o Joker ri-se da nossa cegueira e ridiculiza a nossa pretensão, o nosso fingimento.

  Chegados a este ponto, parece que somos obrigados a negar o que antes dissemos: o Joker e o louco do manuscrito não podem ser o público um do outro. São ambos demasiado lúcidos: este não pode rir do Joker, que vê através das máscaras. O Joker também não pode rir do narrador do manuscrito, pois não é ele o alvo da sua caricatura (ele é louco precisamente por ter consciência plena de que não é a sua máscara). Há um encontro impossível entre o riso de ambos. Mas talvez não nos devamos apressar a rejeitar a ideia de que eles actuam um diante do outro. Será porventura mais interessante aceitar a sugestão que parece resultar de tudo o que vimos: que o encontro impossível entre estes dois loucos sorridentes pode ser afinal o mesmo que se repete sempre que alguém encara o seu reflexo. Porque o espelho que os une é sempre também aquilo que os separa.

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