E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O que é ser adulto?


  No filme Nerve (Henry Joost e Ariel Schulman), "Nerve" é um jogo online no qual as pessoas se inscrevem como jogadores ou pagam para ser espectadores. Os jogadores ganham dinheiro por cumprir os desafios colocados pelos espectadores, e as recompensas vão crescendo na medida da perigosidade do desafio. As acções dos jogadores são filmadas e vistas por qualquer interessado.

  Este é um exemplo de jogos do tipo “dare”, em que as pessoas (tipicamente crianças, adolescentes ou jovens) se desafiam mutuamente a fazer algo arriscado e idiota, ou até criminoso, sob pena de, não o fazendo, revelarem que têm medo, que são incapazes ou desistentes. Como deve alguém responder a um desafio deste género?
  É fácil para quem está de fora – tipicamente, o adulto (ou a rapariga, quando são rapazes a desafiarem-se) – criticar os jogadores por entrarem num jogo destes, e em especial o desafiado, por responder ao desafio e fazer mesmo a parvoíce que foi desafiado a fazer. E é fácil porque a pessoa de fora não é quem está a ser desafiado; não é ela, portanto, quem vai passar a ser tida por medrosa se não responder ao desafio. A posição do adulto, do julgador, está viciada à partida, porque a sua sentença só faz sentido a partir da sua posição de outsider, de não atingido. Deste modo, essa sentença nunca apelará ao desafiado, que, atingido pelo desafio, só o encara a partir de dentro do jogo.
  Aparentemente, há uma maneira de corrigir este problema: bastaria ao adulto perguntar-se a si mesmo: "Se o desafio fosse dirigido a mim, será que eu teria coragem de o cumprir?" A pergunta tem de ser feita deste modo porque só então o julgador se colocará verdadeiramente na posição do julgado. A única maneira de fazer isso é, com efeito, a de dirigir o desafio contra si próprio.
  Poderia pensar-se que este deslocamento está falseado, que esta posição em que o julgador se coloca é diversa daquela de quem ele julga, porque aqui é o próprio julgador que se desafia a si mesmo, enquanto o julgado, nos jogos "dare", é sempre desafiado por outras pessoas. Mas não é assim. Porque o desafio, mesmo quando é colocado por um terceiro, só tem força na medida em que o desafiado o interiorize – ou seja, na medida em que, de certa maneira, ele se desafie a si mesmo (só na medida em que ele faz seu o desafio que o outro lhe põe). Quando o desafiado não interioriza a provocação, ele não chega verdadeiramente a ser atingido por ela. Ora, isto vale também no sentido inverso: o desafio que alguém se impõe a si próprio ("Serei eu capaz de... ou sou um cobarde?") só faz sentido na medida em que, ao responder-lhe, ele está a querer responder aos olhos de um outro, mesmo que seja um outro interiorizado, um seu outro. Ou seja: por um lado, o desafio que me é colocado por outrem só me atinge se eu mesmo o dirijo a mim próprio. É assim que devemos ler a atitude de Vee (a protagonista de Nerve) ao inscrever-se como jogadora: quando aceita receber os desafios dos espectadores no seu telemóvel, ela traz para o seu espaço o outro do qual provêm os desafios. Ela interioriza, portanto, esse outro – condição essencial para que os desafios a possam atingir. Por outro lado, o desafio que eu coloco a mim próprio só chega a ser um desafio para mim porque provém do outro que em mim habita, do outro que eu mesmo fabrico para dirigir os desafios a mim mesmo. E por isto, em suma, podemos afirmar com segurança que a posição do adulto julgador – quando se coloca a si mesmo a pergunta – é de facto fundamentalmente semelhante à do desafiado que ele quer julgar.
  Qual é então a resposta que o adulto deve dar ao desafio que dirige agora a si mesmo?
  Se ele fizer a parvoíce em causa, estará a fazer exactamente aquilo que antes condenou, pelo que não parece ser essa a solução.
  Poderá ele então cumprir o desafio, mas às escondidas, de modo a poder dizer “não cedi às provocações de ninguém, fi-lo apenas para demonstrar que poderia fazê-lo se quisesse, mas não o fiz para ninguém; só teria cedido às provocações se o tivesse feito diante de outrem”? Esta resposta não é também solução, porque ele está ainda aqui a "demonstrar"; está ainda a responder ao desafio e a responder perante os olhos de outrem – mesmo que este outrem seja afinal o seu outro, o outro que ele interiorizou. Isto não muda fundamentalmente nada.
  Dir-se-á que resta a solução de não cumprir o desafio, de não responder. Será que isto resolve o problema? Para o sabermos, temos de lembrar que se o adulto interioriza verdadeiramente a pergunta, se realmente se põe na posição do desafiado, então "não responder ao desafio" não é uma verdadeira solução, visto que isto ainda é uma resposta ao desafio. Porque o desafio tem duas respostas possíveis: a primeira é a daquele que o cumpre (ou tenta cumprir), é a resposta do "corajoso", aquela que, na lógica do jogo, obtém a vitória; a segunda é a daquele que não tenta sequer cumprir o desafio, é a resposta do "medroso", aquela que, na lógica do jogo, traz a condenação (porque o desafiado "falhou"). Dado que, aos olhos de quem joga, estas são as únicas respostas possíveis, não cumprir o desafio é sempre falhar. E esta é ainda uma resposta – é precisamente a resposta que ninguém quer dar, por ninguém querer aparecer como cobarde aos olhos dos outros que jogam. Por isto, também esta via não traz a solução que desejamos.
  A análise desta última resposta permite perceber em que falham as censuras dos adultos que repreendem quem quer cumprir os desafios: a solução que dão ao conflito é, para os jogadores, uma resposta de falhanço e de medo – ou, pelo menos, é assim que é inevitavelmente vista pelo desafiado. Por isso, este nunca poderia sentir o seu apelo. A solução tem de ser outra.
  Não restando alternativas, temos de aventar a hipótese de que a solução que procuramos pode não estar tanto na resposta que damos, e sim no modo como lidamos com a pergunta. E tem de passar por desautorizar, desqualificar a própria pergunta, tirar-lhe o seu sentido. Como fazer isso?
  O adulto tem inevitavelmente de rejeitar a pergunta. E este é talvez um dos significados mais profundos do que verdadeiramente é ser adulto: escolher as perguntas que interiorizamos, que fazemos nossas. Porque afinal as perguntas que os outros nos colocam só se tornam as nossas perguntas na medida em que nós próprios as ponhamos na boca do nosso outro particular.
  Como referido há pouco, o desafio que os outros nos põem só se torna um verdadeiro desafio para nós na medida em que o interiorizamos. E o desafio que nos colocamos a nós mesmos também só é um verdadeiro desafio para nós na medida em que é proferido pelo nosso outro. Trata-se de dois diferentes pontos de partida para chegar à mesma conclusão. É isto que significa então ser adulto: saber que não é aos outros que o nosso outro pertence, mas a nós. Fazer com que as palavras do nosso outro não sejam as dos outros e sim as nossas. Assegurar, enfim, que o nosso outro é verdadeiramente nosso – não apenas no sentido em que somos o seu destinatário e actuamos para ele, mas também no de que atrás dele não se esconde afinal ninguém a não ser nós mesmos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Monstros de rostos humanos

  No conto "The Monster", de Stephen Crane, um homem preto, Henry Johnson, em geral bem tratado pela família que o emprega e a comunidade onde vive ("bem tratado", leia-se, no contexto de uma sociedade racista e preconceituosa), sofre um dia queimaduras muito graves ao salvar o filho do seu patrão de morrer num incêndio. O pai da criança, médico e agradecido, salva depois Johnson de perecer devido às queimaduras, mas este fica desfigurado e mentalmente perturbado. A partir de então, as pessoas, que tanto o elogiaram quando souberam do seu acto heróico e julgavam que tinha morrido, passam a tratá-lo com desconfiança, medo e repulsa. Afastam-se dele, bem como do médico e da sua família, que o acolheram. 

  Que aversão é esta que as pessoas sentem por Johnson? Louvaram-no quando leram sobre a sua coragem e o seu sacrifício, mas quando ele se apresenta perante eles não o suportam, querem-no longe – chegam mesmo a atirar-lhe pedras. Um herói só o é verdadeiramente a nossos olhos quando não o podemos ver. Aparecido diante de nós, o herói está condenado a ser um maldito.
  Há elementos concretos que parecem gerar a desconfiança das pessoas em relação a Henry. Não apenas a sua perturbação mental dificulta o contacto com ele como, sobretudo, a sua face desapareceu com as queimaduras: as pessoas reagem com imediato horror perante aquele homem sem rosto.
  Henry não pode ser aceite porque deixou de ser "normal", deixou de ser como os outros. Resta saber o que há na sua anormalidade que tanto incomoda os restantes.

  Analisando os sentimentos de nojo e repulsa, e seguindo autores como Becker, Rozin, Haidt ou McCauley, Martha Nussbaum (Hiding from Humanity) desenvolve a teoria de que tendemos a dirigir tais sentimentos a tudo aquilo que nos lembra a nossa animalidade e, com ela, a nossa mortalidade. Repugna-nos aquilo que nos recorda que não somos as criaturas invulneráveis que desejaríamos ser, que somos humanos, mas também animais – e, por isso, frágeis, carentes e mortais. Assim, elementos expelidos como fezes ou saliva causam-nos repugnância por nos lembrarem a decadência e podridão a que os nossos corpos estão também votados. Animais como leões ou elefantes impressionam-nos com imagens de força e virtuosidade, mas a muitos insectos associamos viscosidade ou fragilidade, e por isso são estes que normalmente nos repugnam.
  Estes sentimentos de aversão acabam muitas vezes por se desenvolver de tal modo que são dirigidos a grupos de pessoas. A concentração da repulsa em tais grupos resulta então no seu rebaixamento, bem como, muitas vezes, na sua segregação e, no limite, extermínio (assim aconteceu com os judeus, comparados na Alemanha Nazi a um verme parasita instalado no corpo da sociedade ariana; mas tende também a ser feito com as mulheres, pessoas de outras etnias, etc.). O rebaixamento destes grupos de pessoas serve frequentemente uma função relacionada com a explicação sobre os sentimentos básicos de repulsa resumida há pouco. Denegrindo estas pessoas, o grupo dominante eleva-se, como se o grupo segregado cumprisse o papel de marcar uma separação entre uma forma mais baixa de humanidade, próxima da animalidade (ou confundindo-se mesmo com esta), e a forma mais elevada, ou mais verdadeira, mais perfeita e mais pura (a do grupo dominante). A diferença marcada entre segregador e segregado serve então o propósito de construir e manter a ilusão de que aquele, por ser diferente deste, mais humano e menos animal, mais indestrutível e menos frágil, não está sujeito à mesma lei da mortalidade.

  No caso de "The Monster", essa repulsa está concentrada na figura de Johnson, que, depois do incêndio, parece tornar-se algo menos que humano. A aversão por ele lembra a que as pessoas muitas vezes sentem por indivíduos deficientes ou visivelmente incapacitados, o desconforto que as assalta na sua companhia. Explica-se por aquela repulsa sentida por alguém que nos lembra a nossa própria fragilidade. Assim, o afastamento que as pessoas querem ter em relação a Henry parece cumprir o papel de marcar a elevação dos "normais", de mostrar, por oposição, a pureza da humanidade destes face à animalidade daquele. O mesmo vale em relação ao médico e a sua família: o afastamento também se dirige contra eles precisamente pela sua proximidade à "criatura" – sendo este um efeito claro da lógica do medo de contágio que, também segundo Rozin e outros, opera frequentemente com os sentimentos de repulsa e nojo.
  A verdade, todavia, é que, pelo menos a julgar pelas suas acções, Johnson nunca justifica o epíteto de "monstro". Não apenas foi herói aquando do incêndio, como depois, mesmo que desajustado ou inconveniente, nunca se mostra verdadeiramente agressivo ou sequer perigoso. Por isso, também aqui, se a monstruosidade é construída como uma parede contra a qual a humanidade dos "normais" quer sustentar-se, é afinal por esse mesmo processo que esses "normais", negando a verdadeira humanidade daqueles que afastam, revelam a monstruosidade que trazem dentro de si. Monstros por dentro e humanos por fora, os "normais" oprimem os monstros por fora, mas humanos por dentro, talvez porque, afinal, estes lhes lembrem que um rosto é só uma máscara e que é só a uma máscara que a "normalidade" se resume.
  O heroísmo talvez não seja para os humanos. Uma pessoa não pode sobreviver a ser herói, sob pena de estar condenado. Talvez se possa retirar estas tristes lições de "The Monster", que nos mostra que a humanidade pode adorar heróis, mas não pode aceitar que eles vivam entre si: porque um verdadeiro herói é, a um tempo, mais do que humano e, por isso, um ser monstruoso para os humanos, e, a outro tempo, é demasiado humano para ser aceite por humanos que são apenas monstros. E esta sentença traça o destino trágico de Henry, um humano com rosto de monstro acossado por monstros com rostos humanos.

domingo, 4 de setembro de 2016

(Pequenas solidões) A poesia silenciosa

  No livro Das Parfum, de Patrick Süskind, Grenouille, o personagem central, comete vários assassínios, mas há algo de estranha e inegavelmente belo no primeiro de todos.
 Neste homicídio inaugural transpira uma espécie de poesia silenciosa: podemos captá-la apenas através das palavras que o descrevem ou vendo as imagens dos acontecimentos. Nunca poderíamos ouvi-la, porque ela não mora nas palavras, nem sequer nas imagens em si, mas naquilo que acontece, no que está exibido.
  Como em vários outros momentos do livro, a cena é marcada por uma espiritualidade evidente. O que Grenouille quer da jovem que encontra sentada no beco é o seu perfume, não o seu sexo; não quer o seu corpo, mas o seu espírito; não quer comê-la, quer respirá-la. O que não serve para duvidar de que este é realmente o seu modo de ter sexo. De facto, podemos dizer que ele possui a jovem, e talvez a possua mais verdadeiramente do que qualquer outro homem possuiu alguma vez uma mulher, visto que Grenouille suga-lhe a essência, apodera-se do seu perfume, do seu espírito, da sua verdade, e passa a trazê-los dentro de si. Possui-a porque a toma para si, fá-la sua.
  A própria cena tem, de todo o modo, a sua poesia: a jovem está de costas distraída em inocência, enquanto ele se aproxima feito pura atracção, somente desejo de possuir. Ele é apreciador único do que de único tem aquela jovem para oferecer, pois é perscrutador do seu espírito. O corpo dela não é nada para ele e ela não pode esconder-lhe seja o que for, muito menos a si mesma. A arte de seduzir é a de saber esconder. A mulher que apenas mostra faz-se objecto de pornografia; a que também esconde joga com erotismo. E no entanto esta moça não pode esconder nada de Grenouille, porque o seu perfume já revelou a este a verdade secreta que nela mora. É essa a pureza do desejo de Grenouille: diferentemente do desejo perverso do comum pretendente, que quer espreitar o que a moça esconde, que procura o que não consegue ver, ansiando pelo desconhecido, Grenouille está atraído precisamente por aquilo que já descortinou, aquilo que já conhece. O seu desejo não chega sequer a prometer fidelidade: ele condena-se a si mesmo a ser fiel logo que surge, pois nasce para o que já viu, não precisa de espreitar por nenhuma cortina – a desilusão e a traição não são nunca hipótese para ele.
  Ela é só inocência. Toda a aproximação do seu assassino se dá por trás, sem que ela perceba a sua existência. A acção da jovem é uma mera exibição passiva. Ele é todo aproximação, desejo preenchido em absoluto pelo que vê (i. e., pelo que cheira).
  Grenouille aproxima-se sem barulho ou cheiro porque é um demónio. Um ser que surge sem som ou perfume, cuja presença nos é anunciada com calafrios, como aqui sucede. Ela então vira-se, mas não tem tempo de dizer nada, nem poderiam existir palavras nesta cena. Qualquer palavra a destruiria, ao gesto que aqui se produz. Tudo é evidente e tudo é essência, ela apenas inocência, medo, beleza passiva, perfume livre e sem defesas; ele apenas um vazio andante vampiresco, desejoso, faminto e assassino. Qualquer palavra aqui destruiria a cena porque qualquer palavra de um deles seria redutora, limitaria o espaço do que se quisesse expressar, deixaria sempre algo de fora. Nenhuma palavra poderia transmitir tudo, como o fazem as imagens e o que nelas podemos ler. 
  Grenouille mata-a em silêncio, aperta-lhe o pescoço com as mãos, mas isto poderia ser um abraço. De facto, ele mata-a sugando-lhe o espírito; de certa forma, ele não a mata (da sua própria perspectiva), antes a traz para dentro de si, a essência dela continua a viver dentro dele. Como nos filmes de Hitchcock, também aqui percebemos que se o amor pode facilmente tornar-se agressivo, violento, também o assassinato pode ser um acto de amor (ou uma violação).
  Finalmente, ninguém como Grenouille sabe olhar para um corpo fisicamente perfeito e dizer que ele nada tem de belo ou sequer interessante, porque ninguém como ele sabe dizer que lhe falta o espírito. Sem o perfume que o habitava, o corpo da jovem, belo como há uns instantes, quando ainda tinha vida, é agora um mero cadáver.