E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Monstros de rostos humanos

  No conto "The Monster", de Stephen Crane, um homem preto, Henry Johnson, em geral bem tratado pela família que o emprega e a comunidade onde vive ("bem tratado", leia-se, no contexto de uma sociedade racista e preconceituosa), sofre um dia queimaduras muito graves ao salvar o filho do seu patrão de morrer num incêndio. O pai da criança, médico e agradecido, salva depois Johnson de perecer devido às queimaduras, mas este fica desfigurado e mentalmente perturbado. A partir de então, as pessoas, que tanto o elogiaram quando souberam do seu acto heróico e julgavam que tinha morrido, passam a tratá-lo com desconfiança, medo e repulsa. Afastam-se dele, bem como do médico e da sua família, que o acolheram. 

  Que aversão é esta que as pessoas sentem por Johnson? Louvaram-no quando leram sobre a sua coragem e o seu sacrifício, mas quando ele se apresenta perante eles não o suportam, querem-no longe – chegam mesmo a atirar-lhe pedras. Um herói só o é verdadeiramente a nossos olhos quando não o podemos ver. Aparecido diante de nós, o herói está condenado a ser um maldito.
  Há elementos concretos que parecem gerar a desconfiança das pessoas em relação a Henry. Não apenas a sua perturbação mental dificulta o contacto com ele como, sobretudo, a sua face desapareceu com as queimaduras: as pessoas reagem com imediato horror perante aquele homem sem rosto.
  Henry não pode ser aceite porque deixou de ser "normal", deixou de ser como os outros. Resta saber o que há na sua anormalidade que tanto incomoda os restantes.

  Analisando os sentimentos de nojo e repulsa, e seguindo autores como Becker, Rozin, Haidt ou McCauley, Martha Nussbaum (Hiding from Humanity) desenvolve a teoria de que tendemos a dirigir tais sentimentos a tudo aquilo que nos lembra a nossa animalidade e, com ela, a nossa mortalidade. Repugna-nos aquilo que nos recorda que não somos as criaturas invulneráveis que desejaríamos ser, que somos humanos, mas também animais – e, por isso, frágeis, carentes e mortais. Assim, elementos expelidos como fezes ou saliva causam-nos repugnância por nos lembrarem a decadência e podridão a que os nossos corpos estão também votados. Animais como leões ou elefantes impressionam-nos com imagens de força e virtuosidade, mas a muitos insectos associamos viscosidade ou fragilidade, e por isso são estes que normalmente nos repugnam.
  Estes sentimentos de aversão acabam muitas vezes por se desenvolver de tal modo que são dirigidos a grupos de pessoas. A concentração da repulsa em tais grupos resulta então no seu rebaixamento, bem como, muitas vezes, na sua segregação e, no limite, extermínio (assim aconteceu com os judeus, comparados na Alemanha Nazi a um verme parasita instalado no corpo da sociedade ariana; mas tende também a ser feito com as mulheres, pessoas de outras etnias, etc.). O rebaixamento destes grupos de pessoas serve frequentemente uma função relacionada com a explicação sobre os sentimentos básicos de repulsa resumida há pouco. Denegrindo estas pessoas, o grupo dominante eleva-se, como se o grupo segregado cumprisse o papel de marcar uma separação entre uma forma mais baixa de humanidade, próxima da animalidade (ou confundindo-se mesmo com esta), e a forma mais elevada, ou mais verdadeira, mais perfeita e mais pura (a do grupo dominante). A diferença marcada entre segregador e segregado serve então o propósito de construir e manter a ilusão de que aquele, por ser diferente deste, mais humano e menos animal, mais indestrutível e menos frágil, não está sujeito à mesma lei da mortalidade.

  No caso de "The Monster", essa repulsa está concentrada na figura de Johnson, que, depois do incêndio, parece tornar-se algo menos que humano. A aversão por ele lembra a que as pessoas muitas vezes sentem por indivíduos deficientes ou visivelmente incapacitados, o desconforto que as assalta na sua companhia. Explica-se por aquela repulsa sentida por alguém que nos lembra a nossa própria fragilidade. Assim, o afastamento que as pessoas querem ter em relação a Henry parece cumprir o papel de marcar a elevação dos "normais", de mostrar, por oposição, a pureza da humanidade destes face à animalidade daquele. O mesmo vale em relação ao médico e a sua família: o afastamento também se dirige contra eles precisamente pela sua proximidade à "criatura" – sendo este um efeito claro da lógica do medo de contágio que, também segundo Rozin e outros, opera frequentemente com os sentimentos de repulsa e nojo.
  A verdade, todavia, é que, pelo menos a julgar pelas suas acções, Johnson nunca justifica o epíteto de "monstro". Não apenas foi herói aquando do incêndio, como depois, mesmo que desajustado ou inconveniente, nunca se mostra verdadeiramente agressivo ou sequer perigoso. Por isso, também aqui, se a monstruosidade é construída como uma parede contra a qual a humanidade dos "normais" quer sustentar-se, é afinal por esse mesmo processo que esses "normais", negando a verdadeira humanidade daqueles que afastam, revelam a monstruosidade que trazem dentro de si. Monstros por dentro e humanos por fora, os "normais" oprimem os monstros por fora, mas humanos por dentro, talvez porque, afinal, estes lhes lembrem que um rosto é só uma máscara e que é só a uma máscara que a "normalidade" se resume.
  O heroísmo talvez não seja para os humanos. Uma pessoa não pode sobreviver a ser herói, sob pena de estar condenado. Talvez se possa retirar estas tristes lições de "The Monster", que nos mostra que a humanidade pode adorar heróis, mas não pode aceitar que eles vivam entre si: porque um verdadeiro herói é, a um tempo, mais do que humano e, por isso, um ser monstruoso para os humanos, e, a outro tempo, é demasiado humano para ser aceite por humanos que são apenas monstros. E esta sentença traça o destino trágico de Henry, um humano com rosto de monstro acossado por monstros com rostos humanos.

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