E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 4 de setembro de 2016

(Pequenas solidões) A poesia silenciosa

  No livro Das Parfum, de Patrick Süskind, Grenouille, o personagem central, comete vários assassínios, mas há algo de estranha e inegavelmente belo no primeiro de todos.
 Neste homicídio inaugural transpira uma espécie de poesia silenciosa: podemos captá-la apenas através das palavras que o descrevem ou vendo as imagens dos acontecimentos. Nunca poderíamos ouvi-la, porque ela não mora nas palavras, nem sequer nas imagens em si, mas naquilo que acontece, no que está exibido.
  Como em vários outros momentos do livro, a cena é marcada por uma espiritualidade evidente. O que Grenouille quer da jovem que encontra sentada no beco é o seu perfume, não o seu sexo; não quer o seu corpo, mas o seu espírito; não quer comê-la, quer respirá-la. O que não serve para duvidar de que este é realmente o seu modo de ter sexo. De facto, podemos dizer que ele possui a jovem, e talvez a possua mais verdadeiramente do que qualquer outro homem possuiu alguma vez uma mulher, visto que Grenouille suga-lhe a essência, apodera-se do seu perfume, do seu espírito, da sua verdade, e passa a trazê-los dentro de si. Possui-a porque a toma para si, fá-la sua.
  A própria cena tem, de todo o modo, a sua poesia: a jovem está de costas distraída em inocência, enquanto ele se aproxima feito pura atracção, somente desejo de possuir. Ele é apreciador único do que de único tem aquela jovem para oferecer, pois é perscrutador do seu espírito. O corpo dela não é nada para ele e ela não pode esconder-lhe seja o que for, muito menos a si mesma. A arte de seduzir é a de saber esconder. A mulher que apenas mostra faz-se objecto de pornografia; a que também esconde joga com erotismo. E no entanto esta moça não pode esconder nada de Grenouille, porque o seu perfume já revelou a este a verdade secreta que nela mora. É essa a pureza do desejo de Grenouille: diferentemente do desejo perverso do comum pretendente, que quer espreitar o que a moça esconde, que procura o que não consegue ver, ansiando pelo desconhecido, Grenouille está atraído precisamente por aquilo que já descortinou, aquilo que já conhece. O seu desejo não chega sequer a prometer fidelidade: ele condena-se a si mesmo a ser fiel logo que surge, pois nasce para o que já viu, não precisa de espreitar por nenhuma cortina – a desilusão e a traição não são nunca hipótese para ele.
  Ela é só inocência. Toda a aproximação do seu assassino se dá por trás, sem que ela perceba a sua existência. A acção da jovem é uma mera exibição passiva. Ele é todo aproximação, desejo preenchido em absoluto pelo que vê (i. e., pelo que cheira).
  Grenouille aproxima-se sem barulho ou cheiro porque é um demónio. Um ser que surge sem som ou perfume, cuja presença nos é anunciada com calafrios, como aqui sucede. Ela então vira-se, mas não tem tempo de dizer nada, nem poderiam existir palavras nesta cena. Qualquer palavra a destruiria, ao gesto que aqui se produz. Tudo é evidente e tudo é essência, ela apenas inocência, medo, beleza passiva, perfume livre e sem defesas; ele apenas um vazio andante vampiresco, desejoso, faminto e assassino. Qualquer palavra aqui destruiria a cena porque qualquer palavra de um deles seria redutora, limitaria o espaço do que se quisesse expressar, deixaria sempre algo de fora. Nenhuma palavra poderia transmitir tudo, como o fazem as imagens e o que nelas podemos ler. 
  Grenouille mata-a em silêncio, aperta-lhe o pescoço com as mãos, mas isto poderia ser um abraço. De facto, ele mata-a sugando-lhe o espírito; de certa forma, ele não a mata (da sua própria perspectiva), antes a traz para dentro de si, a essência dela continua a viver dentro dele. Como nos filmes de Hitchcock, também aqui percebemos que se o amor pode facilmente tornar-se agressivo, violento, também o assassinato pode ser um acto de amor (ou uma violação).
  Finalmente, ninguém como Grenouille sabe olhar para um corpo fisicamente perfeito e dizer que ele nada tem de belo ou sequer interessante, porque ninguém como ele sabe dizer que lhe falta o espírito. Sem o perfume que o habitava, o corpo da jovem, belo como há uns instantes, quando ainda tinha vida, é agora um mero cadáver.

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