No filme Nerve (Henry Joost e Ariel Schulman), "Nerve" é um jogo online no qual as pessoas se inscrevem como jogadores ou pagam para ser espectadores. Os jogadores ganham dinheiro por cumprir os desafios colocados pelos espectadores, e as recompensas vão crescendo na medida da perigosidade do desafio. As acções dos jogadores são filmadas e vistas por qualquer interessado.
Este é um exemplo de jogos do tipo “dare”, em que as pessoas (tipicamente crianças, adolescentes ou jovens) se desafiam mutuamente a fazer algo arriscado e idiota, ou até criminoso, sob pena de, não o fazendo, revelarem que têm medo, que são incapazes ou desistentes. Como deve alguém responder a um desafio deste género?
É fácil para quem está de fora – tipicamente, o adulto (ou a rapariga, quando são rapazes a desafiarem-se) – criticar os jogadores por entrarem num jogo destes, e em especial o desafiado, por responder ao desafio e fazer mesmo a parvoíce que foi desafiado a fazer. E é fácil porque a pessoa de fora não é quem está a ser desafiado; não é ela, portanto, quem vai passar a ser tida por medrosa se não responder ao desafio. A posição do adulto, do julgador, está viciada à partida, porque a sua sentença só faz sentido a partir da sua posição de outsider, de não atingido. Deste modo, essa sentença nunca apelará ao desafiado, que, atingido pelo desafio, só o encara a partir de dentro do jogo.
Aparentemente, há uma maneira de corrigir este problema: bastaria ao adulto perguntar-se a si mesmo: "Se o desafio fosse dirigido a mim, será que eu teria coragem de o cumprir?" A pergunta tem de ser feita deste modo porque só então o julgador se colocará verdadeiramente na posição do julgado. A única maneira de fazer isso é, com efeito, a de dirigir o desafio contra si próprio.
Poderia pensar-se que este deslocamento está falseado, que esta posição em que o julgador se coloca é diversa daquela de quem ele julga, porque aqui é o próprio julgador que se desafia a si mesmo, enquanto o julgado, nos jogos "dare", é sempre desafiado por outras pessoas. Mas não é assim. Porque o desafio, mesmo quando é colocado por um terceiro, só tem força na medida em que o desafiado o interiorize – ou seja, na medida em que, de certa maneira, ele se desafie a si mesmo (só na medida em que ele faz seu o desafio que o outro lhe põe). Quando o desafiado não interioriza a provocação, ele não chega verdadeiramente a ser atingido por ela. Ora, isto vale também no sentido inverso: o desafio que alguém se impõe a si próprio ("Serei eu capaz de... ou sou um cobarde?") só faz sentido na medida em que, ao responder-lhe, ele está a querer responder aos olhos de um outro, mesmo que seja um outro interiorizado, um seu outro. Ou seja: por um lado, o desafio que me é colocado por outrem só me atinge se eu mesmo o dirijo a mim próprio. É assim que devemos ler a atitude de Vee (a protagonista de Nerve) ao inscrever-se como jogadora: quando aceita receber os desafios dos espectadores no seu telemóvel, ela traz para o seu espaço o outro do qual provêm os desafios. Ela interioriza, portanto, esse outro – condição essencial para que os desafios a possam atingir. Por outro lado, o desafio que eu coloco a mim próprio só chega a ser um desafio para mim porque provém do outro que em mim habita, do outro que eu mesmo fabrico para dirigir os desafios a mim mesmo. E por isto, em suma, podemos afirmar com segurança que a posição do adulto julgador – quando se coloca a si mesmo a pergunta – é de facto fundamentalmente semelhante à do desafiado que ele quer julgar.
Qual é então a resposta que o adulto deve dar ao desafio que dirige agora a si mesmo?
Se ele fizer a parvoíce em causa, estará a fazer exactamente aquilo que antes condenou, pelo que não parece ser essa a solução.
Poderá ele então cumprir o desafio, mas às escondidas, de modo a poder dizer “não cedi às provocações de ninguém, fi-lo apenas para demonstrar que poderia fazê-lo se quisesse, mas não o fiz para ninguém; só teria cedido às provocações se o tivesse feito diante de outrem”? Esta resposta não é também solução, porque ele está ainda aqui a "demonstrar"; está ainda a responder ao desafio e a responder perante os olhos de outrem – mesmo que este outrem seja afinal o seu outro, o outro que ele interiorizou. Isto não muda fundamentalmente nada.
Dir-se-á que resta a solução de não cumprir o desafio, de não responder. Será que isto resolve o problema? Para o sabermos, temos de lembrar que se o adulto interioriza verdadeiramente a pergunta, se realmente se põe na posição do desafiado, então "não responder ao desafio" não é uma verdadeira solução, visto que isto ainda é uma resposta ao desafio. Porque o desafio tem duas respostas possíveis: a primeira é a daquele que o cumpre (ou tenta cumprir), é a resposta do "corajoso", aquela que, na lógica do jogo, obtém a vitória; a segunda é a daquele que não tenta sequer cumprir o desafio, é a resposta do "medroso", aquela que, na lógica do jogo, traz a condenação (porque o desafiado "falhou"). Dado que, aos olhos de quem joga, estas são as únicas respostas possíveis, não cumprir o desafio é sempre falhar. E esta é ainda uma resposta – é precisamente a resposta que ninguém quer dar, por ninguém querer aparecer como cobarde aos olhos dos outros que jogam. Por isto, também esta via não traz a solução que desejamos.
A análise desta última resposta permite perceber em que falham as censuras dos adultos que repreendem quem quer cumprir os desafios: a solução que dão ao conflito é, para os jogadores, uma resposta de falhanço e de medo – ou, pelo menos, é assim que é inevitavelmente vista pelo desafiado. Por isso, este nunca poderia sentir o seu apelo. A solução tem de ser outra.
Não restando alternativas, temos de aventar a hipótese de que a solução que procuramos pode não estar tanto na resposta que damos, e sim no modo como lidamos com a pergunta. E tem de passar por desautorizar, desqualificar a própria pergunta, tirar-lhe o seu sentido. Como fazer isso?
O adulto tem inevitavelmente de rejeitar a pergunta. E este é talvez um dos significados mais profundos do que verdadeiramente é ser adulto: escolher as perguntas que interiorizamos, que fazemos nossas. Porque afinal as perguntas que os outros nos colocam só se tornam as nossas perguntas na medida em que nós próprios as ponhamos na boca do nosso outro particular.
Como referido há pouco, o desafio que os outros nos põem só se torna um verdadeiro desafio para nós na medida em que o interiorizamos. E o desafio que nos colocamos a nós mesmos também só é um verdadeiro desafio para nós na medida em que é proferido pelo nosso outro. Trata-se de dois diferentes pontos de partida para chegar à mesma conclusão. É isto que significa então ser adulto: saber que não é aos outros que o nosso outro pertence, mas a nós. Fazer com que as palavras do nosso outro não sejam as dos outros e sim as nossas. Assegurar, enfim, que o nosso outro é verdadeiramente nosso – não apenas no sentido em que somos o seu destinatário e actuamos para ele, mas também no de que atrás dele não se esconde afinal ninguém a não ser nós mesmos.
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