No capítulo 29 do livro Lolita (Vladimir Nabokov), quando Humbert Humbert finalmente reencontra Lolita, anos depois de ela ter desaparecido, esta tem já 17 anos: não é já a ninfita que ele conhecera, é praticamente uma mulher, envelheceu e engravidou. Tendo perdido a graça de menina que ele apreciava, ela é agora só um “eco de folha morta” da Lolita anterior. Todavia, ele ainda a ama:
“[A]nd there she was with her ruined looks and her adult, rope-veined narrow hands and her goose-flesh white arms, and her shallow ears, and her unkempt armpits, there she was (my Lolita!), hopelessly worn at seventeen, with that baby (...) and I looked and looked at her, and knew as clearly as I know I am to die, that I loved her more than anything I had ever seen or imagined on earth, or hoped for anywhere else. She was only the faint violet whiff and dead leaf echo of the nymphet I had rolled myself upon with such cries in the past”.
Quem ou o que ama Humbert Humbert? Lolita já não é Lolita, já não é quem ele amava. Ainda que ele note os pormenores que se mantêm e os realce como se fosse isso o que importa verdadeiramente (“but still gray-eyed, still sooty-lashed, still auburn and almond, still Carmencita, still mine"), fica fácil perceber que se trata de factores que, em si, não têm verdadeiramente significado. E talvez por isso mesmo – porque são exibidos como provas decisivas, como elementos determinantes – eles signifiquem tanto.
Há algo de estranho e fantástico neste facto de que Humbert ainda a ama agora que ela já não é nada do que ele amava nela. Lolita mudou realmente: já não é menina. Mas ele ama-a da mesma maneira, ela dói-lhe da mesma maneira. Poderíamos aventar a hipótese fácil de que aquela continua a ser ela, ele ama afinal a pessoa que ela é, não o seu físico. Só que mesmo o seu modo de ser mudou – porventura não radicalmente, talvez em perfeita coerência com o que é o desenvolvimento emocional de uma pessoa naquelas circunstâncias, mas ainda assim mudou, já não é uma lolita. E agora que ela já não é Lolita, ele ama-a ainda porque, afinal, ela continua a ser a sua Lolita.
Este amor de Humbert é, no fim de contas, a única coisa que garante a identidade desta Lolita com a menina que ele conheceu. Tudo nesta mulher é diferente da menina, mas elas são a mesma pessoa: a pessoa que Humbert ama. Porque este amor não mudou – e só nesta medida –, ela também não mudou. É fascinante este estranho serviço que ele lhe presta, oferecendo-lhe um sustentáculo de identidade, mantendo-a a mesma na mudança. É por aqui, aliás, que pode surgir a prenda fundamental que ele lhe oferece: a da eternidade (“[O]ne wanted H. H. to exist at least a couple of months longer, so as to have him make you live in the minds of later generations. (...) And this is the only immortality you and I may share, my Lolita”).
É curioso lembrar o que alguns críticos apontaram: que nunca conhecemos a Dolores real; vemos somente, pelos olhos de Humbert Humbert, Lolita. Nunca nos é apresentada a menina, mas apenas a ninfita por quem Humbert se apaixonou. Ora, a mulher que Humbert encontra grávida é precisamente a mulher real, é uma mulher, aliás, cheia de realidade, grávida de realidade. Ela é o mais real que se pode ser, no sentido mais vulgar da palavra. O amor dele, porém, mantém-se, os sentimentos continuam intensos e toda aquela vulgaridade adquire um significado especial apenas porque pertence a ela. Se Humbert ama Dolores ou nem sequer a conhece, está aqui a prova decisiva – talvez de ambos em simultâneo. Já pouco ou nada de Lolita habita esta mulher. Resta apenas Dolores. Nos olhos ou no cabelo moram aqueles pormenores que ele ainda reconhece, que ele usa para explicar como pode ainda gostar dela, quando é tão óbvio que eles nada explicam. A vulgaridade desta mulher só pode ser tão especial, tão significativa, porque ele gosta dela. E do que ele gosta nela é da sua vulgaridade – agora que desapareceu tudo o que era especial nela tornando-a aquilo de que ele gostava –, ou seja, do que ele gosta nela agora é precisamente daquilo que não é motivo para gostar em ninguém. Por debaixo de todas as particularidades que a faziam tão encantadora, é afinal a vulgaridade de Lolita que a faz ainda tão especial.
É curioso lembrar o que alguns críticos apontaram: que nunca conhecemos a Dolores real; vemos somente, pelos olhos de Humbert Humbert, Lolita. Nunca nos é apresentada a menina, mas apenas a ninfita por quem Humbert se apaixonou. Ora, a mulher que Humbert encontra grávida é precisamente a mulher real, é uma mulher, aliás, cheia de realidade, grávida de realidade. Ela é o mais real que se pode ser, no sentido mais vulgar da palavra. O amor dele, porém, mantém-se, os sentimentos continuam intensos e toda aquela vulgaridade adquire um significado especial apenas porque pertence a ela. Se Humbert ama Dolores ou nem sequer a conhece, está aqui a prova decisiva – talvez de ambos em simultâneo. Já pouco ou nada de Lolita habita esta mulher. Resta apenas Dolores. Nos olhos ou no cabelo moram aqueles pormenores que ele ainda reconhece, que ele usa para explicar como pode ainda gostar dela, quando é tão óbvio que eles nada explicam. A vulgaridade desta mulher só pode ser tão especial, tão significativa, porque ele gosta dela. E do que ele gosta nela é da sua vulgaridade – agora que desapareceu tudo o que era especial nela tornando-a aquilo de que ele gostava –, ou seja, do que ele gosta nela agora é precisamente daquilo que não é motivo para gostar em ninguém. Por debaixo de todas as particularidades que a faziam tão encantadora, é afinal a vulgaridade de Lolita que a faz ainda tão especial.
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