E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Números fatais


  No episódio "Fatal Figures" (Don Taylor), da série Alfred Hitchcock Presents, Harold Goames é um contabilista obcecado com números que vive com a irmã há 13 anos. Saturado da sua vida rotineira e sem ligações ou significado, Goames constata que é apenas mais um dos milhões de cidadãos do país, sem qualquer importância a não ser a de acrescentar um número ao total de habitantes: "That's all I am: a number". Consultando um almanaque que lhe é entregue pela irmã, Goames nota que os criminosos constituem uma pequena parte da população. Ansioso por se sentir mais especial, começa a praticar crimes de modo a juntar-se ao grupo, até que, por fim, com o mesmo propósito, comete suicídio.

  Goames quer ser único. Quer que após a sua morte o lugar que ele ocupou em vida fique preenchido de um vazio que nāo pode ser povoado.
  Porque se mata Goames? A sua vida não o satisfaz, mas a sua atitude, claramente, não é a de um desalentado que desiste de tudo. Pelo contrário, ele nunca parece tāo animado como quando se mata. Mais precisamente: ele nunca está tāo animado como quando acrescenta um número – o seu número – às listas dos ladrões, homicidas e suicidas. O que ele quer é sentir-se especial, nāo quer ser apenas mais um – por muito que a solução que encontra passe precisamente por ser "mais um" (numa lista mais restrita).
  A solução de Goames nāo é uma verdadeira resposta ao seu problema. Se se lamenta por ser apenas mais um número numa lista, o que ele faz é afinal tornar-se somente outro número a acrescentar noutras listas. Ele parece assim esquecer os contornos do dilema de que ele próprio ganhara consciência: a sua vida sem significado nem conteúdo redu-lo a um número. O número, para os efeitos da imagem em causa, nāo tem significado, na medida em que nāo tem conteúdo: só ganha sentido com a aparição do objecto que ele indica. Ser "apenas mais um" é, afinal, ser vazio de conteúdo: não ser o objecto, mas apenas o número; ou, se se preferir, ser apenas o pretexto de um número. A atitude de Goames traduz uma inversão radical do funcionamento das estatísticas: é suposto estas revelarem-nos a verdade dos factos, ou, pelo menos, parte dela. As estatísticas, nesta medida, submetem-se aos factos e só são úteis na medida em que os fazem aparecer a uma dada luz. Mesmo quando guiamos o nosso comportamento por uma estatística, mesmo quando são adoptadas políticas para mudar os dados, o que se pretende verdadeiramente é alterar os factos que eles representam. Com Goames passa-se o inverso: ele quer alterar os factos para mudar as estatísticas. Aquilo é apenas um meio para alcançar este: os factos são usados para alterar os números, porque estão ao serviço destes.
  Ora, Goames aceita que é apenas mais um, que é só um número. Ele é um grão de areia dos muitos que fazem o monte. Nenhum grão de areia é especial: qualquer grão poderia ser substituído por outro. O único caminho que lhe parece restar face a esta triste realidade é o de se sentir parte num monte de areia mais pequeno, onde é mais fácil distinguir cada grão, porque a multidão não é tão imensa. Esta atitude, todavia, permite-nos também perceber que Goames não se toma apenas a si mesmo por um número, mas também a todos os outros. O panorama é para ele, de facto, bastante desolador: não se trata tanto de ele ser alguém especialmente desinteressante ou vulgar; trata-se de toda a população ser feita de números, a ponto de os feitos que tornam única a vida de alguém, toda a sua história, só ganharem expressão na medida em que se reflictam nalguma variável numérica. Nesta perspectiva, se uma pessoa, por exemplo, tiver nascido com um olho na nuca, o que a torna especial não é o olho em si, mas sim o facto de ela ser um exemplar único na lista das pessoas com olhos na nuca. Ela é o número que esgota a lista. Dito de outro modo: o que é especial na sua situação não é tanto o facto de haver apenas uma pessoa com um olho na nuca, mas sim o de o número de pessoas com essa condição ser 1.
  Porque se mata Goames? A resposta tem de ser a de que ele, na verdade, não se mata. Pelo contrário: acrescenta-se a uma outra lista. E assim, quando dispara sobre si próprio, Goames, no fim de contas, está apenas a renascer para a única vida que conheceu: a dos números.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O rei que não governa


Saint-Exupéry

  No capítulo X do livro Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupéry), conta-se que o asteróide 325 é habitado somente por um rei sentado num trono. O rei trata o principezinho como seu súbdito, porque, para os reis, “le monde est très simplifié. Tous les hommes sont des sujets”. Sendo o planeta minúsculo, o principezinho pergunta-lhe pelo seu reinado e o rei responde-lhe que reina sobre tudo: não apenas o seu planeta, mas também os outros e as estrelas. Quando o rapaz se aborrece e anuncia que vai partir, o rei, com medo de perder o seu súbdito, pede-lhe repetidamente que fique.
  
  O rei que o principezinho encontra reina, segundo dá a entender, sobre tudo, estando o sol e os planetas sob o seu comando. Este rei que que reina sobre tudo não reina, obviamente, sobre nada.
  As coisas submetem-se às suas ordens, segundo explica o próprio, porque ele profere apenas ordens razoáveis. Só ordena ao sol que se ponha depois de verificar a hora em que, com base na ciência, é seguro que ele se porá. Só dá ordens ao principezinho que vão ao encontro do que já sabe que aquele quer fazer. Há algo parecido com a sabedoria estóica nesta postura do rei. De certo modo, ele aceita que é como o cão amarrado à carroça e que não pode deixar de se submeter ao trajecto desta: opta por ordenar apenas aquilo que, já sabe, irá ser cumprido. Em lugar de puxar inutilmente pela sua trela, vai atrás da carroça sem lhe disputar direcções, arrogando-se apenas a posição ilusória de ser quem a dirige. O fracasso do rei é assim o seu triunfo – e vice-versa. Porque sabe que nada decide verdadeiramente, ele só comanda o que é decidido fora de si. Estes comandos correspondem sempre à vontade dos súbditos porque só aparecem depois. Os seus decretos são sempre cumpridos porque, na verdade, nunca são obedecidos. O que, aliás, permite retirar uma ilação simples: uma ordem sempre cumprida, uma ordem inviolável, é uma ordem que não obriga ninguém, ineficaz para todos os destinatários. O mesmo vale para qualquer lei. A força absoluta do rei é o disfarce para a sua fraqueza que, no fim de contas, mais claramente a exibe: porque só é uma lei que obriga a lei que se pode violar. Mora aí a secreta tirania de quem concede o livre-arbítrio: só aquele que confere a liberdade da rebeldia pode esperar ser obedecido.
  A ilusão em que o rei mora, todavia, só o é na medida em que os seus súbditos a denunciem como tal. Porque, no fim de contas, esta ilusão é igual para todos os reis. Todos, com efeito, só comandam na medida em que os súbditos aceitem ser súbditos; na medida em que estes escolham obedecer. Por isso é tão fundamental a lição de Antígona na tragédia homónima de Sófocles: Antígona insiste em enterrar o irmão apesar da proibição de Creonte. Todos os outros obedecem às ordens do rei, mas não Antígona, que reclama obedecer aos mandamentos da Justiça, mais verdadeiros, vinculativos e profundos que os do monarca. E se isto é tão perturbador para Creonte, se tanto o enfurece, é porque ele no fundo sabe que só pode governar enquanto lhe obedecerem. Porque toda a ordem que traduza um mero capricho tem apenas a força retirada da fraqueza de quem obedece. E, por paradoxal que pareça, nada o prova tão bem como a submissão de Antígona ao castigo real. É precisamente ao aceitar a pena que Creonte lhe impõe que ela mostra estar acima dele: porque cumpre uma lei superior, o castigo daquele rei mundano não lhe pode tocar. Em suma, o monarca só o é a partir do momento em que é tomado por tal: o soberano está mais "sub" do que "sob", portanto. Pelo que não é tanto o trono do rei a elevá-lo acima dos súbditos, mas sim estes que decidem descer abaixo dele. E isso talvez diga mais do gesto de grandeza dos súbditos do que do rei, cujas costas, no fundo, são tão rígidas que não se podem dobrar. Também é isso que caracteriza um rei: ele é alguém de costas demasiado rígidas, alguém que não se consegue curvar e, por isso, precisa que se curvem perante ele. O rei é aquele que, se se dobrasse, partia.
  Hémon apela à clemência do pai Creonte, que insiste na condenação de Antígona e reclama a sua autoridade perante o país e os seus súbditos. Hémon diz-lhe que nenhum país pertence exclusivamente a um homem. Quando Creonte lhe pergunta se não deverá o país pertencer a quem o governa, Hémon riposta-lhe que ele estaria muito bem a governar sozinho numa terra deserta. E é esse, realmente, o país indicado para um monarca que acredita ser dono dos seus súbditos: um país sem ninguém. Um rei tão dependente dos governados está afinal na dependência destes e não pode subsistir sem eles. O rei do asteróide 325 não quer deixar o principezinho partir porque sabe que não pode ser rei sem ele. É esse o seu maior fracasso. Este rei que reina sobre tudo e, por isso, não precisa de ninguém, não tem afinal um único súbdito e, deste modo, precisa de todos os que possa encontrar. Se estivesse verdadeiramente seguro da sua majestade, talvez este monarca fosse para si mesmo todo o público de que necessita. Mas não é assim, o que denuncia a maior prova de que ele nada governa: se depois de o principezinho partir não lhe resta nenhum súbdito, é porque ele não consegue sequer governar-se a si mesmo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A vulgaridade do que é especial

  No capítulo 29 do livro Lolita (Vladimir Nabokov), quando Humbert Humbert finalmente reencontra Lolita, anos depois de ela ter desaparecido, esta tem já 17 anos: não é já a ninfita que ele conhecera, é praticamente uma mulher, envelheceu e engravidou. Tendo perdido a graça de menina que ele apreciava, ela é agora só um “eco de folha morta” da Lolita anterior. Todavia, ele ainda a ama:
  “[A]nd there she was with her ruined looks and her adult, rope-veined narrow hands and her goose-flesh white arms, and her shallow ears, and her unkempt armpits, there she was (my Lolita!), hopelessly worn at seventeen, with that baby (...) and I looked and looked at her, and knew as clearly as I know I am to die, that I loved her more than anything I had ever seen or imagined on earth, or hoped for anywhere else. She was only the faint violet whiff and dead leaf echo of the nymphet I had rolled myself upon with such cries in the past”.

  Quem ou o que ama Humbert Humbert? Lolita já não é Lolita, já não é quem ele amava. Ainda que ele note os pormenores que se mantêm e os realce como se fosse isso o que importa verdadeiramente (“but still gray-eyed, still sooty-lashed, still auburn and almond, still Carmencita, still mine"), fica fácil perceber que se trata de factores que, em si, não têm verdadeiramente significado. E talvez por isso mesmo – porque são exibidos como provas decisivas, como elementos determinantes – eles signifiquem tanto.
  Há algo de estranho e fantástico neste facto de que Humbert ainda a ama agora que ela já não é nada do que ele amava nela. Lolita mudou realmente: já não é menina. Mas ele ama-a da mesma maneira, ela dói-lhe da mesma maneira. Poderíamos aventar a hipótese fácil de que aquela continua a ser ela, ele ama afinal a pessoa que ela é, não o seu físico. Só que mesmo o seu modo de ser mudou – porventura não radicalmente, talvez em perfeita coerência com o que é o desenvolvimento emocional de uma pessoa naquelas circunstâncias, mas ainda assim mudou, já não é uma lolita. E agora que ela já não é Lolita, ele ama-a ainda porque, afinal, ela continua a ser a sua Lolita.
  Este amor de Humbert é, no fim de contas, a única coisa que garante a identidade desta Lolita com a menina que ele conheceu. Tudo nesta mulher é diferente da menina, mas elas são a mesma pessoa: a pessoa que Humbert ama. Porque este amor não mudou – e só nesta medida –, ela também não mudou. É fascinante este estranho serviço que ele lhe presta, oferecendo-lhe um sustentáculo de identidade, mantendo-a a mesma na mudança. É por aqui, aliás, que pode surgir a prenda fundamental que ele lhe oferece: a da eternidade (“[O]ne wanted H. H. to exist at least a couple of months longer, so as to have him make you live in the minds of later generations. (...) And this is the only immortality you and I may share, my Lolita”).
  É curioso lembrar o que alguns críticos apontaram: que nunca conhecemos a Dolores real; vemos somente, pelos olhos de Humbert Humbert, Lolita. Nunca nos é apresentada a menina, mas apenas a ninfita por quem Humbert se apaixonou. Ora, a mulher que Humbert encontra grávida é precisamente a mulher real, é uma mulher, aliás, cheia de realidade, grávida de realidade. Ela é o mais real que se pode ser, no sentido mais vulgar da palavra. O amor dele, porém, mantém-se, os sentimentos continuam intensos e toda aquela vulgaridade adquire um significado especial apenas porque pertence a ela. Se Humbert ama Dolores ou nem sequer a conhece, está aqui a prova decisiva – talvez de ambos em simultâneo. Já pouco ou nada de Lolita habita esta mulher. Resta apenas Dolores. Nos olhos ou no cabelo moram aqueles pormenores que ele ainda reconhece, que ele usa para explicar como pode ainda gostar dela, quando é tão óbvio que eles nada explicam. A vulgaridade desta mulher só pode ser tão especial, tão significativa, porque ele gosta dela. E do que ele gosta nela é da sua vulgaridade – agora que desapareceu tudo o que era especial nela tornando-a aquilo de que ele gostava –, ou seja, do que ele gosta nela agora é precisamente daquilo que não é motivo para gostar em ninguém. Por debaixo de todas as particularidades que a faziam tão encantadora, é afinal a vulgaridade de Lolita que a faz ainda tão especial.