E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O rei que não governa


Saint-Exupéry

  No capítulo X do livro Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupéry), conta-se que o asteróide 325 é habitado somente por um rei sentado num trono. O rei trata o principezinho como seu súbdito, porque, para os reis, “le monde est très simplifié. Tous les hommes sont des sujets”. Sendo o planeta minúsculo, o principezinho pergunta-lhe pelo seu reinado e o rei responde-lhe que reina sobre tudo: não apenas o seu planeta, mas também os outros e as estrelas. Quando o rapaz se aborrece e anuncia que vai partir, o rei, com medo de perder o seu súbdito, pede-lhe repetidamente que fique.
  
  O rei que o principezinho encontra reina, segundo dá a entender, sobre tudo, estando o sol e os planetas sob o seu comando. Este rei que que reina sobre tudo não reina, obviamente, sobre nada.
  As coisas submetem-se às suas ordens, segundo explica o próprio, porque ele profere apenas ordens razoáveis. Só ordena ao sol que se ponha depois de verificar a hora em que, com base na ciência, é seguro que ele se porá. Só dá ordens ao principezinho que vão ao encontro do que já sabe que aquele quer fazer. Há algo parecido com a sabedoria estóica nesta postura do rei. De certo modo, ele aceita que é como o cão amarrado à carroça e que não pode deixar de se submeter ao trajecto desta: opta por ordenar apenas aquilo que, já sabe, irá ser cumprido. Em lugar de puxar inutilmente pela sua trela, vai atrás da carroça sem lhe disputar direcções, arrogando-se apenas a posição ilusória de ser quem a dirige. O fracasso do rei é assim o seu triunfo – e vice-versa. Porque sabe que nada decide verdadeiramente, ele só comanda o que é decidido fora de si. Estes comandos correspondem sempre à vontade dos súbditos porque só aparecem depois. Os seus decretos são sempre cumpridos porque, na verdade, nunca são obedecidos. O que, aliás, permite retirar uma ilação simples: uma ordem sempre cumprida, uma ordem inviolável, é uma ordem que não obriga ninguém, ineficaz para todos os destinatários. O mesmo vale para qualquer lei. A força absoluta do rei é o disfarce para a sua fraqueza que, no fim de contas, mais claramente a exibe: porque só é uma lei que obriga a lei que se pode violar. Mora aí a secreta tirania de quem concede o livre-arbítrio: só aquele que confere a liberdade da rebeldia pode esperar ser obedecido.
  A ilusão em que o rei mora, todavia, só o é na medida em que os seus súbditos a denunciem como tal. Porque, no fim de contas, esta ilusão é igual para todos os reis. Todos, com efeito, só comandam na medida em que os súbditos aceitem ser súbditos; na medida em que estes escolham obedecer. Por isso é tão fundamental a lição de Antígona na tragédia homónima de Sófocles: Antígona insiste em enterrar o irmão apesar da proibição de Creonte. Todos os outros obedecem às ordens do rei, mas não Antígona, que reclama obedecer aos mandamentos da Justiça, mais verdadeiros, vinculativos e profundos que os do monarca. E se isto é tão perturbador para Creonte, se tanto o enfurece, é porque ele no fundo sabe que só pode governar enquanto lhe obedecerem. Porque toda a ordem que traduza um mero capricho tem apenas a força retirada da fraqueza de quem obedece. E, por paradoxal que pareça, nada o prova tão bem como a submissão de Antígona ao castigo real. É precisamente ao aceitar a pena que Creonte lhe impõe que ela mostra estar acima dele: porque cumpre uma lei superior, o castigo daquele rei mundano não lhe pode tocar. Em suma, o monarca só o é a partir do momento em que é tomado por tal: o soberano está mais "sub" do que "sob", portanto. Pelo que não é tanto o trono do rei a elevá-lo acima dos súbditos, mas sim estes que decidem descer abaixo dele. E isso talvez diga mais do gesto de grandeza dos súbditos do que do rei, cujas costas, no fundo, são tão rígidas que não se podem dobrar. Também é isso que caracteriza um rei: ele é alguém de costas demasiado rígidas, alguém que não se consegue curvar e, por isso, precisa que se curvem perante ele. O rei é aquele que, se se dobrasse, partia.
  Hémon apela à clemência do pai Creonte, que insiste na condenação de Antígona e reclama a sua autoridade perante o país e os seus súbditos. Hémon diz-lhe que nenhum país pertence exclusivamente a um homem. Quando Creonte lhe pergunta se não deverá o país pertencer a quem o governa, Hémon riposta-lhe que ele estaria muito bem a governar sozinho numa terra deserta. E é esse, realmente, o país indicado para um monarca que acredita ser dono dos seus súbditos: um país sem ninguém. Um rei tão dependente dos governados está afinal na dependência destes e não pode subsistir sem eles. O rei do asteróide 325 não quer deixar o principezinho partir porque sabe que não pode ser rei sem ele. É esse o seu maior fracasso. Este rei que reina sobre tudo e, por isso, não precisa de ninguém, não tem afinal um único súbdito e, deste modo, precisa de todos os que possa encontrar. Se estivesse verdadeiramente seguro da sua majestade, talvez este monarca fosse para si mesmo todo o público de que necessita. Mas não é assim, o que denuncia a maior prova de que ele nada governa: se depois de o principezinho partir não lhe resta nenhum súbdito, é porque ele não consegue sequer governar-se a si mesmo.

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