No episódio "Fatal Figures" (Don Taylor), da série Alfred Hitchcock Presents, Harold Goames é um contabilista obcecado com números que vive com a irmã há 13 anos. Saturado da sua vida rotineira e sem ligações ou significado, Goames constata que é apenas mais um dos milhões de cidadãos do país, sem qualquer importância a não ser a de acrescentar um número ao total de habitantes: "That's all I am: a number". Consultando um almanaque que lhe é entregue pela irmã, Goames nota que os criminosos constituem uma pequena parte da população. Ansioso por se sentir mais especial, começa a praticar crimes de modo a juntar-se ao grupo, até que, por fim, com o mesmo propósito, comete suicídio.
Goames quer ser único. Quer que após a sua morte o lugar que ele ocupou em vida fique preenchido de um vazio que nāo pode ser povoado.
Porque se mata Goames? A sua vida não o satisfaz, mas a sua atitude, claramente, não é a de um desalentado que desiste de tudo. Pelo contrário, ele nunca parece tāo animado como quando se mata. Mais precisamente: ele nunca está tāo animado como quando acrescenta um número – o seu número – às listas dos ladrões, homicidas e suicidas. O que ele quer é sentir-se especial, nāo quer ser apenas mais um – por muito que a solução que encontra passe precisamente por ser "mais um" (numa lista mais restrita).
A solução de Goames nāo é uma verdadeira resposta ao seu problema. Se se lamenta por ser apenas mais um número numa lista, o que ele faz é afinal tornar-se somente outro número a acrescentar noutras listas. Ele parece assim esquecer os contornos do dilema de que ele próprio ganhara consciência: a sua vida sem significado nem conteúdo redu-lo a um número. O número, para os efeitos da imagem em causa, nāo tem significado, na medida em que nāo tem conteúdo: só ganha sentido com a aparição do objecto que ele indica. Ser "apenas mais um" é, afinal, ser vazio de conteúdo: não ser o objecto, mas apenas o número; ou, se se preferir, ser apenas o pretexto de um número. A atitude de Goames traduz uma inversão radical do funcionamento das estatísticas: é suposto estas revelarem-nos a verdade dos factos, ou, pelo menos, parte dela. As estatísticas, nesta medida, submetem-se aos factos e só são úteis na medida em que os fazem aparecer a uma dada luz. Mesmo quando guiamos o nosso comportamento por uma estatística, mesmo quando são adoptadas políticas para mudar os dados, o que se pretende verdadeiramente é alterar os factos que eles representam. Com Goames passa-se o inverso: ele quer alterar os factos para mudar as estatísticas. Aquilo é apenas um meio para alcançar este: os factos são usados para alterar os números, porque estão ao serviço destes.
Ora, Goames aceita que é apenas mais um, que é só um número. Ele é um grão de areia dos muitos que fazem o monte. Nenhum grão de areia é especial: qualquer grão poderia ser substituído por outro. O único caminho que lhe parece restar face a esta triste realidade é o de se sentir parte num monte de areia mais pequeno, onde é mais fácil distinguir cada grão, porque a multidão não é tão imensa. Esta atitude, todavia, permite-nos também perceber que Goames não se toma apenas a si mesmo por um número, mas também a todos os outros. O panorama é para ele, de facto, bastante desolador: não se trata tanto de ele ser alguém especialmente desinteressante ou vulgar; trata-se de toda a população ser feita de números, a ponto de os feitos que tornam única a vida de alguém, toda a sua história, só ganharem expressão na medida em que se reflictam nalguma variável numérica. Nesta perspectiva, se uma pessoa, por exemplo, tiver nascido com um olho na nuca, o que a torna especial não é o olho em si, mas sim o facto de ela ser um exemplar único na lista das pessoas com olhos na nuca. Ela é o número que esgota a lista. Dito de outro modo: o que é especial na sua situação não é tanto o facto de haver apenas uma pessoa com um olho na nuca, mas sim o de o número de pessoas com essa condição ser 1.
Porque se mata Goames? A resposta tem de ser a de que ele, na verdade, não se mata. Pelo contrário: acrescenta-se a uma outra lista. E assim, quando dispara sobre si próprio, Goames, no fim de contas, está apenas a renascer para a única vida que conheceu: a dos números.
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