E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 24 de março de 2017

A lâmina indiferente

  O que se passa neste vídeo da WunderTütenFabrik?
  Duas mãos procuram retirar utilidade de uma série de objectos pensados ou desenhados para serem usufruídos de uma certa maneira, mas as tentativas saem sempre frustradas. O fracasso não se deve, porém, a uma deformação no objecto, no seu desenho ou programação, mas somente à falta de habilidade do utilizador.
    As mãos querem, por exemplo, traçar linhas paralelas com a régua, mas a terceira linha (poderia ser a primeira, a segunda ou a quarta) sai torta. E não porque a régua seja torta, e sim porque a mão a deixou escapar. O desenho das coisas em questão é objectivamente racional. Por não terem falhas, elas requerem uma utilização eficaz, sendo garantido que tal utilização terá sempre proveito: os objectos não têm subjectividade, não há relatividade no seu uso; tudo o que acontece durante a interacção com eles estava já como que programado à partida na sua composição. As coisas não deixam espaço para o imprevisível: se algo pode correr mal, isso deve-se exclusivamente à subjectividade humana que mora nas mãos, tornando-as imprevisíveis.
  As coisas são perfeitas na sua concepção, mas isso não resulta numa utilização perfeita, porque nós não somos perfeitos. Um mundo ideal, sem buracos, curvas inesperadas ou desvios surpreendentes não é um mundo para nós, apesar de ser o mundo em que desejamos viver. Nós mesmos pensamos e fabricamos os objectos segundo uma racionalidade que não é a mesma com que os utilizamos. Continuamos a ser humanos e por isso não saberíamos viver no mundo ideal para o qual nos queremos mudar.
  No mundo humano – não no das coisas –, a prática tem sentido. Após muito treino, as mãos conseguirão certamente baralhar as cartas com facilidade sem as deixar cair mal começam a brincar com elas. Mas por muito que essa facilidade se torne evidente, a hipótese do erro continuará a existir. As mãos exímias poderão ter sucesso em milhares de ocasiões, mas, talvez por relaxamento ou distracção, surgirá uma em que as cartas se espalharão. O treino é um exercício de redução do espaço do erro. Mas não o pode apagar por completo. Porque esse espaço é aquele que o humano habita.
  Não deixa de ser fascinante a incoerência que se gera entre a realidade maquinal perfeita que construímos para nós próprios e a nossa imprevisibilidade, a nossa irracionalidade, a nossa humanidade. Mas essa incoerência talvez seja útil para trazer à luz aquilo que, denunciando a falibilidade humana, exibe simultaneamente a sua maravilha. Porque se os objectos são apenas capazes daquilo para que estão programados, se o espaço do imprevisível na sua utilização é apenas o nosso, se, em suma, não há sentido em falar de fracassos do seu lado, não há também qualquer espaço para o sucesso, qualquer lógica de êxito. Só a pessoa, a criatura que tanto falha na utilização dos seus objectos perfeitos, é capaz de ter sucesso. E não mora longe do reino da eficácia aquele outro reino, habitado apenas pela pessoa, onde esta é rainha e súbdita a um só tempo: o da ética. Porque do mesmo modo que, no vídeo, a faca pode cortar indiferentemente o bolo em fatias proporcionalmente ou sem qualquer critério, visto que corta sempre do mesmo modo, à sua eficácia é também indiferente se ela corta o pescoço de outrem ou a corda que o apertava. Para nós, porém, isso faz muita diferença. Toda a diferença.

quarta-feira, 22 de março de 2017

O fantasma no banquete



  Na versão cinematográfica do livro Death on the Nile (Agatha Christie) realizada por Andy Wilson, Simon rompeu o noivado com Jackie para casar com a amiga desta, Linnet. Jackie contou a Poirot que, para se vingar, pensou primeiro em matar Linnet, mas depois teve uma ideia melhor: segui-los para todos os sítios aonde fossem. A sua intenção era aparecer sempre que eles julgassem estar descansados e livres dela, concluindo que queria ser o “fantasma no banquete” (the ghost in the banquet). Poirot descobre mais tarde que Simon continua a gostar de Jackie e combinou com esta casar com Linnet (que de facto se apaixonou por ele e procurou atraí-lo) e depois matá-la para herdar o dinheiro e juntar-se de novo com Jackie.

  Quem é, no fim de contas, o fantasma no banquete? Se Jackie se apresenta deste modo, tal epíteto só tem sentido na medida em que o "banquete" é realizado em honra de Linnet: aparentemente, é com ela que Simon quer casar, ela é a mulher bonita e rica que é sempre centro das atenções, é alvo do interesse e inveja de quem a rodeia, etc. Jackie aparece assim como uma assombração na festa de Linnet, um espectro que a persegue causando constrangimento, desconforto e estragando o clima de festa em que aquela vive. Desta perspectiva, é como se Jackie usasse o manto da Morte Vermelha, a entidade misteriosa que, no conto de Edgar Allen Poe ("The Masque of the Red Death"), leva a morte à festa do príncipe Prospero e seus convidados. Tal como o príncipe, Linnet confronta a intrusa na sua festa e acaba morta.
  Quando os convidados do príncipe Prospero puxam o manto, percebem que não há nada por baixo. Podemos realmente imaginar o rosto de Jackie a surgir nesse momento, se fosse Linnet a puxar o manto? As revelações de Poirot sugerem-nos uma inversão na história e nos seus papéis: talvez não seja Jackie o verdadeiro fantasma. Porque afinal é ela que Simon ama e não Linnet. Linnet é o centro das atenções, mas é tudo uma farsa e a verdadeira rainha da festa é Jackie. Linnet é o pretexto para o banquete que, no fim de contas, dá-se secretamente em honra de Jackie. Por isso, naquele que deveria ser o seu banquete, Linnet é o verdadeiro fantasma. E não lhe fica mal o manto da Morte, já que, afinal, ela torna-se o motivo pelo qual Jackie e Simon se perdem: também eles acabam mortos na sua festa particular.
  O destino da festa do príncipe Prospero, como o de Simon e Jackie, após perderem os respectivos fantasmas, não nos deve surpreender, se aceitarmos a ideia de que são precisamente os fantasmas que assombram as nossas celebrações lembrando-nos a proximidade da morte que nos fazem sentir vivos. Há um certo castigo moral para o príncipe Prospero, que não deveria festejar no seu castelo ignorando o povo que morria em sofrimento. Mas há também a ideia de que a morte é inescapável e acaba sempre por aparecer, mesmo sem ser convidada. É assim mesmo que surge Jackie aos olhos de Linnet, vítima do mesmo castigo que o príncipe recebeu: também Linnet julgou poder ter o seu banquete povoado apenas pelos seus convidados. Mas Jackie apareceu. Como, ao invés, Jackie julgou poder expulsar Linnet do seu banquete secreto para viver depois feliz com Simon. Os fantasmas, porém, não são intrusos que possamos mandar embora. Porque quando um fantasma parte, leva-nos com ele. De modo que talvez devamos optar por aceitar o fantasma no nosso banquete, oferecendo-lhe um lugar à nossa mesa, sabendo que enquanto ele nos assombrar com a perspectiva da morte continuaremos vivos.
  Nada se escondia por debaixo do manto da Morte Vermelha quando lhe foi puxado o capuz. Mas isso não nos diz nada sobre a inexistência do que quer que seja que ali se escondia, e sim muito sobre como se trata afinal de um lugar que é ocupado à vez por cada um dos nossos fantasmas, esse fantasma que (des)aparece sempre que somos nós a puxar o manto. Quem é o verdadeiro fantasma no banquete? Depende apenas de sabermos para quem o banquete é feito, pois podemos ter a certeza de que só temos de descobrir a rainha para encontrarmos o fantasma que a assombra dando-lhe vida.

sexta-feira, 10 de março de 2017

O absurdo das coisas normais


  No filme A serious man (Joel e Ethan Coen), Larry Gopnik é um professor de Física judeu cuja vida parece desmoronar progressivamente: a sua mulher quer deixá-lo por outro homem, o filho tem dívidas de dinheiro por compras de marijuana, a filha leva uma vida de lavagem de cabelo e saídas com amigos, o irmão mora no sofá de Larry e passa o dia num projecto de investigação sem qualquer nexo ou ligação com a realidade. A sua candidatura para obtenção da cátedra vai provavelmente ser negada, em virtude de umas cartas anónimas enviadas ao comité responsável para denegri-lo. Um aluno quer suborná-lo para não chumbar, e quando Larry tenta devolver o dinheiro, o pai do rapaz ameaça denunciá-lo por difamação se ele os acusar de tentativa de suborno, e de corrupção se ele aceitar o dinheiro e não passar o aluno de ano. A mulher e o amante põem-no fora de casa e deixam-no praticamente sem dinheiro. Quando o amante morre, é Larry quem se vê forçado a pagar o funeral. Pelo meio, Larry procura várias vezes orientação junto do rabino sénior Marshak, mas este nunca está disponível.

  Há algo no caso de Larry que nos lembra a história de Josef K., no livro de Kafka (Der Prozeß). As situações de ambos são, porém, diversas, e é esta diferença que pode tornar frutuoso o paralelo entre elas.

  Josef K., alvo de uma acusação de um crime por identificar, feita por uma autoridade obscura e executada por funcionários sem nome, acaba encurralado pela realidade de um processo judicial que não compreende. A máquina processual parece sustentar-se numa racionalidade a toda a prova: o sistema tem um funcionamento absolutamente racional, praticamente inquestionável. Mas é uma racionalidade que lhe escapa (pelo menos no seu funcionamento, na sua aplicação). Tudo o que se passa no processo é lógico, mas trata-se de uma lógica que não pode ser apreendida. Se esta lógica é absurda para Josef K., isso deve-se precisamente a que ele não a consegue fazer sua, não consegue interiorizá-la, compreendê-la. O seu processo, no fundo, parece ser algo que nada tem que ver com ele, exceptuando o ser ele, supostamente, o seu objecto. Joseph K. é quase mero pretexto para o processo, seu pressuposto, mas nunca razão de ser. Vendo as coisas noutra perspectiva, igualmente válida para o seu caso: não apenas Josef K. é incapaz de interiorizar a lógica processual em que se vê envolvido, como também não consegue que ela o torne seu. Procura várias vezes adaptar-se às exigências do processo, corresponder ao que é esperado dele, mostrar-se interessado pelos desenvolvimentos, compreender o desenrolar dos acontecimentos, mas as tentativas saem constantemente frustradas.

  Os acontecimentos na vida de Larry não parecem comportar nada de obscuro ou misterioso. Bem pelo contrário: a mulher dá-lhe conta das suas intenções e explica-lhe toda a situação com o amante; o próprio amante vem falar com Larry. Também o suborno é proposto pelo aluno sem qualquer secretismo. É verdade que ele nega ter oferecido o dinheiro, mas isso é mera encenação teatral do segredo da corrupção. É como se o dinheiro estivesse a ser passado, como deve ser, por debaixo da mesa, mas isso não servisse para o ocultar, porque todos o podem ver na mesma a ser passado e ele não se importa sequer com isso. É um segredo a que só falta ser secreto. Tudo acontece às claras: não há indício de conspiração diabólica contra Larry, de qualquer agente malicioso a planear a sua destruição, nem sequer um sistema organizado e indiferente em cujas teias ele se possa dizer enredado.
  Ao mesmo tempo, tudo o que lhe acontece – e mais concretamente o modo como sucede – parece desprovido de sentido, tão absurdo como se apenas lhe acontecessem coisas impossíveis. E é precisamente a naturalidade com que coisas tão possíveis lhe acontecem que induzem o espanto maior. Alice pode achar estranho que a Rainha Branca, com a idade dela, chegasse a acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço (Lewis Carroll, Through the Looking-Glass and What Alice Found There). Mas parece muito mais monstruosa a tarefa de Larry de acreditar nas coisas possíveis e evidentes que lhe vão acontecendo.
  Na verdade, é precisamente o nada se esconder por detrás da normalidade absurda das coisas que parece mais terrível na história de Larry. Talvez ele inveje, afinal, a posição de Josef K., porquanto este sabe, ou pode pelo menos suspeitar, haver um sentido oculto para os eventos obscuros que se sucedem; já Larry, pelo contrário, apenas pode contar com o sentido evidente e absurdo que vive à superfície do seu quotidiano inexplicável. Sem vislumbre de qualquer significado oculto para a normalidade incrível do desenrolar da trama em que se acha envolvido, ele não pode querer encontrar nada mais que tudo aquilo a que já tem acesso. Larry não pode esperar compreender a realidade a partir da própria realidade porque é a normalidade desta que é tão espantosa. Para perceber o que lhe acontece, Larry só pode contar com o inexplicável.

  É como se Josef K. observasse o funcionamento da realidade a partir de fora. E esta posição de espectador externo de um espectáculo sem guião ou legendas faz aparecer como absurdo o desenrolar de tudo aquilo a que assiste. Josef K. vê tudo, mas em tudo há uma racionalidade que lhe escapa, a que ele não pode esperar aceder, que está condenado a procurar em vão. Segundo conta Pietro Citati (Kafka), a todas as pessoas que conheceram Kafka na juventude ou maturidade parecia que ele vivia rodeado de uma parede de vidro. É precisamente assim que Josef K. parece ver a realidade: atrás de uma parede de vidro, de onde assiste a tudo e tudo lhe escapa, não podendo agarrar nada.
  É como se Larry observasse o mesmo funcionamento, mas a partir de dentro. Não há nada de extraordinário no que lhe acontece, exceptuando a normalidade de tudo. Enquanto Joseph K. está perante um absurdo cuja racionalidade não atinge – que está ali, mas é-lhe inacessível –, já o absurdo de Larry é diferente: tudo o que o envolve é, em termos lógicos, normal. Mas é precisamente nessa normalidade que habita uma certa irracionalidade que lhe foge – de que ele suspeita, mas falha em denunciar, por não conseguir, desde logo, identificá-la claramente.
  Larry parece um homem passivo, que aceita tudo sem grandes reclamações. Um tolo incapaz de se impor. Mas o seu espanto perante o absurdo, a sua incredulidade diante de tudo o que não deixa de ser normal dizem porventura muito sobre a consciência superior que tem do que o rodeia. A  sua incapacidade de compreender a simplicidade dos acontecimentos denuncia que, entre a multidão de pessoas adormecidas na normalidade das coisas, ele é, afinal, um dos poucos a manterem-se acordados.