E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 10 de março de 2017

O absurdo das coisas normais


  No filme A serious man (Joel e Ethan Coen), Larry Gopnik é um professor de Física judeu cuja vida parece desmoronar progressivamente: a sua mulher quer deixá-lo por outro homem, o filho tem dívidas de dinheiro por compras de marijuana, a filha leva uma vida de lavagem de cabelo e saídas com amigos, o irmão mora no sofá de Larry e passa o dia num projecto de investigação sem qualquer nexo ou ligação com a realidade. A sua candidatura para obtenção da cátedra vai provavelmente ser negada, em virtude de umas cartas anónimas enviadas ao comité responsável para denegri-lo. Um aluno quer suborná-lo para não chumbar, e quando Larry tenta devolver o dinheiro, o pai do rapaz ameaça denunciá-lo por difamação se ele os acusar de tentativa de suborno, e de corrupção se ele aceitar o dinheiro e não passar o aluno de ano. A mulher e o amante põem-no fora de casa e deixam-no praticamente sem dinheiro. Quando o amante morre, é Larry quem se vê forçado a pagar o funeral. Pelo meio, Larry procura várias vezes orientação junto do rabino sénior Marshak, mas este nunca está disponível.

  Há algo no caso de Larry que nos lembra a história de Josef K., no livro de Kafka (Der Prozeß). As situações de ambos são, porém, diversas, e é esta diferença que pode tornar frutuoso o paralelo entre elas.

  Josef K., alvo de uma acusação de um crime por identificar, feita por uma autoridade obscura e executada por funcionários sem nome, acaba encurralado pela realidade de um processo judicial que não compreende. A máquina processual parece sustentar-se numa racionalidade a toda a prova: o sistema tem um funcionamento absolutamente racional, praticamente inquestionável. Mas é uma racionalidade que lhe escapa (pelo menos no seu funcionamento, na sua aplicação). Tudo o que se passa no processo é lógico, mas trata-se de uma lógica que não pode ser apreendida. Se esta lógica é absurda para Josef K., isso deve-se precisamente a que ele não a consegue fazer sua, não consegue interiorizá-la, compreendê-la. O seu processo, no fundo, parece ser algo que nada tem que ver com ele, exceptuando o ser ele, supostamente, o seu objecto. Joseph K. é quase mero pretexto para o processo, seu pressuposto, mas nunca razão de ser. Vendo as coisas noutra perspectiva, igualmente válida para o seu caso: não apenas Josef K. é incapaz de interiorizar a lógica processual em que se vê envolvido, como também não consegue que ela o torne seu. Procura várias vezes adaptar-se às exigências do processo, corresponder ao que é esperado dele, mostrar-se interessado pelos desenvolvimentos, compreender o desenrolar dos acontecimentos, mas as tentativas saem constantemente frustradas.

  Os acontecimentos na vida de Larry não parecem comportar nada de obscuro ou misterioso. Bem pelo contrário: a mulher dá-lhe conta das suas intenções e explica-lhe toda a situação com o amante; o próprio amante vem falar com Larry. Também o suborno é proposto pelo aluno sem qualquer secretismo. É verdade que ele nega ter oferecido o dinheiro, mas isso é mera encenação teatral do segredo da corrupção. É como se o dinheiro estivesse a ser passado, como deve ser, por debaixo da mesa, mas isso não servisse para o ocultar, porque todos o podem ver na mesma a ser passado e ele não se importa sequer com isso. É um segredo a que só falta ser secreto. Tudo acontece às claras: não há indício de conspiração diabólica contra Larry, de qualquer agente malicioso a planear a sua destruição, nem sequer um sistema organizado e indiferente em cujas teias ele se possa dizer enredado.
  Ao mesmo tempo, tudo o que lhe acontece – e mais concretamente o modo como sucede – parece desprovido de sentido, tão absurdo como se apenas lhe acontecessem coisas impossíveis. E é precisamente a naturalidade com que coisas tão possíveis lhe acontecem que induzem o espanto maior. Alice pode achar estranho que a Rainha Branca, com a idade dela, chegasse a acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço (Lewis Carroll, Through the Looking-Glass and What Alice Found There). Mas parece muito mais monstruosa a tarefa de Larry de acreditar nas coisas possíveis e evidentes que lhe vão acontecendo.
  Na verdade, é precisamente o nada se esconder por detrás da normalidade absurda das coisas que parece mais terrível na história de Larry. Talvez ele inveje, afinal, a posição de Josef K., porquanto este sabe, ou pode pelo menos suspeitar, haver um sentido oculto para os eventos obscuros que se sucedem; já Larry, pelo contrário, apenas pode contar com o sentido evidente e absurdo que vive à superfície do seu quotidiano inexplicável. Sem vislumbre de qualquer significado oculto para a normalidade incrível do desenrolar da trama em que se acha envolvido, ele não pode querer encontrar nada mais que tudo aquilo a que já tem acesso. Larry não pode esperar compreender a realidade a partir da própria realidade porque é a normalidade desta que é tão espantosa. Para perceber o que lhe acontece, Larry só pode contar com o inexplicável.

  É como se Josef K. observasse o funcionamento da realidade a partir de fora. E esta posição de espectador externo de um espectáculo sem guião ou legendas faz aparecer como absurdo o desenrolar de tudo aquilo a que assiste. Josef K. vê tudo, mas em tudo há uma racionalidade que lhe escapa, a que ele não pode esperar aceder, que está condenado a procurar em vão. Segundo conta Pietro Citati (Kafka), a todas as pessoas que conheceram Kafka na juventude ou maturidade parecia que ele vivia rodeado de uma parede de vidro. É precisamente assim que Josef K. parece ver a realidade: atrás de uma parede de vidro, de onde assiste a tudo e tudo lhe escapa, não podendo agarrar nada.
  É como se Larry observasse o mesmo funcionamento, mas a partir de dentro. Não há nada de extraordinário no que lhe acontece, exceptuando a normalidade de tudo. Enquanto Joseph K. está perante um absurdo cuja racionalidade não atinge – que está ali, mas é-lhe inacessível –, já o absurdo de Larry é diferente: tudo o que o envolve é, em termos lógicos, normal. Mas é precisamente nessa normalidade que habita uma certa irracionalidade que lhe foge – de que ele suspeita, mas falha em denunciar, por não conseguir, desde logo, identificá-la claramente.
  Larry parece um homem passivo, que aceita tudo sem grandes reclamações. Um tolo incapaz de se impor. Mas o seu espanto perante o absurdo, a sua incredulidade diante de tudo o que não deixa de ser normal dizem porventura muito sobre a consciência superior que tem do que o rodeia. A  sua incapacidade de compreender a simplicidade dos acontecimentos denuncia que, entre a multidão de pessoas adormecidas na normalidade das coisas, ele é, afinal, um dos poucos a manterem-se acordados.

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