Quem é, no fim de contas, o fantasma no banquete? Se Jackie se apresenta deste modo, tal epíteto só tem sentido na medida em que o "banquete" é realizado em honra de Linnet: aparentemente, é com ela que Simon quer casar, ela é a mulher bonita e rica que é sempre centro das atenções, é alvo do interesse e inveja de quem a rodeia, etc. Jackie aparece assim como uma assombração na festa de Linnet, um espectro que a persegue causando constrangimento, desconforto e estragando o clima de festa em que aquela vive. Desta perspectiva, é como se Jackie usasse o manto da Morte Vermelha, a entidade misteriosa que, no conto de Edgar Allen Poe ("The Masque of the Red Death"), leva a morte à festa do príncipe Prospero e seus convidados. Tal como o príncipe, Linnet confronta a intrusa na sua festa e acaba morta.
Quando os convidados do príncipe Prospero puxam o manto, percebem que não há nada por baixo. Podemos realmente imaginar o rosto de Jackie a surgir nesse momento, se fosse Linnet a puxar o manto? As revelações de Poirot sugerem-nos uma inversão na história e nos seus papéis: talvez não seja Jackie o verdadeiro fantasma. Porque afinal é ela que Simon ama e não Linnet. Linnet é o centro das atenções, mas é tudo uma farsa e a verdadeira rainha da festa é Jackie. Linnet é o pretexto para o banquete que, no fim de contas, dá-se secretamente em honra de Jackie. Por isso, naquele que deveria ser o seu banquete, Linnet é o verdadeiro fantasma. E não lhe fica mal o manto da Morte, já que, afinal, ela torna-se o motivo pelo qual Jackie e Simon se perdem: também eles acabam mortos na sua festa particular.
O destino da festa do príncipe Prospero, como o de Simon e Jackie, após perderem os respectivos fantasmas, não nos deve surpreender, se aceitarmos a ideia de que são precisamente os fantasmas que assombram as nossas celebrações lembrando-nos a proximidade da morte que nos fazem sentir vivos. Há um certo castigo moral para o príncipe Prospero, que não deveria festejar no seu castelo ignorando o povo que morria em sofrimento. Mas há também a ideia de que a morte é inescapável e acaba sempre por aparecer, mesmo sem ser convidada. É assim mesmo que surge Jackie aos olhos de Linnet, vítima do mesmo castigo que o príncipe recebeu: também Linnet julgou poder ter o seu banquete povoado apenas pelos seus convidados. Mas Jackie apareceu. Como, ao invés, Jackie julgou poder expulsar Linnet do seu banquete secreto para viver depois feliz com Simon. Os fantasmas, porém, não são intrusos que possamos mandar embora. Porque quando um fantasma parte, leva-nos com ele. De modo que talvez devamos optar por aceitar o fantasma no nosso banquete, oferecendo-lhe um lugar à nossa mesa, sabendo que enquanto ele nos assombrar com a perspectiva da morte continuaremos vivos.
Nada se escondia por debaixo do manto da Morte Vermelha quando lhe foi puxado o capuz. Mas isso não nos diz nada sobre a inexistência do que quer que seja que ali se escondia, e sim muito sobre como se trata afinal de um lugar que é ocupado à vez por cada um dos nossos fantasmas, esse fantasma que (des)aparece sempre que somos nós a puxar o manto. Quem é o verdadeiro fantasma no banquete? Depende apenas de sabermos para quem o banquete é feito, pois podemos ter a certeza de que só temos de descobrir a rainha para encontrarmos o fantasma que a assombra dando-lhe vida.
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