Na música "É preciso que eu diminua", de Samuel Úria, o sujeito queixa-se de problemas de tamanho: já não cabe numa casa onde o espaço é todo seu, a ponto de estender os braços pelas janelas. Precisa abreviar-se, mas é largo de ossos e só sabe crescer.
John Tenniel
Os problemas de crescimento do sujeito lembram os de Alice quando come e bebe bolos e poções que a fazem crescer desmesuradamente (Lewis Carroll, Alice's Adventures in Wonderland): cresce até bater com a cabeça no tecto logo que chega ao fim da toca de entrada no País das Maravilhas; cresce novamente em casa do coelho branco até o braço lhe sair pela janela (e o pé pela chaminé) e, finalmente, agiganta-se de novo no julgamento do Valete de Corações.
Porque cresce Alice? Também diminui de vez em quando, parecendo aleatória a alternância das suas mudanças de tamanho. Talvez possamos descortinar aí, contudo, uma lógica que nos é sugerida pelo que o próprio Samuel Úria tem a dizer sobre a sua canção: "quando estou a desenvolver-me, faço-o em torno de mim mesmo. Enquanto me desenvolvo e progrido, e é para isso que a sociedade me empurra, posso estar a perder espaço para outras pessoas. (...) É preciso que eu diminua para que os outros cresçam em mim".
Porque cresce Alice? Também diminui de vez em quando, parecendo aleatória a alternância das suas mudanças de tamanho. Talvez possamos descortinar aí, contudo, uma lógica que nos é sugerida pelo que o próprio Samuel Úria tem a dizer sobre a sua canção: "quando estou a desenvolver-me, faço-o em torno de mim mesmo. Enquanto me desenvolvo e progrido, e é para isso que a sociedade me empurra, posso estar a perder espaço para outras pessoas. (...) É preciso que eu diminua para que os outros cresçam em mim".
Alice precisa de diminuir, não tanto para deixar os outros chegarem a si, mas para poder chegar aos outros. É diminuindo que pode abrir a porta pela qual fugiu o coelho branco. Quando gigante em casa deste, é agredida com pedras pela multidão lá fora. Quando cresce no julgamento do Valete, o sonho termina e todos os personagens presentes no tribunal desaparecem.
Alice precisa de diminuir para ir ao encontro de toda aquela gente maravilhosa e interagir pacificamente com ela. Quando cresce, eles desaparecem ou tornam-se agressivos. No fim de contas, a sugestão oferecida é bastante simples: se crescemos ao ponto de ocuparmos todo o espaço, não sobra nenhum para mais ninguém a não sermos nós. Se apenas nos alimentamos de nós mesmos, ficamos cheios de nós e acabamos enfartados de si-mesmidade.
Tanto a história de Alice como a canção, de todo o modo, oferecem ainda uma hipótese mais curiosa: o crescimento exagerado não deixa apenas sem espaço a todos os outros, mas também a nós próprios. Com efeito, "numa casa onde o espaço é todo [s]eu", o narrador já não cabe. O espaço nunca basta a quem se alimenta de si mesmo para crescer, apesar de lhe pertencer por inteiro. Enquanto alimento, o nosso interior é inesgotável, ao contrário do espaço que temos para crescer, que é cada vez menor à medida que connosco vamos saciando a fome. Quanto mais engordamos de nós, menos espaço temos para caber, ainda menos para viajar ou encontrar. Precisamos, por isso, de diminuir, não apenas para termos espaço para nós, mas para o podermos oferecer aos outros. Porque afinal o espaço que nos pertence em nossa casa não está à disposição para o ocuparmos e sim para o partilharmos. A grande vantagem de diminuirmos é precisamente termos mais espaço para os outros poderem entrar em nós.
Este é o processo inverso àquele que encontramos na história de Kaonashi, o Sem-Face, personagem do filme Sen to Chihiro no Kamikakushi (A Viagem de Chihiro, na tradução portuguesa) de Hayao Miyazaki. O Sem-Face não tem rosto (apenas uma máscara inexpressiva), não fala e é capaz de pouco mais que seguir Chihiro e tentar agradar-lhe com pequenos gestos. A dada altura, porém, em troca de ouro que ele fabrica por magia, consegue que lhe ofereçam comida que ele vai ingerindo avidamente, parecendo dono de um estômago sem fundo. Cresce monstruosamente e chega mesmo a engolir 3 indivíduos.
O Sem-Face acaba por aprender a mesma lição que Alice: porque quer engolir tudo e todos somente para conseguir mais de si próprio, também a ele o espaço (e a comida) não bastam para medrar. E não consegue chegar a Chihiro, a única que de facto lhe interessa. Chihiro é o outro que ele procura e de que necessita, mas só quando diminui – quando regurgita tudo o que tinha engolido e volta a ser o Sem-Face mudo e calmo inicial – consegue que ela o aceite e o deixe acompanhá-la.
A lição é simples e nem por isso menos fundamental: é preciso diminuirmos para cabermos todos.
A lição é simples e nem por isso menos fundamental: é preciso diminuirmos para cabermos todos.
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