E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Vivo depois de morto


  No videoclip “Thriller” (John Landis/Michael Jackson), Michael Jackson e a namorada são ameaçados por uma pequena multidão de zombies. No instante em que estão prestes a ser apanhados, a rapariga encara Michael e descobre que este também se tornou um morto-vivo. Ao grito de choque e terror segue-se uma coreografia dos zombies, após a qual a perseguição da moça é retomada.

  O que é um zombie? Partindo de uma leitura de Hegel, responde Zizek ("Discipline between Two Freedoms – Madness and Habit in German Idealism") que são criaturas regidas por (ou feitas de) hábito puro, cujos movimentos são mecanizados e repetidos de tal modo que não há nelas qualquer espaço para liberdade ou criatividade: trata-se do hábito anterior ao pensamento e à consciência: "are they not figures of pure habit, of habit at its most elementary, prior to the rise of intelligence (of language, consciousness, and thinking)?". Isto ajuda a perceber porque são sempre os zombies alguém que conhecemos antes enquanto seres humanos normais, surgidos agora como criaturas aberrantes que nos perseguem maquinalmente: o maior arrepio que nos provocam nasce precisamente de percebermos que aqueles seres estranhos são afinal alguém que nos era próximo. Esta revelação do familiar por detrás do bizarro, contudo, não nos deveria surpreender, pois, ainda segundo Zizek, somos todos zombies ao nível mais elementar da nossa identidade humana: as actividades mais elevadas e livres que praticamos só podem ter lugar se estiverem fundadas em hábitos-zombie perfeitamente interiorizados. Assim, não poderíamos usar livremente a linguagem, por exemplo, se não nos tivéssemos já habituado a utilizá-la de tal forma que aplicamos cegamente as suas regras, usamos expressões já tão mecanizadas que nem sequer lhes atribuímos o seu significado literal, etc. Nesta lógica hegeliana, com a sua mecanização e a sua automaticidade, o hábito é a base da liberdade.

  É precisamente como momento de liberdade que a dança nos aparece: como lugar onde o improviso, a rebeldia e a expressão do carácter único da identidade pessoal encontram uma linguagem para acontecerem. A verdadeira dança, porém, só pode existir na base de uma repetição de movimentos até à mecanização, de uma interiorização de passos até à habituação.
  O que é uma coreografia, no fim de contas, senão uma dança-zombie? O que aí tem lugar, afinal, é uma emergência dos hábitos, a exibição da mecanização pela mecanização, da repetição pela repetição. Na coreografia, o hábito não serve o improviso – ao invés, ele aparece como fim de si mesmo. O executante da coreografia é um zombie incapaz de ir além dos movimentos cuja repetição ele interiorizou de tal modo que se transformaram para ele em correntes.
  É natural que Michael Jackson se torne um zombie para executar a sua coreografia. Porque é precisamente uma demonstração de movimentos tornados mecânicos, gestos programados, o que se vai seguir. Não a liberdade, mas o seu esqueleto. Mas a sentença pode ser invertida: é igualmente natural que, umas vez zombie, os seus movimentos se limitem ao coreografado. Porque, enquanto zombie, ele não será capaz de qualquer gesto elevado, i. e., criativo, livre.
  É depois de constatarmos isto, todavia, que podemos verdadeiramente perceber como pode chegar a ser livre o dançarino. Falstaff (Shakespeare, Henry IV, primeira parte) garantia que a encenação da morte é a maior demonstração de vida (to counterfeit dying, when a man thereby liveth, is to be no counterfeit, but the true and perfect image of life indeed”). Os zombies são comummente apresentados como mortos-vivos: ora, é precisamente a morte de um zombie que, no fim de contas, está na base da vida. Só pela mecanização cega e obtusa de gestos sem vida seremos capazes de inovar, porque só aprendendo a respirar poderemos viver. Assim como a poesia só é possível para quem saiba falar – e, portanto, a liberdade das palavras só é possível para quem viva na sua prisão –, também aquele que dança só chega a ser livre depois de ter amarrado o seu corpo pelo hábito. Porque também o corpo não sabe ser livre e tem de aprender. Porque só repetindo até à exaustão se pode chegar ao irrepetível. Porque só depois de sabermos o caminho poderemos passear onde nunca ninguém caminhou, dar o passo que ainda ninguém deu.

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