E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Deixados de fora


  No filme Perfetti Sconosciuti, de Paolo Genovese, sete amigos – três casais mais um – têm um jantar, durante o qual concordam em colocar os telemóveis sobre a mesa e partilhar com os outros tudo o que chegar (lêem as mensagens em voz alta, atendem e falam em alta-voz, etc). Ao longo do jantar, vão surgindo revelações que fazem perigar as amizades e as ligações amorosas entre eles, sendo muito plausível que essas relações resultem irremediavelmente destruídas. O filme termina com uma espécie de final alternativo, em que eles não chegaram a jogar o jogo e, no final do jantar, todos se separam em aparente felicidade e harmonia.

  Apesar de pelo menos alguns deles serem amigos de longos anos, cada um dos intervenientes conhecia apenas a superfície dos outros, não os seus segredos, o seu subterrâneo. O filme é, por isso, uma boa demonstração da velha verdade de que as amizades e as ligações em geral dependem muito de nos mantermos a esse nível de fachada, de não chegarmos a conhecer-nos como somos verdadeiramente. É a mesma verdade que ajuda a explicar porque an
damos vestidos: mesmo que eventualmente tenhamos algum desejo secreto de andar despidos, ou que acariciemos em imaginação a sensação de liberdade que isso traria, e mesmo que vivamos convencidos de que nos interessaria ver nuas muitas pessoas que nos aparecem vestidas, o facto é que não suportaríamos a nudez dos outros nem somos verdadeiramente capazes de acreditar que os outros suportariam a nossa. Neste sentido, a harmonia entre as pessoas só parece possível à superfície, estando dependente de mantermos escondido o que não pode ou não deve ser mostrado.


  
  No início do filme Brief encounter (David Lean), Laura tem a companhia da sua amiga Dolly no comboio. Dolly tagarela ininterruptamente, sem perceber que Laura acaba de viver um momento marcante – a despedida de um homem por quem se apaixonou, mas com quem decidiu não ficar, tendo ambos entendido que seria melhor voltarem para as respectivas famílias.
  Laura ouve Dolly e responde-lhe maquinalmente, sem verdadeiramente prestar atenção a nada do que ela lhe diz. Temos então acesso ao que ela pensa e ao discurso que em pensamento ela dirige à amiga:

  I wish I could trust you. I wish you were a kind wise friend, instead of a gossiping acquaintance I’ve known for years and never particularly cared for. I wish… I wish...
  I wish you would stop talking. I wish you’d stop prying and trying to find things out. I wish you were dead – no, I don’t mean that, that was silly and unkind. I wish you would stop talking.

  Laura deseja que Dolly fosse uma verdadeira amiga, uma com quem pudesse desabafar e falar abertamente, em vez de uma pessoa com quem pode apenas manter conversas superficiais.
  Laura quer abrir-se para Dolly, ou para uma pessoa que gostaria que Dolly fosse, uma amiga gentil e sensata. O que um filme como Perfetti Sconosciuti nos lembra, porém, é que este desejo deseja o seu próprio fracasso, pois carrega um paradoxo: Dolly é já a amiga que Laura pode esperar alguma vez vir a ter. É precisamente porque são amigas que ela não pode ser totalmente sincera. A harmonia da amizade mantém-se a um nível de fachada, o único onde a paz pode reinar. Isto mesmo é demonstrado, a uma outra luz, quando trocamos Dolly pelo marido de Laura: como ela própria reconhece, ele é o seu verdadeiro amigo e confidente, uma pessoa bondosa e inteligente que, melhor que ninguém, compreenderia o seu sofrimento. Mas é precisamente a ele que ela está absolutamente proibida de revelar a verdade. No final do filme, o marido agradece o regresso de Laura, sugerindo que percebeu a sua distância e talvez até os motivos (i. e., os sentimentos nutridos por outro homem). Mas esta reunião só é possível porque nenhuma palavra sobre o assunto chega a ser trocada entre eles. Porque aquilo que não é dito não chega a ter existência real – ou, pelo menos, não chega a ter força para rasgar a coberta harmoniosa que sobre ele foi montada. Porque, se nos lembrarmos do conto de Andersen ("As novas roupas do Imperador"), podemos notar que o rei só se despe verdadeiramente quando a criança chama a atenção para a sua nudez. Até aí, ele esteve sempre vestido, mesmo não tendo roupa.
 A amizade sobrevive assim enquanto se mantiver enterrados os bichos, escondidas as fendas. A velha ideia de que um inimigo é alguém cuja história ainda não ouvimos pode ser complementada com o acrescento de que um inimigo pode também ser alguém de quem já ouvimos demasiado. Ou, dito de outro modo, a definição vale exactamente do mesmo modo para a amizade: também um amigo é alguém cuja história ainda não ouvimos.

  Em Perfetti Sconosciuti, que faz zangar os amigos que descobrem os segredos?
 Talvez consigamos descortinar a sugestão de que aquele que descobre o segredo de quem lhe é próximo percebe aí que afinal há uma zona íntima daquela pessoa que ele não conhece. O amigo descobre-se agora deixado à superfície, não está tão próximo quanto julgava, pois há um espaço mais privado no qual ele pelos vistos não entrou. Julgando-se um amigo próximo, acreditava que fazia já parte desse espaço, mas afinal está ainda do lado de fora.
  A zanga maior aparece naqueles que se acreditavam mais próximos, os que partilhavam até aí a intimidade de quem agora se revela: o namorado ou marido (ou a namorada ou a mulher). A exclusão de que se descobrem vítimas (quando percebem estar fora daquela zona mais privada que julgavam habitar) será mais violenta no seu caso do que no da amizade. Esta exclusão, todavia, só é tão perturbadora porque no espaço privado, aquele do qual o namorado ou o marido se vêem excluídos, está o amante da namorada ou mulher (ou a amante do namorado ou marido) O amante é quem partilha o espaço privado, é quem afinal tem acesso à verdade íntima, à zona escondida. Para o traído, não se trata assim apenas de se ver deixado de fora daquele lugar privado, mas de descobrir um outro a ocupar esse lugar que julgava seu.
  A verdade, porém, é que isto pode ser só uma ilusão. Porque mesmo o amante poderá ser meramente alguém a quem a mulher/namorada está a mostrar uma outra superfície, uma superfície que só devido à “cegueira” do marido/namorado parece uma zona íntima. É precisamente a exclusão de um, aliás, que cria o espaço íntimo secreto em que o outro é incluído: assim que o segredo se sabe e a relação secreta vem a público, o espaço privado passa a sê-lo menos, tornando mais evidente a possibilidade de um outro espaço íntimo, ocupado por um novo amante – e assim sucessivamente.
  Podemos talvez até aventar a hipótese de que o problema do marido/namorado é o inverso do que se pensava: ele não pecou por ter falhado em chegar à zona secreta, mas sim, ao invés, precisamente porque conseguiu chegar lá. A intimidade do marido destruiu o segredo do espaço privado da mulher – de tal modo que a mulher precisou de recriar esse segredo, pois um espaço secreto é algo sem o qual talvez não possamos viver demasiado tempo. O amante é, porém, uma solução artificial para esse problema: ele serve apenas para satisfazer a necessidade de segredo perante o outro, o marido, que estava já demasiado próximo. Assim, o amante não será, muitas vezes, alguém que se convida a partilhar o espaço privado secreto que até aí fora eventualmente ocupado pelo marido, mas do qual este entretanto foi expulso, ou que este nunca chegou a ocupar. Será antes alguém que se procura como mero pretexto, como mera condição necessária para se poder criar de novo um espaço secreto – dado que o marido já partilhara o original até à exaustão. Mas se assim é, é este processo que, no fim de contas, trai a verdadeira proximidade que o marido/namorado chegou a conseguir, e a privacidade secreta que o amante não logrou nunca obter.

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