E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Amar à distância

  No "admirável mundo novo" de Aldous Huxley (Brave New World), a regra é a da satisfação imediata dos desejos e da procura constante de prazer. Um rapaz conta, por exemplo, a experiência "horrível" que teve quando uma rapariga demorou 4 semanas a aceder ao seu pedido para terem relações sexuais.
  A dificuldade na separação relativamente ao que desejamos é um reflexo importante da incapacidade de nos distanciarmos em geral. Podemos ir mais longe e aventar que neste mundo as pessoas deixam praticamente de ser seres-para-si para se tornarem seres-em-si (para usarmos as categorias propostas por Sartre em L'être et le néant). A satisfação imediata dos desejos é tão real que implica a identificação com eles: a tragédia maior neste universo é a de as pessoas serem o que são.
  Veja-se nesta linha, por exemplo, a reacção irritada de John, o "selvagem", contra Lenina, no capítulo 13: ela pretende simplesmente consumar o desejo que sente por ele, recusando, sem chegar sequer a compreender, os rituais simbólicos que ele quer instaurar antes da consumação. Para John, é precisamente nesses rituais que ele poderá encontrar (ou criar) o sentido da ligação entre eles, a própria possibilidade de se tornarem um casal. Lenina, ao invés, só tem desejo e nada mais. Ela gosta de John e só pensa nele – e isto já é estranho em relação à norma ("todos pertencem a todos", todos têm diversas ligações sexuais, prazeres que não se fixam, etc.). Mas não é ainda suficiente: Lenina gosta sem saber que gosta, não tem vocabulário para tal, não consegue distanciar-se, separar-se do seu desejo e do acto de consumação do mesmo. Ela quer resumir-se a tudo isso, identificar-se com os seus desejos e os seus gestos. Isto revela, claro, a sua má-fé: o propósito de viver como (se fosse) um ser-em-si, de se identificar com aquilo que é, como faz a generalidade das outras pessoas. De certa forma, podemos acusar Lenina de ser a personagem que revela a maior má-fé em todo aquele universo. Com efeito, diferentemente da generalidade das pessoas, que parece incapaz de deixar de ser aquilo que é (são seres-em-si, por assim dizer, genuínos), por um lado, e de outros como Bernard Marx e Helmholtz Watson, verdadeiros seres-para-si (incapazes de qualquer identificação com o que são ou sentem, mesmo fingida), por outro, ela está num meio-caminho em que pode e deve decidir lutar por assumir o distanciamento em relação ao que sente, em relação ao que é (e John, com os seus rituais, oferece-lhe essa oportunidade); mas opta antes por ser como a maioria, por se resumir ao prazer que procura e à própria procura do prazer.
  Enquanto continuar de má-fé, Lenina não conseguirá verdadeiramente amar John e tornar-se a companheira de que ele precisa. Porque o amor para John constrói-se na distância, naquela separação em que a única ligação que resta é a do olhar: se não estamos separados não nos podemos ver, não podemos sequer ter a certeza de que existe alguém mais a não sermos nós e o nosso desejo, nós e o nosso prazer tão autista. Quando John encontra Lenina a dormir (sob os efeitos da soma que tomou depois de voltar da viagem com Bernard), ele deseja-a, mas não se atreve a tocar-lhe. É assim que eles são: Lenina não vive senão na superfície de si mesma, nela habita apenas o seu desejo e nada abaixo disso. Por isso ela dorme, está como morta. John, pelo contrário, está perfeitamente acordado e vivo: ele vive na negação do seu desejo. É precisamente a distância a que ele encontra Lenina – e porque essa distância só existe para ele na medida em que ele mesmo a constrói impondo-se a proibição de a tocar – que lhe confirma que está vivo. É negando-se a si e à sua vontade que John pode afirmar tudo o que nele habita. Lenina quer beijá-lo, tocá-lo: ela deseja-o e o desejo para ela é apenas um instinto que lhe indica a necessidade de se juntar a ele. John, ao invés, deseja-a também, mas por isso mesmo tem de ficar distante. Vive na separação de si mesmo e por isso o desejo é para ele muito mais que a consumação. Porque só pode viver na distância, é também apenas à distância que John pode amar.

domingo, 18 de junho de 2017

O prazer escondido

  No capítulo 16 ("L'âme et le corps") da parte 4 do livro L’insoutenable légèreté de l’être, de Milan Kundera, Tereza recebe um convite para ir a casa de um homem com óbvias intenções sexuais. Ela ama Tomas, que, embora seu companheiro, está também constantemente com outras mulheres e relativiza o seu próprio comportamento dizendo que o sexo não tem importância em si, porque não tem de envolver amor. Tereza tem dificuldade em acreditar nisso e, de resto, já em casa do homem, diz-lhe, no último instante, que quer ir embora. Mas o homem ignora-a e avança para ela. No contacto com ele, é como se a alma de Tereza se separasse do seu corpo: “Chose étrange: ce contact la libéra aussitôt de son angoisse. Comme si, par ce contact, l'ingénieur eût montré son corps et qu'elle eût compris que l'enjeu, ce n'était pas elle (pas son âme), mais son corps et lui seul”.

  Parece que encontramos aqui um perfeito exemplo da má-fé sartriana, e, mais precisamente, do episódio da carícia. Lembre-se, com efeito, que a jovem, de que fala Sartre (L'être et le néant), ao receber na mão a carícia do rapaz enamorado, pode, numa atitude de má-fé, desligar-se da sua mão, fazer-se uma mulher sem corpo, tomar a sua mão como um mero corpo entre corpos, retirando assim o significado evidentemente sexual e compromissório da passividade face ao avanço do rapaz. Com efeito, também Tereza quer fingir que o seu corpo é apenas um entre outros: “Ce corps qui l'avait trahie et qu'elle avait chassé loin d'elle parmi les autres corps.”
  O “corpo que a tinha traído” é o corpo que não tinha sido bom o suficiente para Tomas querer estar apenas com ela sem precisar de amantes, como se explica no capítulo 6: “Tereza est immobile, envoûtée devant le miroir, et regarde son corps comme s'il lui était étranger; étranger, bien qu'au cadastre des corps ce soit le sien. Il lui donne la nausée. Il n'a pas eu la force de devenir pour Tomas le seul corps de sa vie. Elle a été trompée par ce corps. Toute une nuit, elle a respiré dans les cheveux de son mari l'odeur intime d'une autre!

  No capítulo 11, Tereza havia dito a Tomas que não conseguia evitar ter ciúmes e pedira-lhe ajuda. Ele respondera que compreendia, sabia o que ela queria e levou-a a um lugar aonde, basicamente, as pessoas se deslocavam para serem mortas; uma espécie de lugar para homicídios a pedido, onde um grupo de homens matava com espingardas as pessoas que queriam morrer. Com medo, porém, Tereza, no último instante (já no capítulo 13), acaba por dizer que não é aquela a sua vontade, pelo que eles não a matam. 
  
  Porque enviou Tomas Tereza àquele lugar? Talvez o objectivo fosse precisamente o de que ela aprendesse a desligar-se do seu corpo, obrigando-a a aceitar a separação entre a alma que ama e o corpo que sente prazer.
  Se assim for, e se Tereza aprendeu a sua lição (como parece ter acontecido, a julgar pelo sucedido em casa do homem que a convidou), então o processo de aprendizagem mostra-se fascinantemente paradoxal. Com efeito, se o propósito era o de conseguir que Tereza se desprendesse do seu corpo, a verdade é que ela acaba, no último instante, por dizer que não é aquela a sua vontade e por isso não a matam. Mais tarde, todavia, ela vem mesmo a consumar a experiência sexual com o homem estranho, sentindo-a precisamente como se fosse apenas o seu corpo a vivê-la, não ela, não a sua alma. Note-se, de resto, como ela não o ajuda a despi-la, mas também não resiste. Está, com efeito, como que desligada do corpo: “Elle avait chassé son corps loin d'elle, mais ne voulait prendre pour lui aucune responsabilité. Elle ne se défendait pas, mais ne l'aidait pas non plus. Son âme voulait ainsi montrer que, tout en désapprouvant ce qui était en train de se produire, elle avait choisi de rester neutre.

  Poderá ser frutuoso contrapor as duas experiências: no monte dos homicídios Tereza riposta que aquela não é a sua vontade e assim o homem não pode fazer nada, não pode disparar sobre ela. Ali, há uma ligação entre alma e corpo e por isso a vontade daquela impede que o homem actue contra este. Já em casa do desconhecido, pelo contrário, alma e corpo estão separados, e assim a recusa dada em voz alta pela alma não interessa ao homem, porque ele apenas atinge o corpo dela.
  Claro que, no fim de contas, não há uma verdadeira separação. Trata-se de uma encenação de má-fé, pois a alma, no fundo, aceita aquilo (se realmente não aceitasse, de resto, também não seria a separação encenada a evitar a violação): “Elle sentait son excitation qui était d'autant plus grande qu'elle était excitée contre son gré. Déjà, son âme consentait secrètement à tout ce qui était en train de se passer, mais elle savait aussi que pour prolonger cette grande excitation, son acquiescement devait rester tacite. Si elle avait dit oui à voix haute, si elle avait accepté de participer de plein gré à la scène d'amour, l'excitation serait retombée. Car ce qui excitait l'âme, c'était justement d'être trahie par le corps qui agissait contre sa volonté, et d'assister à cette trahison.
  E é realmente muito interessante este complexo jogo de má-fé, que nos mostra que a atitude de má-fé, mais do que uma simples e hipócrita procura de negar o prazer que realmente se sente, poderá ser mesmo a única via de possibilitar esse prazer secreto: a alma deleita-se com a rebeldia do corpo, pois esta afinal corresponde ao desejo profundo da alma de ser desobedecida, de ser traída. Foi a via para este prazer que Tereza descobriu quando, depois de separar alma e corpo, recusou a morte, salvando o corpo pela recusa da alma. Porque aí pôde descobrir a ligação escondida que entre os dois se mantém e não pode ser cortada pelo jogo de quem os quer separar. Mas mais do que isso: nesse jogo, não se trata verdadeiramente de separar corpo e alma e sim de encenar essa separação para, às escondidas, se gozar a ligação que se sabe ainda existir. E temos assim de rir diante do pregador moralista que condena o prazer da carne, o deleite ostensivo do corpo que, indiferente a proibições e elevações do espírito, quer gozar o efémero sem remorso. Porque essa alegria tão escandalosa do corpo revela-se afinal o prazer obsceno da alma que por detrás dele goza em segredo.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Iago e a escuridão


H. C. Selous

  Na peça Othello, de Shakespeare, Iago manipula os vários personagens – Otelo, Rodrigo, Cássio... –, conseguindo que Otelo mate Desdémona e chegando a matar ele mesmo a sua mulher Emília e Rodrigo. Quando Otelo exige que lhe seja perguntado porque fez tudo aquilo, Iago responde: “Demand me nothing: what you know, you know: From this time forth I never will speak word.”

  O que move Iago? A pergunta recebeu nas anotações de Samuel Taylor Coleridge a justamente famosa designação de "motive-hunting of motiveless Malignity". A malignidade de Iago será como a rosa de Silesius: sem porquê.
  Pode parecer isto estranho a princípio, quando notamos a multiplicidade de motivos que lhe têm sido atribuídos: rancor contra Otelo por este ter escolhido promover Cássio em vez de si e consequente inveja de Cássio, ódio racial ao mouro, etc. Parece ter razão, todavia, Harold C. Goddard (The Meaning of Shakespeare, vol. II) quando descobre aí meras ocasiões, e não tanto causas, para o ódio de Iago: “Iago's jealousy of Cassio is real enough, but it is the occasion rather than the cause of his plot against Othello; and the other reasons he assigns for his hatred in the course of the play are not so much motives as symptoms of a deeply underlying condition.
  De resto, isto valerá igualmente para a "condição de escravo" (e consequentes sentimento de inferioridade e desejo de poder) de que fala o próprio Goddard: mesmo que admitamos reconhecê-la como real, ela não pode esgotar o que há para explicar na maldade de Iago. Estamos assim mais perto de Hazlitt (Characters of Shakespeare's Plays), quando defende Shakespeare de quem apontava a inverosimilhança do personagem: “Some persons, more nice than wise, have thought this whole character unnatural, because his villainy is without a sufficient motive. Shakespeare, who was as good a philosopher as he was a poet, thought otherwise. He knew that the love of power, which is another name for the love of mischief, is natural to man.” Com efeito, só este amor pela maldade, em si mesmo inexplicável, pode bastar para explicar a maldade de quem o sente.
  Depois de ter falado mais que qualquer outro ao longo da peça, Iago recusa-se a responder com motivos – mais: recusa mesmo que lhe seja perguntado seja o que for ("Demand me nothing"). Aquilo que ele é, aquilo que ele traz consigo, não admite sequer questionamento. E já isto sugere que nele não se trata simplesmente de esconder algo dos olhos alheios, como se actuasse aí um prazer perverso na ocultação ou um medo de ser descoberto. Muito mais do que isso, trata-se de nele se encobrir aquilo que, existindo, não pode nunca ser compreendido e, por isso, não pode chegar a sair e mostrar-se. Porque perguntar por razões supõe continuar a falar a mesma linguagem. Aquilo que move Iago expressa-se em mentiras, insinuações, violência, ódio e mesquinhez (mas também, é preciso não esquecer, em sensibilidade estética, imaginação, improviso e arte). É com estes gestos que ele comunica e age no mundo. Ora, a pergunta pelas razões quer escavar até chegar ao subterrâneo daquelas manifestações. Aí, todavia, trata-se de ir demasiado fundo. Aonde mora a maldade de Iago não podemos chegar, e a história que dele contemos – as feridas no seu amor-próprio, a impotência perante a adversidade, o sentimento de inferioridade – são apenas cortinas com que tapamos a escuridão para fingir que atrás delas nada mais se esconde. Todas as perguntas – toda a tentativa de puxar a cortina para descobrir o que rosna por detrás – são, por isso, inúteis: "Demand me nothing". 
    Nem por isso devemos esquecer que, de facto, há algo que ali mora e actua neste lado do mundo. A maldade de Iago não tem por base o vazio. Nada há de banal nessa maldade. Se o Eichmann de Hannah Arendt (Eichmann in Jerusalem - A report on the banality of evil) era simplesmente um lugar acidental do mal – alguém que se recusava a pensar criticamente as instruções que recebia, executando-as com a superficialidade de uma tarefa burocrática, sem chegar a interiorizar o significado horrendo das suas acções –, Iago é um lugar verdadeiramente original. O mal não o visita por acaso, antes vem-lhe de dentro. E é esse mal que lhe dá conteúdo. Iago, como viu Goddard, está sempre em guerra. E é essa permanente mobilização contra o inimigo que lhe assegura a vitalidade: Otelo (e o desejo de o destruir) torna-se tudo para Iago porque a guerra é tudo para ele. Não admira, assim, que Iago se cale depois de consumados os seus planos destruidores: sem guerra, ele apaga-se – ou, nas palavras de Harold Bloom: "Othello was everything to Iago, because war was everything; passed over, Iago is nothing, and in warring against Othello, his war is against ontology". O vazio ameaça Iago e, ironicamente, são aqueles que ele mais odeia que o salvam de ser engolido pelo nada. A sua nulidade só se preenche de maldade e esta precisa do inimigo para se alimentar. Por isso soa tão certeira a evocação que Goddard faz da sugestão de Arkady Dolgoruky (em O Adolescente, de Dostoiévski) de que talvez a aranha ame a mosca que apanhou na teia. Também Iago tem de amar diabolicamente Otelo e Desdémona.
  O vazio que ameaça Iago não é, porém, o de Eichmann. Bem pelo contrário. A maldade de Eichmann constrói-se precisamente do lugar vazio que nele encontra, um lugar que poderia ser preenchido por ela como por qualquer outro acidente que lhe tivesse acontecido. De certo modo, é precisamente esse acaso, essa susceptibilidade de ter sido daquela maneira como poderia ter sido de outra completamente diversa, que constituem nele a maldade propriamente dita. Não assim com Iago. Se precisa de um objecto para ganhar direcção e caminhar, a sua maldade tem verdadeira substância, tem corpo próprio. É verdade que não chegamos, não podemos chegar, a conhecer esse monstro que por detrás do monstro se esconde e dentro do monstro vive. Mas afinal é isso mesmo que torna assustadora a escuridão: a ideia de que não conseguimos descortinar o que nela se oculta, sabendo, no entanto, que é algo maligno e que, embora não o vejamos, está lá sem dúvida pronto para nos apanhar.