H. C. Selous
Na peça Othello, de Shakespeare, Iago manipula os vários personagens – Otelo, Rodrigo, Cássio... –, conseguindo que Otelo mate Desdémona e chegando a matar ele mesmo a sua mulher Emília e Rodrigo. Quando Otelo exige que lhe seja perguntado porque fez tudo aquilo, Iago responde: “Demand me nothing: what you know, you know: From this time forth I never will speak word.”
O que move Iago? A pergunta recebeu nas anotações de Samuel Taylor Coleridge a justamente famosa designação de "motive-hunting of motiveless Malignity". A malignidade de Iago será como a rosa de Silesius: sem porquê.
Pode parecer isto estranho a princípio, quando notamos a multiplicidade de motivos que lhe têm sido atribuídos: rancor contra Otelo por este ter escolhido promover Cássio em vez de si e consequente inveja de Cássio, ódio racial ao mouro, etc. Parece ter razão, todavia, Harold C. Goddard (The Meaning of Shakespeare, vol. II) quando descobre aí meras ocasiões, e não tanto causas, para o ódio de Iago: “Iago's jealousy of Cassio is real enough, but it is the occasion rather than the cause of his plot against Othello; and the other reasons he assigns for his hatred in the course of the play are not so much motives as symptoms of a deeply underlying condition.”
De resto, isto valerá igualmente para a "condição de escravo" (e consequentes sentimento de inferioridade e desejo de poder) de que fala o próprio Goddard: mesmo que admitamos reconhecê-la como real, ela não pode esgotar o que há para explicar na maldade de Iago. Estamos assim mais perto de Hazlitt (Characters of Shakespeare's Plays), quando defende Shakespeare de quem apontava a inverosimilhança do personagem: “Some persons, more nice than wise, have thought this whole character unnatural, because his villainy is without a sufficient motive. Shakespeare, who was as good a philosopher as he was a poet, thought otherwise. He knew that the love of power, which is another name for the love of mischief, is natural to man.” Com efeito, só este amor pela maldade, em si mesmo inexplicável, pode bastar para explicar a maldade de quem o sente.
Depois de ter falado mais que qualquer outro ao longo da peça, Iago recusa-se a responder com motivos – mais: recusa mesmo que lhe seja perguntado seja o que for ("Demand me nothing"). Aquilo que ele é, aquilo que ele traz consigo, não admite sequer questionamento. E já isto sugere que nele não se trata simplesmente de esconder algo dos olhos alheios, como se actuasse aí um prazer perverso na ocultação ou um medo de ser descoberto. Muito mais do que isso, trata-se de nele se encobrir aquilo que, existindo, não pode nunca ser compreendido e, por isso, não pode chegar a sair e mostrar-se. Porque perguntar por razões supõe continuar a falar a mesma linguagem. Aquilo que move Iago expressa-se em mentiras, insinuações, violência, ódio e mesquinhez (mas também, é preciso não esquecer, em sensibilidade estética, imaginação, improviso e arte). É com estes gestos que ele comunica e age no mundo. Ora, a pergunta pelas razões quer escavar até chegar ao subterrâneo daquelas manifestações. Aí, todavia, trata-se de ir demasiado fundo. Aonde mora a maldade de Iago não podemos chegar, e a história que dele contemos – as feridas no seu amor-próprio, a impotência perante a adversidade, o sentimento de inferioridade – são apenas cortinas com que tapamos a escuridão para fingir que atrás delas nada mais se esconde. Todas as perguntas – toda a tentativa de puxar a cortina para descobrir o que rosna por detrás – são, por isso, inúteis: "Demand me nothing".
Nem por isso devemos esquecer que, de facto, há algo que ali mora e actua neste lado do mundo. A maldade de Iago não tem por base o vazio. Nada há de banal nessa maldade. Se o Eichmann de Hannah Arendt (Eichmann in Jerusalem - A report on the banality of evil) era simplesmente um lugar acidental do mal – alguém que se recusava a pensar criticamente as instruções que recebia, executando-as com a superficialidade de uma tarefa burocrática, sem chegar a interiorizar o significado horrendo das suas acções –, Iago é um lugar verdadeiramente original. O mal não o visita por acaso, antes vem-lhe de dentro. E é esse mal que lhe dá conteúdo. Iago, como viu Goddard, está sempre em guerra. E é essa permanente mobilização contra o inimigo que lhe assegura a vitalidade: Otelo (e o desejo de o destruir) torna-se tudo para Iago porque a guerra é tudo para ele. Não admira, assim, que Iago se cale depois de consumados os seus planos destruidores: sem guerra, ele apaga-se – ou, nas palavras de Harold Bloom: "Othello was everything to Iago, because war was everything; passed over, Iago is nothing, and in warring against Othello, his war is against ontology". O vazio ameaça Iago e, ironicamente, são aqueles que ele mais odeia que o salvam de ser engolido pelo nada. A sua nulidade só se preenche de maldade e esta precisa do inimigo para se alimentar. Por isso soa tão certeira a evocação que Goddard faz da sugestão de Arkady Dolgoruky (em O Adolescente, de Dostoiévski) de que talvez a aranha ame a mosca que apanhou na teia. Também Iago tem de amar diabolicamente Otelo e Desdémona.
O vazio que ameaça Iago não é, porém, o de Eichmann. Bem pelo contrário. A maldade de Eichmann constrói-se precisamente do lugar vazio que nele encontra, um lugar que poderia ser preenchido por ela como por qualquer outro acidente que lhe tivesse acontecido. De certo modo, é precisamente esse acaso, essa susceptibilidade de ter sido daquela maneira como poderia ter sido de outra completamente diversa, que constituem nele a maldade propriamente dita. Não assim com Iago. Se precisa de um objecto para ganhar direcção e caminhar, a sua maldade tem verdadeira substância, tem corpo próprio. É verdade que não chegamos, não podemos chegar, a conhecer esse monstro que por detrás do monstro se esconde e dentro do monstro vive. Mas afinal é isso mesmo que torna assustadora a escuridão: a ideia de que não conseguimos descortinar o que nela se oculta, sabendo, no entanto, que é algo maligno e que, embora não o vejamos, está lá sem dúvida pronto para nos apanhar.
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