No capítulo 16 ("L'âme et le corps") da parte 4 do livro L’insoutenable légèreté de l’être, de Milan Kundera, Tereza recebe um convite para ir a casa de um homem com óbvias intenções sexuais. Ela ama Tomas, que, embora seu companheiro, está também constantemente com outras mulheres e relativiza o seu próprio comportamento dizendo que o sexo não tem importância em si, porque não tem de envolver amor. Tereza tem dificuldade em acreditar nisso e, de resto, já em casa do homem, diz-lhe, no último instante, que quer ir embora. Mas o homem ignora-a e avança para ela. No contacto com ele, é como se a alma de Tereza se separasse do seu corpo: “Chose étrange: ce contact la libéra aussitôt de son angoisse. Comme si, par ce contact, l'ingénieur eût montré son corps et qu'elle eût compris que l'enjeu, ce n'était pas elle (pas son âme), mais son corps et lui seul”.
Parece que encontramos aqui um perfeito exemplo da má-fé sartriana, e, mais precisamente, do episódio da carícia. Lembre-se, com efeito, que a jovem, de que fala Sartre (L'être et le néant), ao receber na mão a carícia do rapaz enamorado, pode, numa atitude de má-fé, desligar-se da sua mão, fazer-se uma mulher sem corpo, tomar a sua mão como um mero corpo entre corpos, retirando assim o significado evidentemente sexual e compromissório da passividade face ao avanço do rapaz. Com efeito, também Tereza quer fingir que o seu corpo é apenas um entre outros: “Ce corps qui l'avait trahie et qu'elle avait chassé loin d'elle parmi les autres corps.”
O “corpo que a tinha traído” é o corpo que não tinha sido bom o suficiente para Tomas querer estar apenas com ela sem precisar de amantes, como se explica no capítulo 6: “Tereza est immobile, envoûtée devant le miroir, et regarde son corps comme s'il lui était étranger; étranger, bien qu'au cadastre des corps ce soit le sien. Il lui donne la nausée. Il n'a pas eu la force de devenir pour Tomas le seul corps de sa vie. Elle a été trompée par ce corps. Toute une nuit, elle a respiré dans les cheveux de son mari l'odeur intime d'une autre!“
No capítulo 11, Tereza havia dito a Tomas que não conseguia evitar ter ciúmes e pedira-lhe ajuda. Ele respondera que compreendia, sabia o que ela queria e levou-a a um lugar aonde, basicamente, as pessoas se deslocavam para serem mortas; uma espécie de lugar para homicídios a pedido, onde um grupo de homens matava com espingardas as pessoas que queriam morrer. Com medo, porém, Tereza, no último instante (já no capítulo 13), acaba por dizer que não é aquela a sua vontade, pelo que eles não a matam.
Porque enviou Tomas Tereza àquele lugar? Talvez o objectivo fosse precisamente o de que ela aprendesse a desligar-se do seu corpo, obrigando-a a aceitar a separação entre a alma que ama e o corpo que sente prazer.
Se assim for, e se Tereza aprendeu a sua lição (como parece ter acontecido, a julgar pelo sucedido em casa do homem que a convidou), então o processo de aprendizagem mostra-se fascinantemente paradoxal. Com efeito, se o propósito era o de conseguir que Tereza se desprendesse do seu corpo, a verdade é que ela acaba, no último instante, por dizer que não é aquela a sua vontade e por isso não a matam. Mais tarde, todavia, ela vem mesmo a consumar a experiência sexual com o homem estranho, sentindo-a precisamente como se fosse apenas o seu corpo a vivê-la, não ela, não a sua alma. Note-se, de resto, como ela não o ajuda a despi-la, mas também não resiste. Está, com efeito, como que desligada do corpo: “Elle avait chassé son corps loin d'elle, mais ne voulait prendre pour lui aucune responsabilité. Elle ne se défendait pas, mais ne l'aidait pas non plus. Son âme voulait ainsi montrer que, tout en désapprouvant ce qui était en train de se produire, elle avait choisi de rester neutre.”
Poderá ser frutuoso contrapor as duas experiências: no monte dos homicídios Tereza riposta que aquela não é a sua vontade e assim o homem não pode fazer nada, não pode disparar sobre ela. Ali, há uma ligação entre alma e corpo e por isso a vontade daquela impede que o homem actue contra este. Já em casa do desconhecido, pelo contrário, alma e corpo estão separados, e assim a recusa dada em voz alta pela alma não interessa ao homem, porque ele apenas atinge o corpo dela.
Claro que, no fim de contas, não há uma verdadeira separação. Trata-se de uma encenação de má-fé, pois a alma, no fundo, aceita aquilo (se realmente não aceitasse, de resto, também não seria a separação encenada a evitar a violação): “Elle sentait son excitation qui était d'autant plus grande qu'elle était excitée contre son gré. Déjà, son âme consentait secrètement à tout ce qui était en train de se passer, mais elle savait aussi que pour prolonger cette grande excitation, son acquiescement devait rester tacite. Si elle avait dit oui à voix haute, si elle avait accepté de participer de plein gré à la scène d'amour, l'excitation serait retombée. Car ce qui excitait l'âme, c'était justement d'être trahie par le corps qui agissait contre sa volonté, et d'assister à cette trahison.”
E é realmente muito interessante este complexo jogo de má-fé, que nos mostra que a atitude de má-fé, mais do que uma simples e hipócrita procura de negar o prazer que realmente se sente, poderá ser mesmo a única via de possibilitar esse prazer secreto: a alma deleita-se com a rebeldia do corpo, pois esta afinal corresponde ao desejo profundo da alma de ser desobedecida, de ser traída. Foi a via para este prazer que Tereza descobriu quando, depois de separar alma e corpo, recusou a morte, salvando o corpo pela recusa da alma. Porque aí pôde descobrir a ligação escondida que entre os dois se mantém e não pode ser cortada pelo jogo de quem os quer separar. Mas mais do que isso: nesse jogo, não se trata verdadeiramente de separar corpo e alma e sim de encenar essa separação para, às escondidas, se gozar a ligação que se sabe ainda existir. E temos assim de rir diante do pregador moralista que condena o prazer da carne, o deleite ostensivo do corpo que, indiferente a proibições e elevações do espírito, quer gozar o efémero sem remorso. Porque essa alegria tão escandalosa do corpo revela-se afinal o prazer obsceno da alma que por detrás dele goza em segredo.
E é realmente muito interessante este complexo jogo de má-fé, que nos mostra que a atitude de má-fé, mais do que uma simples e hipócrita procura de negar o prazer que realmente se sente, poderá ser mesmo a única via de possibilitar esse prazer secreto: a alma deleita-se com a rebeldia do corpo, pois esta afinal corresponde ao desejo profundo da alma de ser desobedecida, de ser traída. Foi a via para este prazer que Tereza descobriu quando, depois de separar alma e corpo, recusou a morte, salvando o corpo pela recusa da alma. Porque aí pôde descobrir a ligação escondida que entre os dois se mantém e não pode ser cortada pelo jogo de quem os quer separar. Mas mais do que isso: nesse jogo, não se trata verdadeiramente de separar corpo e alma e sim de encenar essa separação para, às escondidas, se gozar a ligação que se sabe ainda existir. E temos assim de rir diante do pregador moralista que condena o prazer da carne, o deleite ostensivo do corpo que, indiferente a proibições e elevações do espírito, quer gozar o efémero sem remorso. Porque essa alegria tão escandalosa do corpo revela-se afinal o prazer obsceno da alma que por detrás dele goza em segredo.
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