E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A cabeça na lua, os pés na terra

  O Professor Girassol e os irmãos Dupond e Dupont são três dos principais personagens da série de banda desenhada Tintin.
  Muito diferentes nos seus interesses, modo de ser, hábitos e profissões, a contraposição entre eles pode ajudar-nos a trazer à luz aspectos interessantes que, realçados pelo contraste, passam a surgir com mais evidência.


  Aparentemente, o Professor Girassol é um alienado. Não é estranho que Castafiore o reconheça pelas supostas viagens de balão que ele teria realizado (Les Bijoux de la Castafiore) ou que seja ele o grande impulsionador da viagem à lua (Objectif Lune), já que é nesse mundo (o da lua) que ele parece viver. O seu distanciamento surge evidente ao nível do contacto mais superficial, nas preocupações que o guiam e nos métodos que elege para prosseguir os seus objectivos.
  O Professor Girassol é, como ele diz, duro de ouvido e, por isso, são frequentes as ocasiões em que substitui as palavras que lhe dirigem por outras que ele ouve, mas nunca foram ditas. Assim, Girassol parece embrenhado numa permanente conversa com alguém que não o seu interlocutor. Tais conversas chegam ao ponto de o alienar por instantes de si mesmo: como na ocasião em que se indigna por lhe parecer ouvir Tintim referir-se constantemente à sua irmã; para instantes depois se lembrar de que, na verdade, não tem irmã (Tintin et les Picaros) Os seus interesses recaem muitas vezes sobre objectos que não interessam ou não preocupam do mesmo modo aqueles que o rodeiam. E mesmo quando concentrado em resolver os mesmos problemas, os seus métodos resultam muitas vezes caricatos. Assim, é frequente vê-lo tentar descobrir algum local ou objecto perdido seguindo a orientação misteriosa do seu pêndulo, ao qual ninguém mais dá muito crédito.


  Muito diferentemente, os irmãos Dupondt parecem, num primeiro contacto, perfeitamente sintonizados com a realidade. São inspectores da polícia e o seu trabalho é, no fundo, descobrir o que se passa e encontrar os criminosos, os desviantes. Sempre sérios e profissionais, os Dupondt aparentam ter os pés perfeitamente assentes na terra e estar completamente integrados na lógica do quotidiano, ao contrário do Professor.

  Um olhar mais atento vem infirmar tudo isto.
  Guiado pelo seu pêndulo, nunca sabemos muito bem para onde se dirige o Professor Girassol e, por isso, hesitaríamos em acompanhá-lo. A verdade, todavia, é que ele nunca se perde. Quando se tratou de procurar o tesouro de Rackham, o Vermelho (Le Trésor de Rackham le Rouge), ninguém achou que o seu pêndulo fosse um bom orientador, mas, no fim de contas, foi esse objecto que o levou a encontrá-lo.
  Ao contrário, os Dupondt perdem-se com grande facilidade. A sua falta de orientação leva-os mesmo, em certa ocasião, a perseguirem-se a si mesmos, andando em círculos e julgando que perseguem outrem (Tintin au Pays de l'Or Noir). É esse, de facto, o caminho dos Dupondt: perfeitamente situados, eles estão sempre perdidos; inteiramente informados, nunca sabem bem o que se passa. É como se orientassem o seu percurso estudando o mapa de outro país que não aquele em que se encontram. Com Girassol a questão inverte-se: ele parece caminhar numa realidade distante, num percurso aparentemente sem nexo. Mas chega sempre ao seu destino. Desconectado da realidade e falando uma linguagem diversa da que consta das placas de orientação, o Professor acaba no lugar certo. É ele que não parece fazer ideia do que se passa, mas são os Dupondt que, perfeitamente cientes do que têm de fazer, nunca fazem nada como deve ser. É Girassol que parece ter um percurso só seu; mas são os Dupondt que andam em círculos. É Girassol que, não percebendo correctamente o que os outros lhe dizem, segue falando numa conversa só sua. Mas são os Dupondt que se perseguem a si mesmos.
  Quando vão à China (Le Lotus Bleu), os Dupondt disfarçam-se, de modo a passarem despercebidos. Mas o seu disfarce, baseado em preconceitos culturais infundados, produz o efeito contrário ao pretendido: fá-los sobressair e chama a atenção de uma multidão. São assim os Dupondt: seguem todas as regras, mas nunca ganham o jogo.
  Conscienciosos e zelosos, os Dupondt agem como pessoas práticas que não se perdem com teorias, ao contrário do Professor, que, preocupado sempre com questões distantes, parece perdido na estratosfera. Mas afinal são os Dupondt que, convencidos de estarem bem assentes na Terra, se descobrem a caminho da lua (On a Marché sur la Lune). E se é Girassol quem lidera a expedição de ida e volta da lua, ele tem sempre noção de onde está em cada momento.
  Os Dupondt falam a linguagem de toda a gente, usam raciocínios sensatos e seguem todas as regras que lhes são apresentadas. Mas quando chega o momento de se agarrarem a algo para não caírem, só sabem agarrar-se a si mesmos e, claro, caem (On a Marché sur la Lune). Já Girassol, aparentemente perdido numa outra conversa, deambulando num qualquer outro lugar, orienta-se afinal perfeitamente num mundo que não parece ser o seu, mas onde é sempre bem-vindo. Não sabemos bem onde se agarra ele; mas podemos estar seguros de que não vai cair.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A gaiola vazia

  No livro Breakfast at Tiffany's, de Truman Capote, Holly Golightly, na primeira conversa com o narrador, seu vizinho, sobre o gato que vive em sua casa, explica-lhe que o animal não lhe pertence, tal como ela não lhe pertence a ele; apenas vivem juntos: “[w]e just sort of took up by the river one day, we don't belong to each other: he's an independent, and so am I”. O gato não tem sequer nome. Por isso, prestes a partir no final da história, Holly manda parar a limousine que a leva ao aeroporto e larga o gato num beco. O gato parece não querer separar-se dela, mas Holly escorraça-o e vai embora. Explica depois ao narrador que é assim mesmo que deve ser: ela e o gato continuam independentes, nunca se prometeram nada. De imediato, porém, toma consciência de si mesma e volta atrás, mas o gato já desapareceu. Arrependida, confessa-se ao narrador: “[o]h, Jesus God. We did belong to each other. He was mine.

  Que vínculo é esse que Holly percebe, tarde demais, ter estabelecido com o seu gato sem nome, que só lhe parece evidente depois de o animal ter desaparecido?
  Os dois são livres. Não há compromisso ou dever que os obriguem ao que quer que seja, e assim parece que não têm verdadeiramente ligação, como Holly sugeriu. Talvez perceba depois que, afinal, pode ser precisamente esse desprendimento o que os une.
  Juras e compromissos serviriam apenas para construir uma ligação artificial, para erigir uma prisão cujas grades seriam postas pelos próprios prisioneiros. Teriam então uma relação feita de obrigações, e ficariam unidos por um vínculo superficial, amarrados à promessa com que se condenaram. Em vez de tudo isso, Holly acaba por descobrir que o descomprometimento com que ambos se abordam, o acaso do seu encontro e a liberdade que os une acabaram por gerar entre eles uma ligação mais profunda: menos perceptível, mas, no seu modo, mais verdadeira.
  Não quer isto dizer que Holly se enganou quando garantia que eles não se pertenciam. Em certo sentido, estava certa: nenhum deles estava preso ao outro, na medida em que nenhum estava obrigado a ficar com o outro. Mas é precisamente porque o gato, apesar de não lhe pertencer, ter querido ficar com ela e segui-la que sabemos que aquele era o gato dela. E é precisamente porque ela, sem o adoptar ou torná-lo sua posse, tomou conta dele e sentiu a sua falta, que ela também já pertencia ao gato. E assim eles já eram um do outro.
  Que lição afinal aprende Holly? Ela já sabia que nem todas as prisões nos são impostas de fora. Às vezes, as prisões mais resistentes são precisamente as que nós mesmos erguemos. É isso uma promessa para Holly: uma gaiola que oferecemos aos outros, para que nos fechem lá dentro. O que ela desconhece, porém, é que é possível outro modo de pertença, outro vínculo, em que permanecemos livres. O gato sabe disso, mas ela ainda não: precisa de o perder para aprendê-lo.
  Conhecendo o apreço que o narrador tinha por uma bonita e valiosa gaiola para pássaros que vira à venda, Holly oferece-lha, com o pedido de que ele nunca lá prenda um ser vivo (Promise me, though. Promise you'll never put a living thing in it.). Uma prisão é, com efeito, a morte para ela. Não admira que evite o jardim zoológico (Holly said she couldn't bear to see anything in a cage). Como não surpreende que tenha abandonado o marido e restante família. Pássaro frágil que era, sentiu-se naturalmente confortável com um homem que sabia tratar tais criaturas (“...you don't know the sweetness of him, the confidence he can give to birds and brats and fragile things like that”). Mas continua a ser uma criatura selvagem. Uma ligação baseada em deveres de agradecimento (“Anyone who ever gave you confidence, you owe them a lot) só podia tornar-se uma prisão para ela. E por isso tinha de partir.
  A história de Holly e do marido lembra, neste ponto, a de Buck e Thornton, no livro The Call of the Wild, de Jack London. Thornton salva e cuida de Buck, um cão que passa a adorá-lo e protegê-lo. Mas Buck é uma criatura da floresta, e, sentindo o chamamento da vida selvagem, vai-se progressivamente afastando, tal como Holly, que todos os dias chegava um pouco mais longe nas suas digressões. É esse chamamento que, segundo parece, fatalmente levará Holly, Buck e outras criaturas selvagens para longe. Indomesticáveis, eles levarão consigo os corações daqueles que, como o marido de Holly, nunca poderão seguir o conselho que esta dá a Joe Bell: you can't give your heart to a wild thing”.
  Holly aprende, afinal, que também as criaturas selvagens entregam por vezes o seu coração. Essa é a prisão livre em que podem viver: obrigadas por dever nenhum, presas por nenhuma corrente, elas entregam-se por sua vontade, vinculadas apenas pelo desejo. Holly oferece ao narrador uma gaiola vazia, pedindo-lhe que a mantenha assim e mostrando às avessas a única prisão que ela pode habitar: uma gaiola sem grades. Oferece-lhe uma gaiola sem nada dentro e deste modo explica-lhe que ela traz dentro de si mesma a única gaiola que a poderá prender.
  No fim de contas, há uma bonita lição de amor na história de Holly. A sua dor quando percebe que o gato, o mais selvagem dos animais domésticos, desapareceu, mostra, com efeito, que sente amor por ele. Que amor é esse? O único de que a nómada e desprendida Holly será capaz. O verdadeiro. Aquele que não se prometeu e, por isso, não tinha de existir.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O rei inexistente

  O rei que protagoniza a história "Un re in ascolto" (Italo Calvino) é um prisioneiro no seu palácio: obrigado a permanecer no trono, não pode passear sequer pelas salas, muito menos pelas ruas.

  Uma das razões que o rei dá para não poder sair do trono é a de que quando voltasse poderia encontrar alguém no seu lugar, eventualmente até igual a si. Este motivo parece-nos estranho quando pensamos no rei como a única pessoa a poder ocupar o trono. A sugestão aqui, no entanto, não contraria essa ideia, antes lhe acrescenta uma ressalva particular: o rei será a única pessoa a ocupar o trono, mas não há apenas uma pessoa que possa ser rei. Só se senta ali quem use a coroa, mas esta não está destinada a ninguém em particular. 
  É indiferente quem usa a coroa. O rei pode ser este ou outro qualquer. O que interessa é que se mantenha no trono. Resta saber, porém, o que faz verdadeiramente este rei ali sentado. Chega a governar alguma coisa?
  O rei vive num constante medo de um golpe de Estado, de uma traição, de uma deposição. A sua ânsia, além de o fazer procurar coisas fora do comum, vai ao ponto de o levar a suspeitar da própria normalidade dos acontecimentos: o facto de as coisas seguirem o seu rumo habitual torna-se um sinal de que o rei já foi deposto e já se deu a revolução. Tudo continua igual, mas o palácio já pertence aos usurpadores; se o rei ainda não foi informado, tal comprova somente que já não conta para nada. Esquecido no seu trono de brincar, a sua condenação é tão fatal que não há sequer pressa em cumpri-la; ele pode ficar ali mais um tempo, pois não atrapalha ninguém. 
  Esta suspeita basta para comprovar que a realidade que tem o rei por centro funciona exactamente do mesmo modo esteja ele realmente a reinar ou não. Deste modo, é inegável que ele não governa o que quer que seja. E assim o trono que o rei ocupa assemelha-se à caixa que guarda o escaravelho que Wittgenstein refere no § 293 das suas Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen): supondo que cada participante numa conversa tem uma caixa com um escaravelho; que cada um só consegue espreitar a sua caixa, mas não as dos outros, e que, não obstante, todos usam a expressão "escaravelho" sem disputas quanto ao seu significado, então não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto. Neste sentido, o rei senta-se no trono como o escaravelho na caixa: tal como precisamos da palavra "escaravelho" para a conversa se poder desenrolar, também é preciso o rei para as coisas continuarem a acontecer no reino. Mas, na prática, tal como é indiferente se há de facto um escaravelho na caixa, parece também indiferente se há alguém debaixo da coroa. O rei é, portanto, a pessoa mais importante de todo o reino, mas também a mais insignificante.
  O rei cai então na mesma ilusão que ataca um outro monarca: aquele que o Principezinho encontra no asteróide 325 (Saint-Exupéry, Le Petit Prince), que garantia governar todas as estrelas e planetas do firmamento. Também o rei à escuta de Calvino tem momentos em que se convence de que tudo no palácio acontece apenas por sua vontade, incluindo o voo das moscas. Crê um que decide sobre os movimentos dos astros e outro sobre o trajecto das moscas: não obstante a diferença cósmica, a ilusão é a mesma. A analogia com a situação do escaravelho ajuda-nos a perceber melhor, de todo o modo, a profundidade da tragédia da sua ignorância: sabem talvez que para o universo é indiferente que eles existam; mas não sabem que por isso mesmo não existem.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Estranhos aos nossos olhos


  No episódio "Person or persons unknown" (John Brahm), da série The Twilight Zone, David Gurney acorda uma manhã e descobre que ninguém se lembra dele: a sua mulher, patrão, colegas e amigos negam reconhecê-lo e todas as provas documentais da sua existência desapareceram. É internado num manicómio, onde lhe garantem que a identidade que ele reclama foi inventada por ele em delírio. No final, acorda do pesadelo, mas não reconhece o rosto da mulher deitada ao seu lado, apesar de ela agir e falar como a sua companheira.

  A primeira parte desta história parece trazer-nos uma lição ensinada já várias vezes: não podemos impor aos outros a nossa identidade. Na verdade, a identidade que projectamos para nós próprios não é aquela que projectamos para fora. Que acontece a David Gurney? Ele falha em realizar o impossível: projectar para o exterior a mesma identidade que projecta interiormente. O fracasso é inevitável e todos o rejeitam, i. e., não o reconhecem.
  Gurney quis trazer para fora a identidade interna. Porque não tem identidade externa ou porque as confunde, usa no exterior o que só por dentro pode viver. E isto leva-nos a concluir que, na verdade, mesmo este rosto interno só existe nos olhos de quem o vê, ou seja, do seu dono. É sempre o público que dá vida à peça e é por haver dois públicos que carregamos duas identidades. Gurney confundiu as coisas: julgou poder usar a mesma identidade dentro e fora, quando na verdade estava a misturar os públicos: o que os outros vêem não é o que ele vê. Nesta linha, resulta mais óbvia a ironia da cena em que Gurney encontra uma fotografia onde surge agarrado à mulher que garante não o conhecer, embora ele alegue ser seu marido; mais tarde, quando exibe a sua prova, descobre que a mulher desapareceu da fotografia e que esta o mostra apenas a ele agarrando o ar. Ora, como podemos perceber, é Gurney o verdadeiro fantasma: a imagem de si que ele exibe na foto só pode existir dentro dele, nesse mundo interior que mais ninguém pode habitar.
  É fantástico descobrir depois que, ao acordar, Gurney não reconhece a mulher deitada ao seu lado, apesar de ela o tratar como seu marido. Que significa isto?
  Apressamo-nos frequentemente a tentar olvidar os nossos pesadelos. Não paramos para pensar se eles poderão trazer uma lição útil para a vigília. É o que sucede com Gurney. Ele conseguiu sair do pesadelo: voltou ao mundo exterior com a identidade exterior, com o rosto que os outros reconhecem. Mas se esta diferença de identidades não existe verdadeiramente – pois o que diverge é o público –, ele voltou trazendo precisamente aquilo que devia ter deixado para trás: os seus olhos. Se ele se vê a si mesmo exactamente como antes de acordar, então ele continua a ver apenas o Gurney interior. E estes olhos que só vêem para dentro não podem reconhecer ninguém no mundo cá fora. Acordando fora de si, Gurney está condenado a viver exilado entre estranhos.
  Se lermos os eventos ao contrário, por outro lado, notaremos que Gurney acordou para um pesadelo diferente. Não foi ele que acordou fora de si, deixando lá dentro a identidade que os outros não reconheciam. Ao invés, no seu desespero por ver esta identidade reconhecida por todos, conseguiu trazê-los para dentro de si mesmo. Ou seja, a mulher que ele encontra quando acorda habita agora o seu mundo interior e, por isso, pode vê-lo como ele se vê (e reconhecê-lo). Só que os nossos olhos internos foram feitos para nos vermos apenas a nós próprios. Nunca conseguiremos ultrapassar  a exterioridade dos outros e, por isso, a mulher de Gurney será sempre uma estranha que dorme com ele. O Reginald de Saki (H. H. Munro) aventava que nunca chegamos a conhecer verdadeiramente um anfitrião: “one never really knows one’s hosts and hostesses” ("Reginald on house-parties"). No fundo, Gurney reaprende a verdade inversa, muito mais óbvia, mas nem por isso menos assustadora: todos os visitantes são sempre estranhos em nossa casa.