E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Estranhos aos nossos olhos


  No episódio "Person or persons unknown" (John Brahm), da série The Twilight Zone, David Gurney acorda uma manhã e descobre que ninguém se lembra dele: a sua mulher, patrão, colegas e amigos negam reconhecê-lo e todas as provas documentais da sua existência desapareceram. É internado num manicómio, onde lhe garantem que a identidade que ele reclama foi inventada por ele em delírio. No final, acorda do pesadelo, mas não reconhece o rosto da mulher deitada ao seu lado, apesar de ela agir e falar como a sua companheira.

  A primeira parte desta história parece trazer-nos uma lição ensinada já várias vezes: não podemos impor aos outros a nossa identidade. Na verdade, a identidade que projectamos para nós próprios não é aquela que projectamos para fora. Que acontece a David Gurney? Ele falha em realizar o impossível: projectar para o exterior a mesma identidade que projecta interiormente. O fracasso é inevitável e todos o rejeitam, i. e., não o reconhecem.
  Gurney quis trazer para fora a identidade interna. Porque não tem identidade externa ou porque as confunde, usa no exterior o que só por dentro pode viver. E isto leva-nos a concluir que, na verdade, mesmo este rosto interno só existe nos olhos de quem o vê, ou seja, do seu dono. É sempre o público que dá vida à peça e é por haver dois públicos que carregamos duas identidades. Gurney confundiu as coisas: julgou poder usar a mesma identidade dentro e fora, quando na verdade estava a misturar os públicos: o que os outros vêem não é o que ele vê. Nesta linha, resulta mais óbvia a ironia da cena em que Gurney encontra uma fotografia onde surge agarrado à mulher que garante não o conhecer, embora ele alegue ser seu marido; mais tarde, quando exibe a sua prova, descobre que a mulher desapareceu da fotografia e que esta o mostra apenas a ele agarrando o ar. Ora, como podemos perceber, é Gurney o verdadeiro fantasma: a imagem de si que ele exibe na foto só pode existir dentro dele, nesse mundo interior que mais ninguém pode habitar.
  É fantástico descobrir depois que, ao acordar, Gurney não reconhece a mulher deitada ao seu lado, apesar de ela o tratar como seu marido. Que significa isto?
  Apressamo-nos frequentemente a tentar olvidar os nossos pesadelos. Não paramos para pensar se eles poderão trazer uma lição útil para a vigília. É o que sucede com Gurney. Ele conseguiu sair do pesadelo: voltou ao mundo exterior com a identidade exterior, com o rosto que os outros reconhecem. Mas se esta diferença de identidades não existe verdadeiramente – pois o que diverge é o público –, ele voltou trazendo precisamente aquilo que devia ter deixado para trás: os seus olhos. Se ele se vê a si mesmo exactamente como antes de acordar, então ele continua a ver apenas o Gurney interior. E estes olhos que só vêem para dentro não podem reconhecer ninguém no mundo cá fora. Acordando fora de si, Gurney está condenado a viver exilado entre estranhos.
  Se lermos os eventos ao contrário, por outro lado, notaremos que Gurney acordou para um pesadelo diferente. Não foi ele que acordou fora de si, deixando lá dentro a identidade que os outros não reconheciam. Ao invés, no seu desespero por ver esta identidade reconhecida por todos, conseguiu trazê-los para dentro de si mesmo. Ou seja, a mulher que ele encontra quando acorda habita agora o seu mundo interior e, por isso, pode vê-lo como ele se vê (e reconhecê-lo). Só que os nossos olhos internos foram feitos para nos vermos apenas a nós próprios. Nunca conseguiremos ultrapassar  a exterioridade dos outros e, por isso, a mulher de Gurney será sempre uma estranha que dorme com ele. O Reginald de Saki (H. H. Munro) aventava que nunca chegamos a conhecer verdadeiramente um anfitrião: “one never really knows one’s hosts and hostesses” ("Reginald on house-parties"). No fundo, Gurney reaprende a verdade inversa, muito mais óbvia, mas nem por isso menos assustadora: todos os visitantes são sempre estranhos em nossa casa.

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