O rei que protagoniza a história "Un re in ascolto" (Italo Calvino) é um prisioneiro no seu palácio: obrigado a permanecer no trono, não pode passear sequer pelas salas, muito menos pelas ruas.
Uma das razões que o rei dá para não poder sair do trono é a de que quando voltasse poderia encontrar alguém no seu lugar, eventualmente até igual a si. Este motivo parece-nos estranho quando pensamos no rei como a única pessoa a poder ocupar o trono. A sugestão aqui, no entanto, não contraria essa ideia, antes lhe acrescenta uma ressalva particular: o rei será a única pessoa a ocupar o trono, mas não há apenas uma pessoa que possa ser rei. Só se senta ali quem use a coroa, mas esta não está destinada a ninguém em particular.
É indiferente quem usa a coroa. O rei pode ser este ou outro qualquer. O que interessa é que se mantenha no trono. Resta saber, porém, o que faz verdadeiramente este rei ali sentado. Chega a governar alguma coisa?
O rei vive num constante medo de um golpe de Estado, de uma traição, de uma deposição. A sua ânsia, além de o fazer procurar coisas fora do comum, vai ao ponto de o levar a suspeitar da própria normalidade dos acontecimentos: o facto de as coisas seguirem o seu rumo habitual torna-se um sinal de que o rei já foi deposto e já se deu a revolução. Tudo continua igual, mas o palácio já pertence aos usurpadores; se o rei ainda não foi informado, tal comprova somente que já não conta para nada. Esquecido no seu trono de brincar, a sua condenação é tão fatal que não há sequer pressa em cumpri-la; ele pode ficar ali mais um tempo, pois não atrapalha ninguém.
Esta suspeita basta para comprovar que a realidade que tem o rei por centro funciona exactamente do mesmo modo esteja ele realmente a reinar ou não. Deste modo, é inegável que ele não governa o que quer que seja. E assim o trono que o rei ocupa assemelha-se à caixa que guarda o escaravelho que Wittgenstein refere no § 293 das suas Investigações Filosóficas (Philosophische Untersuchungen): supondo
que cada participante numa conversa tem uma caixa com um escaravelho; que cada um só
consegue espreitar a sua caixa, mas não as dos outros, e que, não
obstante, todos usam a expressão "escaravelho" sem disputas quanto ao seu significado, então não interessa
verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser o
mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir
variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da
expressão prescinde do objecto. Neste sentido, o rei senta-se no trono como o escaravelho na caixa: tal como precisamos da palavra "escaravelho" para a conversa se poder desenrolar, também é preciso o rei para as coisas continuarem a acontecer no reino. Mas, na prática, tal como é indiferente se há de facto um escaravelho na caixa, parece também indiferente se há alguém debaixo da coroa. O rei é, portanto, a pessoa mais importante de todo o reino, mas também a mais insignificante.
O rei cai então na mesma ilusão que ataca um outro monarca: aquele que o Principezinho encontra no asteróide 325 (Saint-Exupéry, Le Petit Prince), que garantia governar todas as estrelas e planetas do firmamento. Também o rei à escuta de Calvino tem momentos em que se convence de que tudo no palácio acontece apenas por sua vontade, incluindo o voo das moscas. Crê um que decide sobre os movimentos dos astros e outro sobre o trajecto das moscas: não obstante a diferença cósmica, a ilusão é a mesma. A analogia com a situação do escaravelho ajuda-nos a perceber melhor, de todo o modo, a profundidade da tragédia da sua ignorância: sabem talvez que para o universo é indiferente que eles existam; mas não sabem que por isso mesmo não existem.
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